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De volta ao passado – Política pública sobre drogas poderá ser orientada pela abstinência, com foco na internação em clínicas de reabilitação

 

De volta ao passado – Política pública sobre drogas poderá ser orientada pela abstinência, com foco na internação em clínicas de reabilitação

Por Katia Machado – EPSJV/Fiocruz

A política pública sobre entorpecentes pode sofrer uma mudança profunda. É que, com 16 votos dos 22 membros presentes, no último dia 28 de fevereiro o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad) aprovou (28/2) a resolução apresentada pelo ministro do Desenvolvimento Social e conselheiro do Conad, Osmar Terra, segundo a qual a “orientação central da Política Nacional sobre Drogas deve considerar aspectos legais, culturais e científicos, em especial a posição majoritariamente contrária da população brasileira quanto a iniciativas de legalização de drogas”.

Em termos práticos, o conceito de abstinência se sobreporá ao de redução de danos no cuidado dos usuários de drogas.

A resolução privilegia as comunidades terapêuticas e grupos de mútua ajuda — a maioria vinculada a igrejas —, em detrimento dos Centros de Atenção Psicossocial para o cuidado de usuários de álcool e outras drogas (CAPS-AD), dispositivo que foi considerado o marco da Reforma Psiquiátrica brasileira.

“Trata-se, neste caso, de um retrocesso, que tem por trás interesses empresariais e econômicos de conservadores com muita influência na política”, sentencia o psiquiatra Marco Aurélio Soares Jorge, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). A proposta de redução de danos propõe minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas. No Brasil, a primeira experiência nesse sentido ocorreu em 1989, na cidade de Santos, com a distribuição de seringas estéreis entre usuários de drogas injetáveis, com o objetivo de conter a disseminação do HIV/Aids.

Para o pesquisador, além de colocar como única via de tratamento as comunidades terapêuticas, a proposta de Osmar Terra focaliza a droga e não o usuário, tratando a questão como um problema de segurança pública e não de saúde pública.  “A abstinência, ao seguir o caminho do combate veemente às drogas, não considera o indivíduo. Já a redução de danos, que não é contra a abstinência, mas a tem como último recurso, desponta como uma estratégia que defende o protagonismo da pessoa no cuidado, dando-lhe autonomia para alcançar melhores níveis de saúde”, explica.
Marco Aurélio também critica o fato de Osmar Terra usar como argumento para sua proposta o “senso comum” que a sociedade tem sobre as drogas. “Isso foi uma estratégia de tentar pautar mudanças na política, porque, na verdade, pesquisas científicas dizem o contrário: a abstinência não resolve o problema do consumo. Se fossemos usar o senso comum em relação à pena de morte, por exemplo, já teríamos posto a proposta em prática para resolver o problema da criminalidade. Hoje, muitas pessoas defendem a pena de morte, inclusive indivíduos que têm pretensão de ser presidente da república”, compara.

Avanço?

A nova resolução, ainda que não tenha força de lei, deve orientar as políticas públicas do governo federal a respeito de drogas, pois o Conad — vinculado ao Ministério da Justiça — tem poder deliberativo. Segundo Terra, o novo texto reflete uma posição do governo e implica “avanço” para enfrentar a violência. “Eu acho que é um avanço importante, num momento em que a gente está se preparando para enfrentar a violência no Brasil”, discursou, destacando também que “não existe exemplo no mundo de países que tenham liberado o uso de drogas e que tenha tido bons resultados”.

Marco Aurélio discorda dessa avaliação, lembrando que muitas vezes usa-se do medo para impor certas políticas, que têm sempre como foco o combate. Foi isso que aconteceu com o crack, lembra o pesquisador. “Diziam que havia dois milhões de usuários de crack. A Fiocruz então faz uma pesquisa, baseada em modelos científicos, e comprova que são 370 mil usuários da droga”, revela, observando ainda que a proibição não impede o acesso às drogas. “Ela apenas cria uma desregulamentação da droga. Controlar o consumo implica regulamentar, impor restrições e regras, além de estabelecer taxas e impostos”, detalha. Ele lembrou que na história dos Estados Unidos, a Lei Seca, também conhecida como O Nobre Experimento ou Proibição (Prohibition), proibindo entre 1920 e 1933 a fabricação, o transporte e a venda de bebidas alcoólicas, não coibiu o consumo. “Pelo contrário, foi o período em que mais se bebeu nos EUA”, garante.

O novo documento do Conad, segundo Marco Aurélio, vem na esteira de mudanças aprovadas em dezembro do ano passado pelos gestores da saúde, entre as quais a suspensão do fechamento gradual de leitos em hospitais psiquiátricos, como previa a Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, e o aumento dos repasses públicos para leitos nesses locais (veja aqui entrevista com Pedro Gabriel Delgado, militante da luta antimanicomial). Segundo anunciou o ministro da Saúde, Ricardo Barros, na ocasião, a ideia é quadruplicar o número de vagas financiadas com dinheiro público em comunidades terapêuticas (veja aqui matéria sobre os interesses privados na saúde mental) ainda em 2018, chegando a 20 mil.
Ausência de debate

Ainda durante a votação da resolução, alguns conselheiros questionaram a falta de debate da proposta com a sociedade. “Não teve debate nenhum, as pessoas que pensam diferente não foram ouvidas, foi uma proposta apresentada meio que no apagar das luzes”, afirma o pesquisador da EPSJV/Fiocruz, que acompanha o debate sobre o tema por sua atuação na formação em saúde mental, especialmente no cuidado a usuários de álcool e outras drogas.

Em 1º de fevereiro, a votação do texto também foi incluída na pauta da reunião do Conad em cima da hora. Lançando mão do regimento, a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o Conselho Federal de Serviço Social pediram vistas e conseguiram adiar a decisão. Na ocasião, o médico e pesquisador da Fiocruz, Francisco Inácio Bastos, representando a SBPC no colegiado, pediu vistas por não concordar com a resolução e por considerar que tratados internacionais tratam o tema de maneira mais apropriada e sintonizada com um mundo em permanente transformação. Ele lembrou, em entrevista ao Jornal da Ciência à época, que o Brasil é signatário de diversos tratados das Organizações das Nações Unidas (ONU) e, portanto, mantém estreita relação com as agendas de suas agências sobre o tema das drogas, buscando desarticular uma estrutura de associação quase automática entre abuso de substâncias e crime e entre as drogas e o terrorismo.

Em seu pedido de vista, o representante da SBPC no Conad defendeu que o Brasil aguardasse a votação, em Viena, na Áustria, de uma proposta sobre o tema. Neste encontro, realizado de 5 a 9 de fevereiro, a ONU aprovou um padrão internacional para o tratamento do uso de drogas que, entre outras coisas, diz que o uso abusivo de substâncias é um problema mundial que afeta significativamente as pessoas e suas famílias, com um custo muito alto para a sociedade, estimado em 1,7% do PIB em alguns países.

De maneira geral, o texto da ONU critica o que chama de uma “visão ultrapassada de alguns países”, que discrimina e estigmatiza o usuário e aborda o problema nas instâncias criminais, quando deviam tratar como questão de saúde pública mundial.

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 12/03/2018

 

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