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Auxilio emergencial não é caridade

 

auxílio emergencial
Foto: EBC

 

Auxilio emergencial não é caridade

Defende-se a ideia de que todos os direitos sociais são conquistas, inclusive o auxílio emergencial.

Obviamente, isso tudo não é apenas para deixar a economia funcionando, viva, mas também para dar o sustento a essas pessoas. Nós aqui, que estamos presentes, sabemos que R$ 600 é muito pouco, mas para quem não tem nada, isso é muito”.

Artigo de Lidiane Natalícia Costa

[EcoDebate] O trecho supracitado trata-se de uma parte do discurso recente do presidente Jair Bolsonaro, pronunciado em ato solene, após assinatura do  decreto nº 10.412, que prorroga por mais dois meses o auxílio emergencial instituído pela Lei nº 13.982, de 2020, no valor de 600 reais destinados aos cidadãos em situação de vulnerabilidade durante a pandemia da Covid-19. (Agência Brasil, 2020).

As expressões “dar o sustento”, “para quem não tem nada isso é muito”, “ajudar os mais necessitados” tratam-se de um deslizamento semântico que se opõe à promoção de um direito garantido na Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei Orgânica de Assistência Social – LOAS, a qual, em seu 1° artigo, define a assistência social como um direito do cidadão e dever do Estado o provimento dos mínimos sociais para atendimento das necessidades básicas.

A Assistência Social junto à Saúde e à Previdência Social formam o tripé da Seguridade Social (CF, 88). Esta última é destinada aos trabalhadores formais e contribuintes, enquanto as duas primeiras não são contributivas, sendo a Saúde gratuita e universal e Assistência Social destinada para quem dela necessitar.

Representar a Assistência Social como “ajuda” aos mais pobres é retroceder algumas décadas na história do Brasil. No tocante, esse comportamento não é restrito ao atual presidente da República, pois os seus antecessores trataram a política como benfeitoria do seu partido advinda da compaixão pelas classes mais vulneráveis.

Essa conduta forja papéis sociais, influencia o pensamento coletivo e reforça estigmas. Nesse contexto, a imagem do direito foi equivocadamente vinculada à benesse. O Estado assumiu uma postura paternalista e clientelista, ao passo que o usuário da política de Assistência Social, ficou, por vezes, na posição de subalternidade e de alienação.

Frente a isso, é importante destacar a constante criminalização da pobreza e das políticas de transferência direta de renda em prol da defesa de uma meritocracia pífia. Ora, a ideia de “quem quer consegue” é uma quimera se tratando de um país extremamente desigual, no qual 10% da população mais rica detêm cerca de 42% da renda e 55% da riqueza total do país (Programa das Nações Humanas, 2019).

Sposati (2011) aponta os problemas das mistificações sobre a política de Assistência Social, dos quais emergiram concepções idealistas que atribuem superpoderes a ela e, simultaneamente, concepções niilistas que imputam conotação negativa ao responsabilizá-la pelo desmanche da seguridade social e da redução de outras garantias universais.

Por conseguinte, é necessário entender e diferenciar “concessão e conquista” ou, nas palavras de Pastorini (1999), “demanda e outorgamento”. No contexto capitalista na perspectiva de Marx (2013), os direitos sociais são respostas das lutas de classes e o Estado geralmente atende parte das reivindicações por meio da regulamentação das políticas sociais. Em troca, a classe demandante assegura a legitimação estatal e a ordem estabelecida.

Segundo Pastorini (1997), o Estado, por vezes, atende às necessidades sentidas pelas classes mais pobres para antecipar as demandas e evitar lutas e reivindicações. No entanto, isso não significa que a luta social não esteja presente no processo de gênese da política, “ …pelo contrário, ela está frequente, só que não concreta ou explicitamente, mas de forma tácita e implícita” (Pastorini, 1997, p.99). Logo, a autora considera a instituição das políticas sociais uma síntese do processo de “demanda-luta-negociação-outorgamento”.

Por fim, defende-se a ideia de que todos os direitos sociais são conquistas, inclusive o auxílio emergencial. A repetição da expressão “ajudar os necessitados” entre outros vocábulos equivalentes está perpetuando o estereótipo de “caridade aos pobres” e deturpando as representações sociais sobre um direito conquistado.

Questiona-se a intencionalidade ou não desse deslize semântico: seria um mero acaso ou são enunciados emitidos estrategicamente para inviabilizar a consciência de classe sobre os seus direitos? A resposta certamente aparecerá no discurso das campanhas para as próximas eleições presidenciais.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei 8742. Orgânica da Assistência Social- LOAS. Brasília, DF, 7 de dezembro de 1993.

MARX, K. O capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

PASTORINI, A. Quem mexe os fios das políticas sociais? Avanços e limites da categoria concessão-conquista. In: Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 53, p. 80-101, mar. 1997.

Agência Brasil. Assinado Decreto que prorroga Auxílio Emergencial por dois meses. Disponível em <https://www.gov.br/secretariageral/pt-br/noticias/2020/julho/assinado-decreto-que-prorroga-auxilio-emergencial-por-dois-meses >.

Programa das Nações Humanas. Relatório do Desenvolvimento Humano de 2019. Brasília, 2019.

SPOSATI, A. O trabalho do assistente social no SUAS: Seminário Nacional. In: Conselho Federal de Serviço Social. Brasília: CFESS, 2011.

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 27/07/2020

 

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