Um olhar mais atento para os caminhos da habitação popular/social, artigo de Sucena Shkrada Resk
A população cresce ano a ano e o déficit habitacional segue a mesma trajetória no Brasil e é superior a 7,7 milhões de moradias necessárias para suprir essa demanda por imóvel próprio. Os dados são baseados em informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE) de 2015. Um problema e tanto para ser administrado pela gestão pública.
A questão central é como garantir o acesso de qualidade principalmente à população de baixa renda, aproveitando melhor a ocupação nas manchas urbanas e suas infraestruturas disponíveis nas regiões metropolitanas, e planejar para curto, médio e longo prazos esta cobertura, tendo em vista este crescimento demográfico contínuo; ou seja, como ganhar escala e evitar que fiquem cada vez mais em áreas periféricas?
Uma série de questões estão em jogo, neste processo. Quais são os critérios para atendimento à população de baixa renda? As construções têm qualidade de infraestrutura e acabamento, custo justo (processo licitatório), são localizadas nas proximidades das redes de serviços de atendimento à população (transporte público, saneamento, saúde, educação, segurança…) e de seus empregos? O quanto estas distâncias refletem na emissão de Gases de Efeito Estufa (GEEs)? Há manutenções periódicas destas edificações e estão harmônicas com áreas verdes, por exemplo? “Adensar” é o melhor caminho ou não? A opção do aluguel social pode ser uma saída? Recuperar imóveis ociosos nas regiões centrais são uma opção com melhor custo-benefício para este déficit? São muitos aspectos a serem analisados.
Entre 2009 e 2016, mais de 4,4 milhões de moradias populares – um número expressivo e importante, do ponto de vista de cobertura e expansão foram construídos dentro do Programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal em parceria com estados e municípios, o que não significa, entretanto, solução definitiva. Segundo a Caixa Econômica Federal, o investimento foi superior a R$ 319 bi. Anteriormente o mesmo número de unidades foi entregue pelo então Programa Nacional de Habitação (BNH), entre os anos de 1964 e 1986.
Salto urbano
Além de não cobrir o déficit crescente, como o próprio governo constata, um dos maiores problemas detectados por especialistas é que parte dessas construções destinadas à Faixa 1 (renda familiar bruta de 0 a 3 salários mínimos e que o subsídio pode chegar a cobrir até 90% do valor total do imóvel, sem juros) ficam localizadas longe dos centros, dos locais de emprego e de serviços básicos à população. Essa distância das moradias construídas às manchas urbanas é chamada de “salto urbano”.
Ao mesmo tempo, há o registro do subaproveitamento dos espaços internos nas manchas urbanas, como foi observado, por exemplo, nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte (MG) e São Luís (MA), entre outras. Fato que tem se repetido há décadas no Brasil. Esses dados integram o resultado do estudo Morar Longe: o Programa Minha Casa Minha Vida e a expansão das Regiões Metropolitanas idealizado pelo Instituto Escolhas e que teve execução técnica do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getúlio Vargas (CEPESP/EAESP/EESP – FGV), lançado nesta semana, com apoio da Fundação Tide Setubal.
Foram pesquisadas 20 regiões metropolitanas (Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Cuiabá, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Palmas, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Santos, São Luís, São Paulo, Teresina e Vitória), onde vivem cerca de 60% da população brasileira. Como resultado, foi identificado com análises dos satélites, que o programa tem contribuído para a expansão das metrópoles brasileiras e não tem ocupado espaços internos das cidades, já providos de infraestrutura urbana.
Em oito das 11 regiões georreferenciadas analisadas, com 82.909 unidades habitacionais contratadas até março de 2013 na Faixa 1, foi apurado que a maioria das unidades foi construída fora da mancha urbana.
Segundo o estudo, o programa provocou aumento de ocupação do solo além da mancha urbana por meio de salto urbano, um aumento de 10% nas unidades habitacionais, e provocou aumento de 2,1% de novos desenvolvimentos além da mancha.
Em seminário realizado no último dia 22, algumas hipóteses para este “salto” apontadas pelo coordenador do estudo, o economista Ciro Biderman, da FGV, podem estar relacionadas a falhas de mercado de crédito, de mercado de solo (terras), como também insuficiência de renda.
O coordenador do estudo ainda alertou que em algumas situações, mesmo com a presença do equipamento público próximo à moradia, o que faltam são as vagas diante deste crescimento populacional.
Em algumas regiões, mais um fator considerado problemático, segundo Biderman, é a atuação de milícias e/ou grupos que exercem poder velado até para “autorizar” a realização das obras e manutenção desses conjuntos nas comunidades, a exemplo de casos no RJ. Quando os condomínios também têm mais unidades, o que se observou é a tendência à queda de qualidade.
A arquiteta Luciana Royer, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), esclarece que é preciso entender quais são os agentes envolvidos. “A articulação é do governo federal, com a política de habitação e de crédito; o registro de imóveis é no nível estadual e o uso do solo é municipal, relacionado ao Plano Diretor e Lei de Zoneamento”. Às Prefeituras também cabe o cadastramento e seleção dos beneficiários e às empresas da construção civil (construtoras) a proposição dos projetos habitacionais, como também a execução da obra. Sem esquecer obviamente da própria população atendida.
Condominialização da vida
A arquiteta alerta que para o planejamento das habitações populares é preciso um cuidado para a chamada “condominialização” da vida (termo utilizado pelo psicanalista Christian Dunker) versus o trabalho para a construção de bairros. “Nestes condomínios fechados, vai se elevando o custo da habitação e ocorre (em muitos casos) a guetificação”, analisa. Para Dunker, a privatização do espaço público transforma a própria vida em formas de condomínio, com seus regulamentos, síndicos, gestores e muros.
Biderman, da FGV, explica que outro aspecto relevante nesta conjuntura é que houve uma desaceleração de investimentos nas construções a partir de 2015 principalmente para atender a população na Faixa 1, o que gera apreensão.
Muitas questões ficam em aberto. O que pode melhorar no setor habitacional com a finalidade social já que o estudo analisa que as localizações mais centrais estão perdendo sua atratividade em função de uma demanda mais concentrada em periferias mais distantes, que apresentam externalidades negativas, por exemplo, quanto à mobilidade urbana, empregabilidade e acesso aos mais variados serviços públicos? Como ficará este programa ou outro (independe a tarja) a ser criado, já que o Ministério das Cidades – que capitaneava o processo com outras pastas – foi extinto, e a política nacional de habitação fica ao encargo agora do recém-criado Ministério de Desenvolvimento Regional, conforme a Medida Provisória 870/2019? A política habitacional é uma política de Estado.
*Sucena Shkrada Resk é jornalista, formada há 27 anos, pela PUC-SP, com especializações lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP, e autora do Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk (https://www.cidadaosdomundo.webnode.com), desde 2007, voltado às áreas de cidadania, educação, saúde, socioambientalismo e sustentabilidade.
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 01/02/2019
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