Potencialidades volumétricas atuais do Rio São Francisco para o atendimento aos seus múltiplos e conflituosos usos, artigo de João Suassuna
O Rio São Francisco, também chamado de Velho Chico, o maior rio totalmente situado em território brasileiro, é considerado o rio da integração nacional. Escoa superficialmente por cerca de 2.820 km entre a nascente, na Serra da Canastra (MG), e sua foz, entre Sergipe (SE) e Alagoas (AL). O rio possui 158 afluentes, dos quais 90 são perenes (o Paracatu é um dos mais importantes deles em termos de contribuição volumétrica) e 68 temporários, distribuídos numa área de cerca de 640.000 km². Essa malha fluvial é responsável por uma vazão média global, de longo termo, de cerca de 2.800 m³/s.
Caudal sujeito a múltiplos e conflituosos usos, tem levado à preocupação muitos brasileiros, seja pela sua redução volumétrica ao longo dos anos ou pela péssima qualidade de suas águas, consequência direta do lamentável estado de degradação em que se encontra a sua bacia hidrográfica, devido a constantes desmatamentos ocorridos em suas matas ciliares, ao lançamento de esgotos in natura em suas águas, e à ineficiente gestão hídrica a que é submetido. O presente artigo trata dos potenciais volumétricos ainda existentes no rio, objetivando subsidiar os diversos usuários de sua bacia, na busca de soluções para um melhor e mais eficiente uso de suas águas.
Os volumes do Velho Chico estão caindo
Segundo dados obtidos junto à Chesf, o Rio São Francisco é detentor de uma amplitude volumétrica bastante evidente. Na época das chuvas, por exemplo, o rio está sujeito a enchentes monumentais, podendo chegar a vazões de cerca de 18.000 m³/s e, na época das estiagens, seu volume pode cair para, apenas, cerca de 595 m³/s. Essas características volumétricas preocupavam, sobremaneira, os responsáveis diretos pelo setor de geração de energia da região, que precisavam contar com uma vazão firme diária no rio, para uma geração segura. A solução encontrada pelo setor elétrico, para satisfazer as necessidades do rio no momento da geração de energia, foi a construção de Sobradinho, em 1979, (represa com 34 bilhões de m³ de capacidade), que regularizou a vazão média diária do rio, ao longo do Submédio e do Baixo São Francisco, em cerca de 2.060 m³/s. Essa vazão estabelecida no Velho Chico resolveu temporariamente os problemas de geração do Nordeste que, no entanto, continuou a se desenvolver, e os volumes do rio voltaram a ser insuficientes para atender, no ato da geração, às crescentes demandas energéticas da região (crescimento estimado de 2% acima do PIB regional). Desta forma, o consumo de mais volumes do São Francisco, no ato da geração, se tornou progressivo. Atualmente, as vazões regularizadas do rio, medidas em sua foz, são de cerca de 1.850 m³/s e com tendências ao declínio.
As evidências nas quedas volumétricas do São Francisco
– Os primeiros indícios de quedas volumétricas do Rio São Francisco foram registrados em 2001, com a ocorrência dos apagões. O Governo Federal, à época, criou o Ministério do Apagão para conduzir ações que viessem a solucionar os problemas decorrentes da falta de água nos rios brasileiros, e os consequentes problemas surgidos na geração da energia em todo país. No Rio São Francisco o problema não foi diferente. A população nordestina sentiu no bolso as mal fadadas consequências da geração em um rio com baixos volumes.
– Em 2004, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promoveu uma reunião no Recife, objetivando a discussão da transposição de águas entre grandes bacias hidrográficas. Nessa reunião os volumes do Rio São Francisco foram estudados em suas minúcias. Os técnicos participantes dessa reunião enxergaram limitações importantes no Velho Chico, que colocariam em risco o sucesso de uma possível transposição, para o Setentrional nordestino, a ser empreendida com suas águas. Na análise realizada em suas vazões chegou-se à conclusão de que só havia, no rio, à época, cerca de 360 m³/s de vazão alocável, e uma outorga já concedida, de cerca de 335 m³/s. Portanto, só havia no Rio São Francisco, isso em 2004, uma vazão de cerca de 25 m³/s para usos consuntivos.
– Ao escrever o capítulo “Impasses e controvérsias da hidreletricidade”, no Dossiê de Energia da USP (vol. 21 nº 59 jan/abr 2007), Célio Bermann enxergou limitações volumétricas no Rio São Francisco, quando tratou da complementação da motorização do sistema elétrico do complexo Chesf. Segundo Bermann,“A Usina de Xingó foi projetada para abrigar dez turbinas de 500 MW, de forma a possuir uma capacidade instalada total de 5.000 MW. Entretanto, atualmente, apenas seis turbinas estão instaladas. Trata-se, portanto, de 2.000 MW que poderiam ser acrescentados se as outras quatro turbinas previstas fossem instaladas. A Usina de Itaparica também apresenta condições semelhantes. Projetada inicialmente com dez turbinas de 250 MW, ela conta, atualmente, com apenas seis turbinas, perfazendo 1.500 MW. Outros 1.000 MW poderiam ser acrescentados se as turbinas fossem instaladas”. “Com respeito às duas usinas no Rio São Francisco”, continua Bermann, “a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) alega que houve um superdimensionamento nos dois projetos e que não existe água suficiente, no rio, para efetivar a complementação da motorização em ambas”.
– E 2011, João Paulo Maranhão Aguiar, então assessor da presidência da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), em palestra proferida na Fundação Joaquim Nabuco sobre a “Geração elétrica do Nordeste: presente e futuro”, mencionou que, desde o ano de 2005, a Chesf não vem conseguindo gerar toda energia que é necessária para o atendimento das demandas do Nordeste. Em 2010, por exemplo, o complexo Chesf havia gerado 6.000 MW médios, e a região necessitou de cerca de 8.000 MW médios. Por falta de volumes no São Francisco, esses 2.000 MW médios foram importados de fora do sistema de geração da Companhia.
– Trabalhos do Hidrogeólogo José do Patrocínio Tomaz Albuquerque, dão conta do uso exacerbado das águas do Urucuia, localizado no Oeste da Bahia, um dos mais importantes aquíferos da bacia do Rio São Francisco. Segundo Albuquerque, mais da metade da vazão do Velho Chico, que aflui à represa de Sobradinho, é proveniente das vazões de base desse aquífero, em direção à sua calha. Em 2017, a irrigação praticada sobre esse aquífero, chegou a interromper os fluxos de base verificados em direção ao São Francisco, prejudicando, inclusive, o regime de alguns de seus afluentes, a exemplo do Verde Grande e do Paracatu, que interromperam seus fluxos naquele ano, se tornando temporários. Esse fato, somado ao ciclo seco ocorrido na região, entre 2012 e 2017, resultaram em uma afluência muito baixa na represa de Sobradinho, de apenas 290 m³/s. Naquele ano de 2017, a citada represa alcançou a incrível marca de cerca de 1% de sua capacidade útil, obrigando o poder público a defluir, dela, volumes mínimos, para não deixá-la entrar em exaustão. Segundo dados da Sala de Situação da Agência Nacional de Águas (ANA), em novembro de 2017, foram lançados, de Sobradinho em direção ao Submédio e Baixo São Francisco, cerca de 550 m³/s, apenas. Até aquela ocasião, essas regiões nunca haviam registrado uma vazão tão baixa. E foi nesse cenário de penúria hídrica, onde o São Francisco mostrou, por vezes, a sua ossatura pela deficiência volumétrica em sua calha, que suas águas passaram a ser utilizadas com maior frequência, para usos diversos, através da irrigação, da geração de energia, ou ainda do abastecimento de cerca de 12 milhões de pessoas por intermédio do projeto da transposição de suas águas.
A partir desses relatos, percebe-se o quão é importante o desenvolvimento de esforços do poder público, no sentido de se buscar a melhor forma de uso das águas do Rio São Francisco. Programas de revitalização da sua bacia, aliados a políticas de gestão mais coerentes e eficientes de suas águas, têm que ser urgentemente postos em prática, visando não somente à obtenção de maiores volumes no rio, mas, e principalmente, à melhoria da qualidade de suas águas, para usufruto das futuras gerações.
João Suassuna – Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
Artigo enviado pelo Autor e originalmente editado no portal da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj)
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 24/10/2019
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