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Consertar em vez de descartar, uma aposta consciente contra o consumo incessante

 

Consertar em vez de descartar, uma aposta consciente contra o consumo incessante

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“Descartá-los é melhor do que remendá-los. Quanto mais remendos, mais miseráveis, quanto mais remendos, mais miseráveis … ”, rezava uma das orientações ensinadas às classes altas no livro Admirável Mundo Novo, escrito pelo britânico Aldous Huxley, 87 anos atrás.

A reportagem é de Nicolás Hernández Gómez, publicada por El Tiempo, 06-10-2019. A tradução é do Cepat.

O conteúdo desta obra pode ser lido como uma premonição da sociedade atual. No mundo de Huxley, os remendos e os consertos eram atos socialmente desprezíveis, as pessoas tinham que comprar coisas novas para provar seu status. E hoje não é muito diferente.

É a religião do ‘compra e descarta’, impulsionada por um hábil marketing, os lançamentos constantes de todos os tipos de dispositivos ‘mais modernos’, o desejo de consumo, o esnobismo e a famosa frase ‘sai mais barato comprar um novo do que consertar este… e, além disso, novidade!

Como explica o economista da Universidade de ParisSerge Latouche, em seu livro ‘Hecho para tirar’ (Editora: Octaedro): “Não se trata de crescer para satisfazer algumas necessidades reconhecidas (reais) – o que seria certo -, mas crescer por crescer”. O consumo, então, se torna uma necessidade do sistema e um vício para as pessoas.

Nossos avós eram especialistas em consertar todos os tipos de coisas. Em parte, porque a produção em massa não havia se expandido para a magnitude de hoje, mas também porque não tinham a mentalidade de “consumir e consumir”, mas, sim, “conservar, poupar e cuidar”.

Com base nessa ideia, a ONG Amigos da Terra lançou sua iniciativa Alargascencia (Alongamento), uma página web que reúne vários lugares especializados em consertar todos os tipos de objetos e maximizar sua vida útil. Dessa forma, pretendem enfrentar o sistema perverso da obsolescência programada e a poluição que causa descartar e se desfazer de tantos utensílios. Assim, os principais beneficiários – de acordo com a organização – “serão os próprios cidadãos”, pelo seu bolso e pelo bem do planeta em que todos vivemos.

Uma das coisas que trabalham na iniciativa “Alargascencia” é com o “Recicriativa”, um espaço em que existem ferramentas e instrutores para que as pessoas possam consertar seus utensílios. Foi criado por vários cidadãos sob o lema “Uma coisa a menos no lixo e na rua, uma compra a menos e uma satisfação compartilhada”.

De acordo com dados do relatório Global Ewaste Monitor 2017, da Organização das Nações Unidas, em 2017, foram descartados 44,7 milhões de toneladas de resíduos tecnológicos. Em 2019, estima o relatório, o número aumentaria para 50 milhões. Isso significa que cada habitante do planeta joga cerca de 4,2 kg de lixo tecnológico por ano, algo como 21,2 telefones celulares iPhone 8 Plus ou 4 computadores portáteis com tela de 15 polegadas. Quem precisa de tanta tecnologia por ano?

Outro problema revelado pelo relatório é que a maioria dos resíduos eletrônicos vai parar em lixões em países pobres e provêm principalmente dos Estados Unidos e da Europa. Essa descoberta é consistente com outro indicador do estudo em que aparecem os países que mais produzem resíduos tecnológicos por pessoa: a Noruega produz 28,3 kg, a Suíça, 23,3, e a Islândia, 25,9.

Essa alarmante situação pode começar a mudar consertando os aparelhos tecnológicos antes de descartá-los. A Fundação Energia para a Inovação Sustentável sem Obsolescência Programada (Feniss), uma ONG espanhola dedicada a combater esse tipo de economia, afirma que “é possível acabar com a obsolescência programada aplicando os conhecimentos e tecnologias disponíveis atualmente”. Mas, para isso, “é necessária uma mudança no estilo de vida, menos orientada para padrões de consumo prejudiciais ao meio ambiente”.

De fato, a Feniss desenvolveu os selos Issop (Inovação Sustentável sem Obsolescência Programada), que são reconhecimentos para empresas que entregam produtos duradouros e facilmente consertáveis. Este foi entregue a empresas como a marca de tecnologia Casio e a empresa de lâmpadas ecológicas Prososphera.

Obsolescência: o mal

Quando alguém decide comprar um novo aparelho, geralmente ocorre por algum dano físico ou um sistema antigo. A questão é que, na maioria dos casos, isso se deve à obsolescência programada. Uma prática que começou no início do século XX, com as lâmpadas.

Segundo a Feniss, “a vida do produto é reduzida para fazer as pessoas comprarem mais e, assim, acelerar o crescimento da economia do fabricante”. Isso está de acordo com o que Latouche diz quando afirma que “o ponto de partida da obsolescência programada é o vício no crescimento do nosso sistema produtivo”. O que é absolutamente irracional em um planeta com recursos limitados.

Por isso, a França alterou sua legislação, em 2015, e criou uma norma que define a obsolescência programada como um crime.

Um dos exemplos mais eloquentes dessa prática é descrito por Valery Serrano, que trabalhou em um centro de serviços de telefonia celular: “Muitas pessoas nos telefonavam porque seus celulares não podiam ser atualizados para o sistema operacional mais recente ou porque alguns aplicativos novos não funcionavam com o velho sistema. E para isso não há solução, sendo assim, recomendávamos, pela política da empresa, trocar o aparelho por um mais moderno”.

No entanto, muitas dessas atualizações não são vitais para que o telefone celular funcione. “A menos que você viva do telefone, não é necessário que conte com a última versão. A única coisa é que alguns aplicativos não podem mais ser baixados”, acrescenta Serrano, que possui o mesmo telefone celular há quatro anos e o consertou três vezes nesse período.

Tomar a decisão de consertar em vez de descartar não é uma utopia. Sergio Barrantes, ambientalista de Bogotá, tem o mesmo reprodutor de música há dez anos. Trata-se de um MP3 que foi consertado três vezes por conta própria, a partir de informações na Internet. “Não compro um novo porque não preciso, os consertos foram suficientes”, diz.

A duração dos aparelhos, além de depender da fabricação e dos materiais do produto, é consequência de uma manutenção adequada. “O usuário deve estar atento aos sinais. Deve cuidar da bateria sem sobrecarregá-la para que sua vida útil seja mais longa”, observa Juan Jaramillo, engenheiro de sistemas da Universidade dos Andes.

Contudo, o fato é que as pessoas estão cada vez mais informadas e é assim que milhões de computadores portáteis receberam uma “segunda vida” com a simples instalação de um disco rígido e uma ampliação da memória ram original.

Uma tarefa de todos

As pessoas são movidas por seus bolsos ou pela consciência ecológica, mas as instituições também começam a agir. Em 2017, o Parlamento Europeu aprovou a “resolução sobre uma vida útil mais longa para os produtos: vantagens para os consumidores e as empresas”, por meio da qual motiva as pessoas a consertarem seus próprios aparelhos e, além disso, incentiva as empresas a prestarem serviços para esse fim. Coisa que a Comissão Europeia acaba de elevar à norma interna desse bloco poderoso.

União Europeia está consciente dos obstáculos para uma mudança de cultura, que vai desde a falta de informações sobre locais onde as pessoas podem consertar, até a fabricação de modelos projetados intencionalmente para que sejam muito difíceis de consertar e, portanto, resulte mais simples e barato comprar um novo. Portanto, iniciativas como “Alargascencia” são fundamentais para gerar consciência de que é possível consertar ao invés de descartar. Porque a principal mudança necessária é nas pessoas, que ainda preferem descartar e comprar algo novo, apesar dos custos que isso significa.

Segundo dados do Parlamento Europeu, “na Alemanha, 13% das oficinas para conserto de rádio e televisão fecharam em um ano, e nos Países Baixos desapareceram, neste setor, 2.000 empregos, em sete anos”.

Colômbia não é exceção. De fato, Fredy, um técnico especializado em eletrônica que literalmente conserta tudo, confessou ao jornal El Tiempo que lhe restou se dedicar a telefones celulares, porque “quase ninguém quer consertar seus eletrodomésticos. Preferem jogá-los no lixo e comprar outros”.

O caminho para diminuir o impacto ecológico negativo que causa descartar sem tentar consertar não é outro que a educação: conscientizar dos danos que isso causa ao planeta e à nossa economia doméstica. E nisso os tutoriais da Internet estão desempenhando um papel central, assim como as ONGs que vestiram a camisa para explicar que podemos viver de outra forma e sem provocarmos tanto dano.

A União Europeia, pela ‘reparabilidade’

Comissão Europeia aprovou, nesta terça-feira, um pacote de medidas para prolongar a vida de vários eletrodomésticos, como geladeiras, máquinas de lavar e até televisões, e torná-los mais sustentáveis em relação ao consumo de água e energia. A norma obriga as empresas a fornecer peças de reposição aos usuários e técnicos em no máximo 15 dias e por um período de até 10 anos, para que os produtos durem mais e gerem menos poluição.

A norma, que entrará em vigor em 2021, busca evitar que os usuários continuem jogando no lixo produtos que podem ser consertados. E gera novas exigências de durabilidade e economia de custos para dispositivos de iluminação. No total, com esta norma, a Comissão Europeia espera uma economia de 150 euros por ano, em média, por cidadão.

De acordo com uma pesquisa do Eurobarómetro, em 2017, 77% dos cidadãos da União Europeia prefeririam consertar seus bens, em vez de comprar outros novos. E mais de 90% estimam que os produtos devem ser claramente etiquetados para indicar sua durabilidade.

(EcoDebate, 11/10/2019) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

 

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