Ambientalização de conflitos sociais, Parte 4/5, artigo de Roberto Naime
[EcoDebate] LOPES (2006) reafirma a importância de conflitos localizados na própria promulgação de leis federais, como foi o caso do conflito em torno da fábrica de cimento de Contagem em 1975 e a lei sobre poluição do mesmo ano, como foi também o caso da poluição em Cubatão nos anos 1980 e a promulgação das leis de 1981, 1985 e resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) de 1986.
Procedimentos nada sistêmicos e totalmente espontaneístas, ao sabor das pressões e circunstâncias.
Para efeito da argumentação deste artigo será utilizado o caso de Volta Redonda, Rio de Janeiro, como caso ilustrativo singular. Muitas vezes são os casos extremos que chamam mais a atenção para fenômenos que aparecem menos em outros casos, mas onde também estão presentes. Tais casos extremos são importantes para demonstrar as tendências mais gerais.
Volta Redonda, hoje com perto de 250 mil habitantes, é uma cidade que se constituiu em torno do núcleo urbano anexo à grande fábrica siderúrgica (de 10 km. de extensão contínua no centro da cidade), a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que se instalou na localidade desde 1943.
Nos anos 1950, o então distrito pertencente a Barra Mansa se emancipa e torna-se município; embora o grande poder de fato da área continuasse sendo a própria CSN, proprietária de casas e edifícios até meados dos anos 1960.
No regime militar, o município torna-se área de segurança nacional e os prefeitos são indicados pelo poder central. A CSN exerce seu poder de fato sobre toda a cidade. E provê todo um sistema educacional, e de formação profissional a seus empregados e dependentes.
No início dos anos 1980, na leva das grandes greves iniciadas no ABC paulista em 1978, e em todo o Brasil em seguida, se dão as primeiras greves na CSN por melhorias salariais e de condições de trabalho.
Uma extensa série de conflitos trabalhistas, nos quais o sindicato dos metalúrgicos ocupava um papel central, se estende pelos anos 1980, culminando com a grande greve de 1988 com ocupação da usina, invasão por parte de tropas do exército, morte de operários e grande mobilização local.
Esses conflitos trabalhistas esgotaram-se no início dos anos 1990, na conjuntura do processo de preparação para a privatização da CSN.
No auge do conflito de 1988, com as atenções voltadas para ele, uma ação civil pública instaurada por uma entidade ambiental do município de Macaé dá margem a um processo judicial pela reparação da poluição causada pela CSN no rio Paraíba do Sul. Essa ação inaugura toda uma série de outras, em torno da poluição da CSN, poluição atmosférica e das águas.
Já desde 1985, a FEEMA começa a fiscalizar a CSN, que antes era poupada por imprimir o caráter de área de segurança nacional ao próprio município em que estava situada. A CSN foi construída em período anterior aos procedimentos de licenciamento ambiental instituídos no final dos anos 1970.
Assim, a companhia acumulou um número muito grande de multas ambientais. Tais multas vão aumentando de valor monetário e simbólico com o recrudescimento das leis ambientais.
Também nesta época, os trabalhadores da CSN descobrem a nova doença da leucopenia, isto é, o primeiro estágio diagnosticável do benzenismo, que é intoxicação pela emissão do gás benzeno da coqueria da CSN, causando doença grave, aparentada ao câncer.
Essa descoberta de doença e mortes, anteriormente naturalizadas como decorrentes de uma vida com excesso de trabalho, deveu-se à ação de assessorias de saúde pública ao sindicato de Santos (SP), depois estendida ao sindicato de Volta Redonda.
Trata-se da entrada de outro grupo profissional tradicional, os médicos e engenheiros do trabalho, reconvertendo-se para a área de saúde do trabalho e da saúde ambiental, assim como para a assessoria sindical, conforme relata LOPES (2006).
O auge da atuação sindical tem um fim no período de preparação para a privatização da empresa entre 1990 e 1993. O sindicato, nesse processo, se desfilia da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e passa para a Força Sindical, após lutas significativas entre facções sindicais, e passa a apoiar o plano de privatização com a entrega de ações aos operários e a perspectiva de ganhos imediatos (embora com perdas mais gerais para a categoria e seu futuro).
No entanto, o governo municipal, ganho por membros associados às lutas sindicais dos anos 1980, trabalha contra a privatização. Alia-se ao Programa de Saúde do Trabalhador (PST), linha de atividade da Secretaria de Saúde Estadual, reflexo do movimento dos médicos sanitaristas pela melhoria das condições de trabalho nas fábricas, novo foco profissional de inspeção do trabalho.
Esta atribuição era antes monopolizada pelos fiscais do Ministério do Trabalho (com sua precariedade institucional de quadros). O PST associa-se aos sindicatos e tem uma atuação quase subterrânea no aparelho de Estado.
No caso de Volta Redonda, procura fazer a CSN assinar um termo de compromisso em torno de problemas de saúde do trabalho e ambiental, e em particular com referência ao caso da leucopenia.
A prefeitura e o governo estadual (com suas secretarias de meio ambiente, de saúde, e com a FEEMA), pressionam e conseguem incluir uma cláusula ambiental no edital de privatização da CSN, no sentido de uma compensação ao “passivo ambiental” da empresa.
É como se, no momento em que a empresa tende a desinvestir-se do conjunto da cidade, a parte mais mobilizada da população venha exigir novas compensações em decorrência da mudança do pacto implícito da empresa com a cidade, denunciando um novo aspecto antes “naturalizado”; ocorre aí como que uma “descoberta da poluição”, conforme relata de forma relevante LOPES (2006).
Várias ações na justiça contra a CSN, com propostas intermitentes de acordos em torno de compensações ambientais, acordos ora com a prefeitura, ora com a FEEMA, continuam a tramitar sem solução durante os anos 1990. A Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro consegue constatar, através de biólogos ictiologistas, a deformação de peixes contaminados no rio Paraíba do Sul, e promove audiências públicas.
O grupo privado que assumiu a CSN não consegue ter iniciativas no plano ambiental. Várias instâncias administrativas e atores envolvidos em ação contra a CSN se somam para encurralar a empresa, com a FEEMA, a Secretaria de Meio Ambiente do Rio de Janeiro, a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O BNDES bloqueou créditos por desrespeito ao edital de privatização. Finalmente, entre 1999 e 2000, o Ministério Público e outras instituições e atores envolvidos conseguem fazer a empresa assinar um termo de compromisso, um termo de ajuste de conduta (TAC), pelo qual a CSN se compromete a engajar-se num plano progressivo de metas de despoluição de setores da fábrica e a contribuir para o saneamento da cidade como compensação ambiental.
Isso se faz através de um sistema de seguro pelo qual a empresa, se não cumprir as metas previstas, tem que desembolsar altas quantias estipuladas para os governos estadual e municipal.
Esse desenlace tem a ver com a reorganização interna da empresa dando mais poder à gerência ambiental, sendo contratado para esse fim um técnico com experiência anterior na FEEMA e em consultorias privadas.
Além de acuada pelas instituições e atores nacionais, a CSN perderia possibilidades de mercado com essas acusações ambientais, tendo ela necessidade de certificações e selos ambientais para aumentar sua participação no mercado internacional.
Poderia se manifestar que o desencadeamento destas redes de certificação por demandas sociais, atualmente, tem se mostrado muito eficientes na obtenção de resultantes ambientais satisfatórias.
Ao mesmo tempo, localmente, os movimentos sociais de Volta Redonda se mobilizam em torno de uma Agenda 21 municipal que consegue congregar diferentes lutas anteriores.
O caso de Volta Redonda tem um interesse particular pela clareza com que se vê ocorrer um processo histórico de passagem de intensos e importantes conflitos situados no interior da fábrica, por questões trabalhistas levadas adiante pelo sindicato operário, para uma situação de conflito da cidade contra a fábrica, por motivos ambientais de poluição industrial.
Nessa passagem de uma década para a outra, dos anos 1980 para meados dos anos 1990 em diante, se dá a “descoberta da poluição” na cidade, e se intensifica nacionalmente a questão pública da preservação do meio ambiente, e ocorre localmente uma “ambientalização” dos conflitos sociais.
Nas outras áreas pesquisadas também encontramos processos similares de interiorização das preocupações ambientais.
Em Angra dos Reis (RJ), seguimos o processo conflituoso entre a empresa ELETRONUCLEAR, responsável pelas usinas nucleares, e movimentos ambientais e instituições locais, inclusive a prefeitura, desde o movimento “Hiroshima Nunca Mais” até a audiência pública de 1999 sobre o licenciamento de Angra 2 e seus desdobramentos posteriores, com um processo de negociação de compensações ambientais a serem concedidas pela empresa.
Referências:
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LOPES, José Sérgio Leite, Sobre processos de “ambientalização” dos conflitos e sobre dilemas da participação, Horiz. antropol. vol.12 no.25 Porto Alegre Jan./June 2006, http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832006000100003
Dr. Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
Sugestão de leitura: Civilização Instantânea ou Felicidade Efervescente numa Gôndola ou na Tela de um Tablet [EBook Kindle], por Roberto Naime, na Amazon.
Nota da Redação: Sugerimos que leia, também, as partes anteriores desta série de artigos:
Ambientalização de conflitos sociais, Parte 1/5
Ambientalização de conflitos sociais, Parte 2/5
Ambientalização de conflitos sociais, Parte 3/5
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 20/09/2018
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