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Open letter to humanity – Carta aberta à humanidade, por Jeremy Desir

 

Open letter to humanity – Carta aberta à humanidade

por Jeremy Desir, Analista Quantitativo do HSBC

Original publicado em 1 de agosto de 2019 no LinkedIn

Tradução livre por Maria Clara de Oliveira

O capitalismo está morto. E, embora as terras virgens que estão prestes a ser esmagadas e as frágeis vidas que estão prestes a se afogar possam jamais ver seu futuro florescer, o capitalismo está, de fato, morto na sua essência, tanto quanto conceito quanto como força estruturante de nossas influências. O quanto antes abandonarmos nossas armas, com humildade, frente à essa realidade inevitável, maiores são as chances que a vida tem de se regenerar em sua diversidade.

A prova disso? Obviamente, a ascensão do capitalismo é inseparável das primeiras formas de trocas globalizadas [de mercadoria ou moedas], sendo a mais significante delas a escravidão profissional que envolveu o triângulo Europa, costa oeste da África e a América. O capitalismo então se estabeleceu como estrutura dominante de nossa civilização com a Revolução Industrial. Os conceitos dessa economia, isto é, as tendências ideológicas que ajudaram a formar a teoria do capitalismo, foram expressas em 1776, com a publicação de “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, fundando as bases intelectuais do liberalismo. A “mão invisível” é postulada como “um mecanismo auto-regulatório, induzido pela busca do equilíbrio entre oferta e demanda em mercados descentralizados”. O ponto-cego desse trabalho consiste na omissão da escravidão, mesmo que ela tenho sido a principal fonte de enriquecimento dos comerciantes de Glasgow, onde o professor [Adam] Smith veio a aprender os aspectos essenciais do que ele conhecia como economia. Isso levou Gaël Giraud a escrever que “em outras palavras, a ‘mão invisível’ é uma mão negra, que permaneceu invisível aos olhos do ‘esclarecido’ analista que Smith era”.

Desde então, o capitalismo e suas diversas tendências liberais têm se apoiado em três pilares altamente interdependentes:

  • propriedade privada, inclusive dos meios de produção

  • livre comércio nos mercados

  • concorrência ampla, livre e não-distorcida [leal]

Durante séculos, de Proudhon a Makhno, passando por Pelloutier e Ferrer – ambos criadores de conceitos e práticas de solidariedade, reciprocidade e complementaridade – foi das fileiras dos [socialistas] libertários, artesãos da desobediência civil e das lutas revolucionárias, que as primeiras críticas radicais ao liberalismo surgiram, e os primeiros a clamar por uma sociedade mais justa foram violentamente combatidos. Esses artesãos da denúncia sistemática da destruição do capitalismo foram heróis de distintas maneiras. Na minha opinião, eles se levantaram em um vanguardismo quase que exclusivamente intuitivo como uma forma de resistência contra esse sistema de opressão totalitária.

Hoje, a crise climática e ecológica sem precedentes que os seres vivos estão encarando, incluindo a humanidade, tem sido modelada, estudada e confirmada por aproximadamente 50 anos. As pesquisas científicas, no seu estado mais avançado, são capazes de interpretar as alterações permanentes em nosso planeta, e que estão presentes na atmosfera, nos sedimentos, nas rochas e no gelo. Pela primeira vez nas história, o homem é capaz de saber, com unanimidade internacional, as causas precisas de sua próxima extinção, mas também a trajetórias a serem seguidas drasticamente a fim de evitá-la.

Em novembro de 2018, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas [da ONU] (Intergovernmental Panel on Climate Change, IPCC) publicou um relatório especial sobre os efeitos do aquecimento global caso a temperatura global média se eleve 1,5 °C acima das temperaturas registradas no período pré-industrial, e das vias de emissão de gases de efeito estufa (GEE) relacionadas [com o aumento da temperatura global], no contexto do fortalecimento da resposta global às ameaças de mudanças climáticas, ao desenvolvimento sustentável e dos esforços para a erradicação da pobreza. Esse relatório responde à solicitação dos 195 países membros do Painel da Convenção das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (United Nations Framework Conference on Climate change, UNFCCC), incluída na decisão da 21ª Conferência das Partes (COP 21) em adotar o Acordo de Paris, assinado em dezembro de 2015

As recomendações deste último relatório são marcantes, quase revolucionárias, para qualquer um que esteja disposto a entender suas consequências – apesar de suas frases terem sido suficientemente suavizadas e polidas para serem levadas em consideração pelas maiores autoridades do capitalismo, em primeiro lugar dentre eles, os bancos. Foi nesse momento que a contradição da qual eles já não podiam mais escapar foi armada, pois eles estavam presos no cenário de neutralizar as emissões de gás carbônico, CO2, até 2050, com o que já haviam oficialmente se comprometido.

D.7.1. Cooperações envolvendo agentes públicos não-estatais e o setor privado, investidores institucionais, o sistema bancário e instituições científicas facilitariam ações e respostas consistentes com o objetivo de limitar o aquecimento global a 1.5°C (muito alta confiabilidade).”

Em 2014, o IPCC escreveu em suas recomendações:

  • A mitigação efetiva das mudanças climáticas não será atingida se cada agente (indivíduos, instituições ou países) agir de forma independente, de acordo com seus interesses egoístas (ver Cooperação Internacional e Troca de Emissões), sugerindo a necessidade de ações coletivas”.

As revoluções conceituais do IPCC que podem ser deduzidas são duas: 1) as ciências da natureza podem e devem produzir recomendações com dimensões sociais e humanas, baseadas em suas conclusões fisicamente comprovadas. 2) parcerias e ações coletivas, altamente necessárias para a comunidade científica internacional, são incompatíveis com o terceiro pilar do capitalismo: concorrência ampla e sem distorções. Infringir essa regra é explicitamente ilegal no setor bancário, enquanto o IPCC silenciosamente sugere uma imediata abolição da mesma, através da cooperação internacional. A recente Rede Para Ecologização do Sistema Financeiro (Network for Greening the Financial System, NGFS), seguindo [a tendência do] o “One Planet Summit” ao unir supervisores financeiros e bancos centrais para apoiar o setor em uma transição compatível com o Acordo de Paris, não ficou para trás em suas sugestões, feitas nas “Recomendações de Abril de 2019”.

Ainda em termos de respostas institucionais, poucas semanas antes da COP 21, em setembro de 2015, Mark Carney, governador do Bank of England, disse que “as mudanças climáticas irão ameaçar a resiliência financeira e a prosperidade a longo prazo. Mesmo que ainda seja tempo de agir, a janela de oportunidade é limitada e está encolhendo […] Nós iremos precisar de colaboração com o mercado para maximizar os impactos [dessa ações].”

Ele anunciou, ainda, em seu discurso de abertura [na COP 21], “Quebrando a tragédia no horizonte”, a criação de um grupo liderado pela indústria: a Força Tarefa de Transparência Financeira Relacionada ao Clima (Task Force on Climate-related Financial Disclosures, TCFD). Esse grupo de trabalho, dirigido por Michael R. Bloomberg, almeja “assumir uma avaliação coordenada do que constitui a transparência financeira de forma eficiente e efetiva, e projetar um conjunto de recomendações para que as empresas divulguem voluntariamente seus riscos [financeiros] relacionados ao clima”.

Dois anos depois, em julho de 2019, o TCFD admitiu uma terrível declaração de impotência: “Dada a urgência e as mudanças sem precedentes necessárias para alcançar os objetivos do Acordo de Paris, a Força Tarefa demonstra sua preocupação com o fato de que um número insuficiente de empresas tem divulgado suas informações financeiras relacionadas aos riscos e oportunidades climáticas de forma transparente”. Isso era totalmente previsível, dada a alarmante falta de sansões legais e econômicas para essas iniciativas voluntárias. Foi também com grande lentidão que esse relatório se referiu a outro, escrito pelas Nações Unidas, onde ficamos sabendo que “as emissões globais de gases do efeito estufa devem atingir seu pico máximo em 2020 e, a partir de então, declinar rapidamente, a fim de limitar o aumento da temperatura média global a não mais que 1,5 °C […]. Contudo, com base nas recentes políticas e acordos, ‘o pico máximo das emissões globais não está estimado nem para 2030, que dirá 2020’”.

Assim, as únicas instituições legítimas a apoiarem as maiores autoridades de um “capitalismo maluco”, na forma de restrições que levam em conta a responsabilidade ecológica, são impotentes em face a um setor privado incontrolável e hostil às menores formas de regulação. Porque os bancos e as milhares de multinacionais são tão relutantes em, ao menos, rastrear suas emissões de gases de efeito estufa e, por conseguinte, o impacto em carbono de seus sistemas financeiros? Porque nenhuma dessas firmas quer revelar publicamente a contribuição mortal para a Terra e para os seres humanos de seus lucros e patrimônios, que estão crescentemente desconectados de qualquer realidade física. Além disso, [essa divulgação] representaria uma medida incontestável da toxicidade de um livre comércio cada vez mais intensivo em energia, apesar de este ser o segundo pilar do capitalismo.

Considerando o primeiro pilar – sem dúvidas o mais difícil de questionar, já que desperta paixões mesmo para quem o capitalismo oprime mais do que enriquece – suas justificativas teóricas vazias estão sendo trazidas à tona gradualmente por abordagens dinâmicas do crescimento, que estão apenas começando a se tornar mais populares. Uma vez estabelecida essa observação, bem como os links entre a incompatibilidade dos outros dois pilares [do capitalismo] com os objetivos de neutralidade de carbono até 2050, até mesmo os ideólogos mais carismáticos não serão mais capazes de designar a propriedade privada como outra coisa senão roubo. Roubo das pessoas que sustentam os bens comuns e são condenadas a colher apenas uma fração dos seus benefícios, mas também das espécies vivas, cuja extinção em massa irá, em breve, trazer o entendimento, de forma mais irresponsável e inconsciente, da falta que eles fazem para os nossos ecossistemas.

Em outras palavras, os três pilares do capitalismo, nos quais o progresso de nossa civilização foi baseado, sistematicamente obscureceu, voluntariamente ou não, a noção de energia humana e energia primária na sua cadeia de valor, submetendo-os a arbitrariedades incontroláveis e distorcidas. A economia, apesar de se disfarçar como uma ciência natural e, portanto, indiscutível fora dos círculos mais intelectuais, se permitiu omitir as ciências do mundo físico dentro de suas equações financeiras. Essa ignorância indecente é o que de fato faz com que a Terra pague o preço irreversível, bem como o que resta da humanidade, reduzida ao status de “perdas”.

Cheguei ao ponto dessa carta. Essa [parte] passa por uma breve descrição da minha história pessoal.

Primeiro de tudo, sobre a minha formação acadêmica. Sempre teve a ver com Matemática, desde as aulas preparatórias até a Grande Escola de Engenharia, em Mines de Saint-Etienne [universidade na França]. Após [concluir] o primeiro ano do ciclo básico, eu cursei eletivas de Ciência de Dados acoplado a Big Data em meu segundo ano, e então prossegui para um duplo-diploma no terceiro ano, com o mestrado em Gerenciamento de Risco e Engenharia Financeira, no Imperial College London.

A ambição era de me tornar um analista quantitativo, ou quant. Esses engenheiros e pesquisadores modelam problemas do sistema financeiro: desde preços e derivativos a estratégias de comércio e gerenciamento de riscos. Buscando me aprofundar no lado matemático que me levou até ali, ao mesmo tempo que me encontrava parcialmente desapontado pelo conteúdo técnico do mestrado, decidi seguir meus estudos em uma das melhores formações em matemática financeira: o [curso] M2 “Probabilidade e Finanças”, co-habilitado pela UPMC e pela École Polytechnique Paris-IV (Escola Politécnica de Paris-VI, universidade francesa)

Três anos depois, aqui estou eu, na sede do HSBC, onde estou trabalhando há quase um ano como quant no departamento de risco. Eu faço a validação independente de algoritmos de estratégias de comercialização desenvolvidos pelo front office – de qualidade de dados a governança e desempenho dos algoritmos. Após vários meses de intensa exposição na mídia sobre as crises sociais e ecológicas mundiais, eu não posso me dar por satisfeito com essas poucas experiências voluntárias, por mais que eu acredite sinceramente nelas.

Essa nova tendência, chamada “Data for Good” (Dados pelo Bem), em parceria com ONGs e instituições de caridade é o [novo] anestésico de consciência numa ferida infeccionada que estamos ignorando, e cujos principais agentes nunca questionaram as bases alienantes de nossa civilização. Mesmo a desobediência civil, com métodos autoproclamados “radicais”, como o “Extinction Rebellion” (rebelião da extinção), do qual eu mesmo participei em abril, obviamente não foi o suficiente. A passividade grosseiramente disfarçada de meu empregador diante da última tragédia anunciada – especialmente depois da farsa simbólica que foi a declaração de um “estado de emergência climática” pelo Parlamento do Reino Unido no dia primeiro de maio – confirmou minhas intuições.

Foi por isso que eu preparei um relatório de 50 páginas sobre a alarmante inadequação da resposta dos bancos à crise climática, bem como várias recomendações, e o submeti na segunda-feira, 15 de julho, ao líder de minha equipe, pós-doutor em Física e ex-analista quantitativo, agora supervisor de validação de modelos. Este último sumário de fatos inegáveis e análises da necessidade urgente de se agir com coragem enfatiza, ainda, as respostas institucionais dadas pelo setor bancário. Além de reconhecer a ineficiência e impotência das medidas e estruturas desenvolvidas pelos reguladores, supervisores e bancos centrais (TCFD, NGFS), e, ainda, as iniciativas tomadas pelo HSBC como exemplos ilustrativos de que o setor de bancos privados, como um todo, está sujeito às suas próprias contradições.

Após uma descrição metódica das respostas inadequadas dos setores bancário e financeiro às emergências climáticas de nosso tempo, são lembrados os compromissos recomendados pelos três órgãos mais legítimos no assunto (TCFD-NGFS-GIEC), teoricamente reconhecidos pelos bancos numa estrutura não-vinculativa que eles próprios assinaram, e com a qual eles não falham em se comunicar categoricamente. Finalmente, são propostos três passos graduais de viabilização para implementar tais recomendações, de acordo com critérios pessoais, apenas desta vez. Os três passos consistem em: EDUCAR massivamente, PESQUISAR amplamente, AGIR corajosamente.

Como eu suspeitava, vários dias após o envio deste relatório, muito do qual deveria ser nada além de um lembrete para os cientistas, sobretudo aqueles ligados ao sistema financeiro internacional, as consequências foram muito limitadas e não voltamos a discutir o assunto novamente.

Eu não espero mais nada da minha reunião com um dos representantes mais importantes e experientes do banco, o líder global de estratégia de risco, participante em primeira mão da [elaboração das] recomendações do TCFD. Depois desse alarmante chamado, intencionalmente denso, quantificado e documentado, a fim de eliminar qualquer dúvida sobre sua autenticidade, eu acho que, na melhor das hipóteses, alguém irá se desculpar pela impotência frente à necessidade de ações coordenadas drásticas. No pior caso, eu serei convidado a me retirar.

Eu estou disposto a correr esse risco e fazer [o alarme] ser ouvido em voz alta pela minha comunidade.

Semelhante a mim, a maioria dos quant, ou cientistas de dados – dois títulos que eu posso reivindicar – acreditam que eles são bastante racionais e guiados pela ciência. Contudo, infelizmente nós estamos ignorando os alarmes crescentes e estrondosos da comunidade científica internacional. E esse tem sido o caso por décadas. Cheios de modéstia e humildade, o mais honesto de nós pensava que isso não era [parte do] nosso trabalho: “nós não somos economistas, devemos nos comprometer com nossas decisões de gerenciamento”. E foi exatamente por esse pequeno buraco que nossa consciência foi escapando. Se algumas dúvidas persistiram, foi particularmente graças aos milhões investidos pelos mais hostis às consequências de uma [tomada de] consciência radical sobre a crise ecológica. Tais dúvidas são, agora, inadmissíveis.

Mais uma vez, eu estou pronto para assumir o risco de confrontar o meu empregador com o seus próprios resultados. Estou pronto para assumir as consequências, enquanto divulgo a situação absurda para a maioria de nós, via uma versão totalmente não-violenta da propaganda dos fatos.

Hoje é o Dia de Sobrecarga da Terra, estimado pela primeira vez desde sua criação, em julho: na segunda feira, 29 de julho, o consumo anual de recursos naturais pela humanidade ultrapassará a capacidade de regeneração destes mesmos recursos pela Terra neste ano.

Frente à conspiração internacional dos poderes financeiros para manter esse capitalismo obscurantista e assassino, e para anestesiar a consciência dos melhores recursos intelectuais ante às causas e consequências da nossa crise ecológica e climática, eu, portanto, tomo a decisão de renunciar publicamente [ao meu emprego] através desta carta aberta. Eu sou incapaz, sabendo de tudo o que foi exposto acima, de perpetuar esta mentira terrível e continuar com a consciência tranquila. Assim, hoje eu deixo de colaborar com este totalitarismo sanguinário.

Estimados colegas, aqueles que me conhecem e que serão afetados mais diretamente pelas consequências de minhas ações, eu espero que vocês entendam que não estou querendo atingir o lado pessoal de vocês, e sim esta camisa de força de ilusões que está nos esmagando.

Eu também convido a minha comunidade de pesquisadores e engenheiros, principalmente aqueles trabalhando em bancos importantes e também nas gigantes tecnológicas – aqueles a quem as sirenes do dinheiro ainda não enfeitiçaram por completo o seu senso ético e o amor pela ciência – a declarar uma greve geral na sexta-feira, 2 de agosto de 2019, renovada cada sexta-feira até que uma estratégia de cooperação internacional seja adotada pelos seus empregadores (usem os três passos do relatório mencionado acima como base para futuras discussões).

Convencido da necessidade vital de uma resistência organizada e em grupos contra esse sistema de opressão que está em guerra contra os seres vivos, eu também convido o maior número possível de pessoas a encher as fileiras e os corações – que tem sido manchados pela propaganda que difamou nossos últimos revolucionários – numa manifestação no sábado, 3 de agosto de 2019, e que se renovará a cada sábado. O movimento social dos Coletes Amarelos talvez seja a última grande manifestação [popular] a denunciar os crimes diários e sufocantes de um sistema oligárquico, obscurantista e opressor da Terra e dos seres humanos.

Com relação ao futuro que eu aspiro [para mim], e respondendo antecipadamente às mentes fechadas que provavelmente acham que uma revolta radical e coerente seria me isolar na natureza, com o objetivo de alcançar a auto-suficiência [, digo]: não vou fazer isso, por enquanto. Em primeiro lugar, porque, como diria Yves-Marie Abraham: “A ‘civilização’ não possui nenhum outro lugar externo onde poderia se refugiar. Além disso, as comunidades ecológicas e ‘vilas de transição’ não representam, de forma alguma, uma ameaça à ordem existente. Elas deixam-na à vontade, e podem até mesmo ajudar a fortalecê-la, contribuindo para a revitalização econômica do campo – o mesmo campo que foi anteriormente devastado por essa mesma ordem.” E, em segundo lugar, porque, como um cientista consciente do estado em que se encontra o nosso mundo, com uma formação cultural e intelectual capaz de, metodicamente, desconstruir o monstro que a ilusão do crescimento infinito criou, eu acredito que tenho alguma utilidade dentre os últimos bastiões da resistência disponíveis em nossa civilização: a educação e pesquisa, mais precisamente através do ativismo científico, trabalhando na busca de uma sociedade humana pós-carbono. O único farol internacional na noite dos apetites narcisistas da nossa civilização moderna é representado pelo IPCC.

É por isso, também, que eu gostaria de pedir solenemente ao IPCC que examine a minha candidatura ao trabalho, em particular no que diz respeito à revisão em estado-da-arte da adaptação do setor financeiro a um mundo neutro em carbono até 2050. Se possível, eu gostaria de prestar a minha contribuição desde a École de Mines de Sain-Etienne, onde o componente humano da nossa formação estudantil tem persistido, em oposição ao produtivismo expansionista de nossos correspondentes parisienses.

Minhas convicções são claras e claramente divergentes, ao menos no começo, pois o ponto principal é cooperar, apesar da forte relutância daqueles que não tem nada a ganhar com isso – assim como uma leitura literal das suas [do IPCC] recomendações, e que fiz o possível para enfatizar. Como minha ética me faz renunciar a um setor muito mais lucrativo e socialmente respeitado do que o ensino e a pesquisa, eu espero convencê-los de que, apesar da minha posição, eu jamais deixarei de aplicar os mais altos padrões de rigor recomendados.

Para a minha mãe, que eu amo e nos deixou muito cedo. No domingo à tarde, 4 de agosto de 2019, completará um ano [que ela se foi]. Hoje, essa coragem vem de você [mãe].

Jéremy Desir-Weber

Link para o relatório: https://www.fichier-pdf.fr/2019/07/29/mydearfriends/

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 13/08/2019

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