O mundo não é plano: convergência e divergência de renda entre as regiões, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
[EcoDebate] O livro “O Mundo é Plano: Uma História Breve do Século XXI”, de Thomas Friedman, de 2005, considera que o mundo é “plano” no sentido em que as condições de competição entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento estão ficando mais nivelados, o que abre a oportunidade para uma convergência da renda per capita entre os países e as regiões, evidenciando o lado bom da globalização.
Segundo o professor e prêmio Nobel de economia, Michael Spence (2012), antes de 1750, por milhares de anos, o crescimento econômico era insignificante em todo o mundo. A maioria da população mundial era pobre (havia algumas elites ricas) e em alguns lugares havia uma pequena classe média orientada para o comércio. Mas por volta de 1750, a Inglaterra começou uma nova trajetória, a da Revolução Industrial. Os níveis de renda per capita começaram a melhorar. O crescimento acelerou e, pela primeira vez na história recente, o desenvolvimento se tornou duradouro. Durante o século XIX, o padrão se espalhou rapidamente para a Europa continental e depois para os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A Revolução Industrial se expandiu por dois séculos, até a Segunda Guerra Mundial, e provocou um processo de divergência da renda, isto é, alguns países ficaram muito mais ricos do que o resto do mundo. A mudança drástica no modelo de crescimento, entre 1750 e 1950, limitou-se ao que hoje entendemos como países avançados ou industrializados (ou, às vezes, maduros). Isso afetou a vida de quase 15% da população do planeta.
Após a Segunda Guerra Mundial, o modelo começou a mudar novamente, embora no início fosse difícil perceber que era realmente uma megatendência. Os países do mundo em desenvolvimento começaram a crescer. No início muito lentamente e apenas em algumas áreas isoladas. Então o avanço começou a se espalhar e acelerar. Quando, a partir da década de 1980, a China e a Índia (os dois países mais populosos do mundo) iniciaram uma fase de rápido crescimento econômico, a convergência da renda, em nível internacional, passou a ficar clara. É o que Michael Spence chama de nova convergência.
Considerando o gráfico acima, nota-se que houve, de fato, um processo de convergência entre a renda per capita (em poder de paridade de compra – ppp) dos países desenvolvidos (economias avançadas) e dos países em desenvolvimento (economias emergentes) nas últimas 4 décadas. A renda per capita dos primeiros era de US$ 23,7 mil em 1980, passou para US$ 45,8 mil em 2018 e deve chegar a US$ 48,9 mil em 2023, segundo as estimativas do FMI. Já a renda per capita dos segundos era de US$ 3,6 mil em 1980, passou para US$ 11,1 mil em 2018 e deve chegar a US$ 13,4 mil em 2023. A renda per capita das economias avançadas era 6,5 vezes maior do que a das economias emergentes em 1980 e deve cair para 3,7 vezes em 2023. Portanto, a despeito das desigualdades, a diferença de renda diminuiu entre 1980 e 2023, o que mostra um processo de convergência.
Todavia, este processo de convergência não acontece em todas as regiões do mundo em desenvolvimento. O gráfico abaixo mostra que a Europa emergente (que reúne 12 países: Albânia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Croácia, Hungria, Kosovo, Macedônia, Montenegro, Polônia, Romênia, Servia e Turquia) tinha uma renda per capita de US$ 10,1 mil em 1980 e deve chegar a US$ 28,1 mil em 2023, crescendo 2,8 vezes (mais do que o crescimento de 2,1 vezes das economias avançadas). Já a Ásia emergente ou em desenvolvimento que reúne 30 países (Bangladesh, Butão, Brunei, Camboja, China, Fiji, Índia, Indonésia, Kiribati, Laos, Malásia, Maldivas, Ilhas Marshall, Micronésia, Mongólia, Mianmar, Nauru, Nepal, Palau, Papua-Nova Guiné, Filipinas, Samoa, Ilhas Salomão, Sri Lanka, Tailândia, Timor-Leste, Tonga, Tuvalu, Vanuatu e Vietnã) tinha uma renda per capita de somente R$ 1,3 mil em 1980 e deve chegar a US$ 14,4 mil em 2023, um crescimento de 11 vezes no período. Estas duas regiões estão em processo de convergência com os países ricos e desenvolvidos.
A Comunidade dos Estados Independentes (CIS na sigla em inglês) que reúne 11 Repúblicas da ex-URSS (Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão, Moldávia, Rússia, Tajiquistão, Turcomenistão, Ucrânia, Uzbequistão) tinha uma renda per capita de US$ 12 mil em 1992 e deve chegar a US$ 20,1 mil em 2023, apresentando um crescimento próximo do crescimento das economias avançadas. Neste caso, houve estabilidade, ou seja, nem convergência ou divergência.
A América Latina e Caribe (ALC) tinha uma renda per capita de US$ 10,7 mil em 1980 e deve chegar a US$ 15,9 mil em 2023, um aumento de 1,5 vezes (menor do que os 2,1 vezes das economias avançadas). Neste caso, há divergência, pois o crescimento da renda per capita da ALC acontece em ritmo inferior às economias desenvolvidas.
As outras duas regiões também apresentam divergência no processo de crescimento da renda. Os países do Oriente Médio e do Norte da África (MENA) tinham uma renda per capita de US$ 15,2 mil em 1980 e deve chegar a R$ 18,5 mil, um aumento de 1,5 vezes. A África Subsaariana – que tinha uma renda per capita maior do que da Ásia emergente, passou de US$ 2,7 mil em 1980 e deve chegar a US$ 3,9 mil em 2023, um aumento de 1,4 vezes.
Portanto, a ALC, a MENA e a África Subsaariana estão aumentando a distância em relação às economias mais ricas (vivem um processo de divergência de renda na globalização). A CIS mantém aproximadamente a mesma distância em relação às economias mais ricas. E a Europa emergente, mas principalmente a Ásia emergente, estão em processo de convergência com as economias mais ricas.
O gráfico abaixo mostra a percentagem da renda per capita (preços constantes em ppp) das diversas regiões em relação à renda per capita das economias desenvolvidas. Nota-se que as regiões com linhas cheias tiveram ganhos no período 1980 a 2023 e as regiões com linhas pontilhadas tiveram perdas. A Europa emergente tinha 43% da renda das economia avançadas em 1980 e deve chegar a 57,4% em 2023.
A Ásia emergente tinha somente 5,5% da renda das economias avançadas em 1980 e deve chegar a 29,5% em 2023. As Repúblicas da ex-URSS (CIS) tiveram uma estabilidade, pois tinham 38,6% da renda das economias avançadas em 1992 e devem chegar a 41,2% em 2023. Estas são as verdadeiras economias emergentes, pois estão ganhando terreno em relação às economias mais avançadas num processo de convergência.
Mas as demais regiões estão apresentando um processo de divergência e submergência. Os países do Oriente Médio e do Norte da África (MENA) tinham uma renda per capita que representava 64,4% da renda das economias avançadas em 1980 e deve ter apenas 37,8% em 2023. A América Latina e Caribe (ALC) tinha uma renda per capita que representava 45,3% da renda das economias avançadas em 1980 e deve ter apenas 32,4% em 2023. E a África Subsaariana que tinha uma renda per capita que representava 11,6% da renda das economias avançadas em 1980, deve ter apenas 7,9% em 2023. Portanto, estas 3 regiões estão se empobrecendo em termos relativos e aumentando a distância em relação as economias mais ricas do mundo.
O contraste entre as regiões em desenvolvimento é maior entre a Ásia emergente e a África Subsaariana. A primeira tem quase a metade da população mundial, mas está avançada na transição demográfica. Assim, a Ásia emergente terá uma população em decrescimento relativo e uma economia em crescimento absoluto e relativo e pode convergir com as economias avançadas ao longo do século XXI. Já a África Subsaariana tem uma renda per capita em declínio relativo e uma população em acelerado crescimento. Isto quer dizer que a Ásia emergente deve reduzir a pobreza, enquanto a África Subsaariana pode ficar presa à “armadilha da pobreza”. A renda estagnada num quadro de crescimento demográfico é uma receita para um grande desastre.
O fato é que a globalização não trouxe benefícios generalizados. A Ásia emergente conseguiu ganhos significativos na medida em que construiu uma inserção soberana no processo de globalização e conquistou um ritmo de aumento da renda per capita que converge para o nível das economias mais ricas e avançadas do mundo. Já a América Latina e a África são continentes em que a renda diverge dos países desenvolvidos e são regiões, com baixo grau de complexidade da estrutura produtiva, que estão em um processo submergente.
Isto quer dizer que o mundo não é totalmente plano e nem convergente. Existem regiões que estão ficando mais pobres em termos relativos. A ALC deve ficar presa na “armadilha da renda média” e pode ficar cada vez mais distante da Ásia emergente. O caso mais grave é da África Subsaariana que deve chegar em 2100 com cerca de 4 bilhões de habitantes (quase 40% da população mundial) e uma renda per capita cada vez mais distante daquela da América do Norte, da Europa, da Oceania e da Ásia emergente.
Um contingente tão grande de pessoas presas na “armadilha da pobreza” pode ser uma bomba relógio que sinalize para uma erupção de uma grande crise social.
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
Referências:
Friedman,Thomas. O mundo é plano: uma história breve do século XXI, Companhia das Letras, 2005 https://pt.slideshare.net/lrasquilha/o-mundo-plano-thomas-friedman
Spence, Michael. The Next Convergence: The Future of Economic Growth in a Multispeed World, Farrar, Straus and Giroux, 2012
https://www.amazon.com/Next-Convergence-Future-Economic-Multispeed/dp/1250007704
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 03/04/2019
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