Guerra de água, artigo de Danilo Pretti di Giorgi
Imagem: Corbis
[Correio da Cidadania] Em dias de calor paulistano, por falta de uma praia ou de um rio limpo para nadar, enchemos no quintal uma pequena piscina portátil. Dia desses, domingo de verão, deixei meu filho dentro da baleia azul de plástico e pedi para que mantivesse a mangueira ali dentro apenas até enchê-la. Saí de perto e, logo depois, quando voltei para ver a quantas andava o processo, vi que a piscininha estava cheia, mas meu menino não havia fechado a torneira: brincava com o jato d’água, direcionando-o para onde sua imaginação infantil mandava, ora regando o jardim, ora brincando de fazer chover.
Já me preparava para falar-lhe sobre a importância ecológica de economizar água, um recurso tão valioso e tal e coisa, quando me contive e resolvi deixá-lo brincar em paz pelo menos por mais alguns minutos. É que me lembrei que o uso doméstico corresponde a uma parcela ínfima da água doce usada pelos seres humanos no Brasil. Os dados variam um pouco dependendo da fonte consultada, mas, grosso modo, 70% do total é consumido no agronegócio, 20% na indústria e apenas 10% corre pelos canos das casas e apartamentos.
Entretanto, quando o problema é abordado pelos grandes meios de comunicação e em campanhas de órgãos públicos, é lembrado apenas o “comportamento leviano” dos urbanos, que aliviam o calor lavando um carro, uma calçada ou se divertindo numa piscininha. Ou que se refazem de um dia cansativo tomando um banho um pouco mais demorado no inverno. Reparem que o foco é sempre direcionado apenas para o consumidor doméstico: devemos tomar banhos de cinco minutos, usar a água da lavadora de roupas para lavar o quintal e fechar a torneira enquanto escovamos os dentes. Lavar o carro? Só se for com balde, porque assim você gasta não sei quantas vezes menos água do que com mangueira.
Por que esta patrulha, que faz-nos, cidadãos comuns, ficarmos neuróticos a ponto de censurar uma criança por brincar com a água? Por que não direcionam sua artilharia também para as gigantes da indústria alimentícia, como as processadoras de carnes, altamente poluidoras e que utilizam grandes quantidades de água limpa em seus processos, muitas vezes devolvendo-a contaminada para o ambiente?
Por que não questionam o sojicultor e o sucroalcooleiro que, ao irrigarem suas megaplantações com água limpa, levam de volta para os rios e impregnam a terra com venenos, como agrotóxicos e fertilizantes produzidos a partir de petróleo? Ou, ainda, por que não questionam a necessidade de alguns processos que consomem (e poluem) quantidades enormes de água, como, por exemplo, as indústrias de aço e de tecidos, refinarias de petróleo e cervejarias, entre muitas outras? Eu tenho um palpite: porque eles ganham rios de dinheiro com as atividades que poluem os rios.
O mesmo raciocínio pode ser utilizado com relação ao consumo de energia elétrica. Enquanto fazem-nos sentir culpados pelo banho quente ou por deixar a geladeira aberta por mais do que alguns segundos, a produção de alumínio responde sozinha por mais de 5% de toda a energia elétrica consumida no Brasil. Vale destacar que, na quase totalidade dos casos, os processos produtivos, sejam eles na indústria ou no agronegócio, não são eficientes, até porque muitas vezes as empresas contam com subsídios governamentais e pagam pouco pela água e pela energia elétrica que consomem. Quase sempre há perdas significativas desses insumos, que poderiam ser reduzidas com um pouco de boa vontade para a tomada de algumas medidas relativamente simples. Mas não se vê governo ou mídia cobrando a implementação dessas medidas. Um grande mistério.
É verdade que, na maior parte dos casos, a água usada no agronegócio e na indústria não passa por tratamento para tornar-se saudável para o consumo, como a que chega às nossas torneiras. São as chamadas águas de reuso ou aquelas captadas diretamente dos rios. Poder-se-ia, portanto, contra-argumentar por aí. Mas perceba que a alta cada vez mais acentuada no custo dos processos de purificação da água está ligada diretamente com o crescimento da poluição, a maior parte dela causada pelos, voltando para o começo, processos industriais e agropecuários. Trata-se de um ciclo interligado em todas as suas muitas fases, que não pode ser analisado separadamente.
Pior: o próprio poder público, que cobra da população uma atitude responsável, não parece importar-se: quase a metade (45%) de toda a água que se retira de mananciais para abastecer as capitais brasileiras é perdida antes de chegar às casas e atender à população, na maior parte dos casos por conta de vazamentos nas tubulações (ou, importa-se sim, mas importa-se apenas em nos culpar, não em resolver o problema). Não, não é brincadeira. São dados oficiais do Ministério das Cidades, a partir de informações fornecidas pelos órgãos estaduais: quase metade da água tratada pelas “Sabesps” Brasil afora não chega nas torneiras pela falta da manutenção. Então, ao invés de focar apenas no consumidor, os governos poderiam cuidar da parte que lhes cabe e consertar os canos. Mas, não!
Mais alguns dados alarmantes relacionados ao governo (e perceba que “governo” quando tratamos desse tipo de questão são todos, os atuais e passados, desde sempre): apesar de ser bastante divulgado que mais de 60% das residências no Brasil já contam com coleta de esgoto, pouca gente lembra que apenas 6% do esgoto é tratado. O restante é despejado in natura em rios e lagos, novamente encarecendo o tratamento da água que chega às casas e alimentando o ciclo da sujeira e do descaso.
A moral dessa história é que continuamos nós, cidadãos comuns, arcando com todo o ônus e passando longe do bônus. Para não mexer com interesses poderosos (dos quais são parte integrante), governo e mídia preferem transferir o problema para o elo mais fraco, eu, você e nossos filhos, mesmo que possamos fazer muito pouco pela solução do problema. Veja só: somos 180 milhões, responsáveis por 10% do consumo. Não seria mais inteligente compartilhar os esforços com aqueles que consomem os 90% restantes, ainda mais considerando que eles são em número infinitamente inferior? E trabalhar arduamente para eliminar as perdas na rede de distribuição e para universalizar o tratamento de esgotos?
Não vou, por conta disso, deixar de economizar água. Vou também continuar adotando as práticas defendidas nas reportagens especiais que sempre surgem nos meios de comunicação sobre o colapso do abastecimento nas grandes cidades – até porque elas são “tecnicamente” incontestáveis. Varrerei a calçada, apesar de saber que a vassoura hidráulica é muito mais divertida. Aproveitarei a água da piscininha e captarei água da chuva para regar meus vasos nos dias de seca, apesar do trabalho que dá. Fecharei a torneira enquanto escovo os dentes, apesar de adorar o barulhinho da água correndo enquanto medito durante minha higiene bucal. Farei tudo que venho fazendo, sabendo que minha parte faz diferença. Mas não me peça para não deixar as crianças se divertirem brincando de guerra de água no quintal num dia de calor.
Danilo Pretti Di Giorgi é jornalista.
* Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado no Correio da Cidadania, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
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[EcoDebate, 19/01/2009]
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