EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Editorial

Transposição do rio São Francisco, a persistência no erro, por Henrique Cortez

O projeto de transposição do rio São Francisco, defendido pelo governo federal, não atende aos grandes desafios da região: o pleno e democrático acesso à água e um modelo de desenvolvimento estruturado na agricultura familiar

[EcoDebate] A pretendida transposição do rio São Francisco coleciona problemas e resistência numa escala ainda não vista. Recebe severa crítica dos movimentos sociais e populares, das organizações do semi-árido e de incontáveis pesquisadores e cientistas.

Problemas, erros e inconsistências no projeto e no processo licitatório também trouxeram críticas do TCU. Agora, a quarta empreiteira ameaça cancelar o contrato de construção.

Em qualquer lugar do mundo, seria de se esperar que um governo percebesse que tantos problemas justificam uma revisão da posição. Os governantes podem não aceitar, mas os governos erram e erram feio.

No entanto, o governo insiste no projeto, sem ninguém consultar ou ouvir, além de si mesmo.

Desde a audiência pública no senado, quando o deputado Ciro Gomes, teve a grandeza e a coragem de afirmar que “levar uma cuia d’ água a quem tem sede é balela”, o governo deixou de usar esta desculpa. Já é um avanço.

De qualquer forma, o problema fundamental continua sendo a seca, o estresse hídrico, o déficit hídrico (evaporação superior à precipitação), o manejo inadequado das reservas de água e a falta de um programa que democratize o acesso à água. A seca não depende de nossa vontade porque é resultado de condições geográficas e climáticas. Neste sentido, não existe combate à seca; no máximo teremos como conviver com ela, da mesma forma como os esquimós convivem com a neve.

As necessidades especiais da população do semi-árido são mais do que justas e para atendê-las é necessário romper com as simplistas e ineficientes megaobras na região e compreender que é possível desenvolver modelos de convivência com a seca, tendo como resultado o combate ao maior flagelo da região – a fome.

A fome no semi-árido está claramente associada à seca e, mais precisamente, ao acesso à água. Água para beber, para irrigar, para viver dignamente.

O acesso à água é a chave para o combate à fome. Mas esta observação não é uma emocionada defesa da transposição do rio São Francisco. Ao contrário, embasa minha oposição aos equívocos deste projeto porque, na realidade, pouco ou nada significará para milhões de pessoas que continuarão sem acesso à água.

Este projeto de transposição é, na essência e no conceito, o mesmo do governo Fernando Henrique Cardoso, que foi concebido para oferecer segurança hídrica aos grandes reservatórios, permitindo sua operação com maiores níveis médios, independente da recarga pluvial. Tendo os reservatórios como destino final, o projeto demonstra a manutenção do histórico modelo de uso dos reservatórios – 70% para agricultura irrigada, 26% para uso dos grandes centros urbanos e apenas os 4% restantes para o uso difuso, ou seja, para a população isolada e dispersa. E isto em apenas 5% do semi-árido.

A agricultura irrigada, neste caso, é a fruticultura e a carcinocultura, o rosto do agronegócio exportador no semi-árido. O agronegócio já está na região há mais de 20 anos e pouco ou nada contribuiu para a geração de emprego e renda ou de padrões mínimos de verdadeira inclusão social.

Esta transposição segue a lógica centenária de que a seca no semi-árido pode ser combatida com grandes intervenções, grandes obras e, agora, com um salvacionista programa de obras, tão monumental quanto o problema da seca.

Nisto está a essência da criação do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca – DNOCS, em 1945, com a concepção de combate à seca através de obras, principalmente a construção de açudes e/ou reservatórios.

O semi-árido brasileiro já conta com uma impressionante rede de reservatórios e adutoras, mas pouco mudou para a maioria da população sertaneja, mesmo depois de 60 anos da criação do DNOCS, que por sinal é subordinado ao Ministério da Integração Nacional.

O DNOCS já construiu 291 açudes públicos, armazenando mais de 15,3 bilhões de metros cúbicos de água. Na verdade, o conjunto de açudes e reservatórios, públicos e privados, do Nordeste possuem potencial de armazenamento superior a 30 bilhões de metros cúbicos de água. Este volume potencial de armazenamento já seria, em tese, mais do que suficiente para atender à demanda da população do semi-árido.

No entanto, mesmo com uma significativa açudagem, ainda são freqüentes as imagens de açudes quase vazios, mas, ainda assim, com potentes bombas de sucção, captando grandes volumes de água para irrigação, mesmo com a maior parte da população do entorno sedenta e dependendo de carros e jegues-pipa, em clara violação da lógica, da ética e da legislação.

Não basta um gigantesco esforço para a construção de açudes e barragens porque é absolutamente necessário um modelo de gerenciamento que garanta a sua eficiência, sua segurança e seu uso racional. Lamentavelmente isto ainda não foi sequer debatido, quanto mais solucionado.

Ao longo do tempo e dos mais diversos governos federais, ficou demonstrado que, independente dos problemas crônicos de gerenciamento da açudagem, este conjunto de obras não atendeu à sua razão primeira – garantir à população do semi-árido uma convivência minimamente digna com a seca.

Em resposta ao fracasso das grandes obras contra a seca, retoma-se a proposta de solucionar o problema com uma mega-obra. Pena que ela não vá levar água aos que tem sede, porque não é este o seu objetivo. Ao ser concebida para a segurança hídrica dos reservatórios, a transposição servirá ao maior usuário dos reservatórios e adutoras – a agricultura irrigada. Ela garantirá os crescentes volumes de água exigidos pelo agronegócio exportador.

Este projeto, portanto, como todas as outras grandes obras que pretensamente combateriam a seca, não atende aos maiores desafios da região: a regularização fundiária, o acesso à água e a consolidação de um modelo de desenvolvimento baseado na agricultura familiar.

Nas regiões Sul e Sudeste, os programas de convivência com a seca no semi-árido são pouco conhecidos. O mais importante e significativo é o P1MC – Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um Milhão de Cisternas Rurais, coordenado pela Articulação no Semi-Árido Brasileiro – ASA (www.asabrasil.org.br). O programa P1MC, lançado em 2000, tem como meta construir, em cinco anos, um milhão de cisternas de placas na região, que proporcionarão água limpa e de qualidade para cinco milhões de pessoas. O programa já construiu mais de 235.860 cisternas rurais, que beneficiam quase 1 milhão de pessoas.

Sua importância pode ser compreendida a partir do fato que uma cisterna, com 15 mil litros em média, pode garantir o fornecimento de água para uma família de 5 pessoas por 8 meses, que é o período normal de estiagem na região. Um amplo e bem organizado programa de apoio à construção de cisternas, com plena integração federal – estadual – municipal, não apenas seria uma micro-solução importante para a sobrevivência do sertanejo, como também, ao eliminar a indústria dos carros e jegues-pipa, seria um grande golpe no modelo mais demagógico do coronelismo.

Não acredito em soluções únicas e simples para problemas complexos e no semi-árido não é diferente. O semi-árido precisa de políticas públicas eficazes, concebidas de forma integrada e sistêmica, que incluam incontáveis experiências de convivência com a seca. A convivência com a seca exige várias ações e projetos, dentre os quais as cisternas “de beber”, as cisternas comunitárias, as cisternas de produção, as barragens subterrâneas, as mandalas, e por aí vai. Mas, acima de tudo, é necessário garantir o acesso à água.

Um projeto equivocado, como a transposição do rio São Francisco, atenderá os privilegiados de sempre e manterá as freqüentes imagens de rios completamente secos, de açudes exauridos e de ricas áreas irrigadas ao lado da mais impensável aridez, simplesmente porque não visa criar garantias de acesso à água.

Se for para levar água a quem já tem acesso não há necessidade de qualquer projeto, bastando aumentar a eficiência no gerenciamento e nos usos da açudagem disponível. Para isto, não é necessário fazer nada muito complicado, muito menos um projeto como a transposição do rio São Francisco.

É necessário e fundamental que se foque nas efetivas soluções de convivência com a seca, ou manteremos a atual lógica perversa, em que vemos adutoras tão próximas e, ao mesmo tempo, tão distantes de tantos. Não adianta tangenciar o problema – precisamos garantir o acesso à água. O acesso à cidadania.

Henrique Cortez, henriquecortez@ecodebate.com.br
Coordenador do Portal EcoDebate

[EcoDebate, 09/02/2009]

Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta que envie um e-mail para newsletter_ecodebate-subscribe@googlegroups.com . O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.