Com 25 praias privadas, Angra dos Reis ensina como os ricos limitam o acesso dos pobres ao mar
Em Angra, uma aula sobre praias privatizadas
Por Rogério Daflon, da Agência Pública
Inspirada por um dia de sol, a então adolescente Irene Chaba Ribeiro se flagrou feliz com a quantidade de belas praias de sua cidade natal, Angra dos Reis, no litoral do Rio de Janeiro. Desde pequena, sua rotina de pôr o pé na areia a levava a pegar dois ônibus, a passar do centro do município e só assim chegar às praias de Figueira, Bica e Tanguazinho. Naquela tarde ela se perguntou por quê. “O que me causava estranheza é que praias perto de minha casa, no bairro Mombaça, bem mais extensas e com águas cristalinas, eram, na prática, privadas”, recordou Irene, hoje uma geógrafa e ativista contra a privatização de praias. Anos depois, passou a participar do que ela chama de “farofadas” em praias restritas, encontros de jovens locais para usufruir daqueles espaços. E resolveu investigar por que certos condomínios se isolam de uma forma tão radical, a ponto de apartar das praias próximas a população da cidade.
Em 2016, assim que começou sua dissertação sobre as praias privatizadas em Angra, Irene participou de um movimento com entidades da sociedade civil, para pôr abaixo um muro construído por um ente privado, obstruindo o acesso à praia da Bica. “Nós destruímos o muro, e ali eu percebi que escreveria minha dissertação não só como pesquisadora, mas como ativista”, disse Irene à Pública. Praias como a da Figueira e Bica, outrora privatizadas, foram reabertas ao público depois de muito protesto.
Filha de engenheiros florestais, ela afirma que a luta pelo direito à praia é contra quem instala mansões de luxo, resorts, clubes, entre outras estruturas que, ao mesmo tempo, inibem a circulação e promovem segregação da areia. Sua dissertação de pós-graduação em geografia na Universidade Federal Fluminense, em vez de abordar a questão da praia a partir de populações tradicionais, como as indígenas, quilombolas e caiçaras, todas com presença marcante no litoral de Angra, dá ênfase justamente à sua experiência pessoal e de seus pais, membros da Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (Sapê), uma ONG que luta pela praia democrática de uso “comum” – aquela em que a mistura de classes sociais dá o tom sob o sol.
“Indo de encontro à mercantilização da vida, o comum aparece como conceito e horizonte para a produção de relações sociais e de um espaço destinado ao bem-estar comum’’, pontua. “Colocando o direito de apropriação social e de uso coletivo acima do direito de propriedade, o ‘comum’ se mostra como princípio político para a reflexão sobre o direito à praia.”
A historiadora Juliana Malarba, da ONG Fase, traz um alerta à discussão sobre o “comum”. Ela diz que a praia permite o uso comum, uma sociabilidade e também a “reprodução social de lazer e de trabalho” – incluindo aí pescadores, marisqueiros e outros tipos de trabalho à beira-mar. “É claro que não se pode degradar a praia, mas não podemos cair no conto da natureza intocada. Condomínios de luxo, por vezes, propagandeiam que preservam a praia. Esse é um falso argumento, em nome de interesses privados”, alerta.
A geógrafa mapeou 55 praias de Angra dos Reis e as distinguiu em termos de acesso da seguinte forma: acesso privatizado, ou seja, proibido ao público e franqueado a proprietários e hóspedes; acesso livre; acesso controlado, com a entrada na praia franqueada sob condições, como seguranças em portarias e cancelas exigindo identificação do usuário ou estabelecendo horários à circulação e permanência; acesso de interesse estatal, como áreas militares; e, por fim, falta de acesso pela impossibilidade de se chegar por terra. Segundo seu levantamento, 8 são praias controladas, e nada menos que 25 são privatizadas.
Luciano Huck: multa de R$ 120 mil
Igor Miranda, procurador do Ministério Público Federal, afirma que a lei da praia livre é desrespeitada de forma recorrente em Angra dos Reis. “Aqui, há um número elevado de ações contra o que se chama de privatização de praias. Há casos impressionantes de condomínios que fazem de tudo para que praias só sejam frequentadas por seus moradores’’, disse o procurador à Pública.
Há quadros gravíssimos de apropriação da areia e do mar públicos que perduram desde os anos 1970 em Angra dos Reis, a partir da construção da Rodovia Rio-Santos, que aumentou o potencial turístico e imobiliário da região. O Ministério Público Federal (MPF) investiga, por exemplo, o heliponto instalado no mar próximo à faixa de areia na praia do Morcego, na ilha da Gipoia. O MPF não cita nomes nem endereços, mas admite que está em fase de procedimentos em condomínios na BR-101, a Rodovia Rio-Santos. Na mesma ilha, há procedimentos que investigam a existência de impedimentos de acesso a praias. Segundo o MPF, são muitos os casos ao longo da via de condomínios que impedem acessos a praias. A Pública fez um pedido para que o MPF listasse todos os casos, mas não foi atendida em sua demanda.
Luciano Huck, que chegou a ser cotado como candidato à Presidência em 2018, foi condenado por ter cerceado o acesso à praia em frente de sua mansão na Ilha das Palmeiras. Depois de recorrer da condenação, adiando-a por seis anos, o titular do programa “Caldeirão do Huck”, da Rede Globo, pagou recentemente uma multa por cercar de boias o mar em frente à sua residência em Angra dos Reis, a qual já vendeu para o empresário Joesley Batista, dono da JBS e preso pela Polícia Federal.
Igor Miranda, o promotor do Ministério Público Federal de Angra dos Reis, disse à Agência Pública que o próprio Luciano Huck reconheceu a sentença e pagou R$ 40 mil. “Mas ele precisa pagar mais R$ 80 mil, porque deixou as boias 40 dias após a sentença”, garantiu o procurador. Como Huck não quis mais tentar novos recursos, a sentença foi confirmada pelo Tribunal Federal Regional da 2 Região. A multa adicional era de R$ 2 mil por dia.
No documento, o MPF justifica a multa adicional: “Preliminarmente, que foi deferido parcialmente às fls. 76/78 o pedido formulado pelo MPF de concessão da antecipação dos efeitos da tutela, determinando que, no prazo de dez dias, o réu Luciano Huck procedesse a imediata retirada da estrutura de cerco aparentemente dedicada à maricultura, existente no entorno da Ilha das Palmeiras, que se estende ao longo de toda a faixa costeira da residência do réu Luciano Huck, sob pena de retirada compulsória e/ou imposição de multa diária no valor de R$2.000,00 (dois mil reais), no caso de descumprimento. Não obstante, o réu Luciano Huck não cumpriu a medida liminar e interpôs recurso de agravo às fls. 105/126. Em razão de tais condenações, do trânsito em julgado ter ocorrido em 01 de agosto de 2017, bem como o executado ter cumprido parcialmente o julgado, faz-se necessário o cumprimento integral da sentença”.
O MPF deixa claro que Huck ocupou um espaço público, como enfatiza o texto da própria ação: “foi proferida sentença resolutiva de mérito, no bojo da qual restou declarada em face de Luciano Huck a ilegal instalação de cerco de boias, que resultou na privação da coletividade de bem público de uso comum. Tal fato, inexoravelmente, fez presumir o resultado danoso em detrimento da coletividade e dos frequentadores do local (turistas e moradores da localidade)”.
A condenação data de 2011 e foi proferida pela juíza Maria de Lourdes Coutinho Tavares. À época, ele alegou que as boias eram para o cultivo de mariscos. Na sentença, a juíza já apontava a vontade do apresentador em privatizar um espaço público: “A maricultura seria um pretexto para legitimar a pretensão não acolhida pela lei, de apoderamento de bem de uso comum do povo”. Ativista ambiental de Angra, Ivan Marcelo Neves disse à Pública que Huck iniciou a obra de sua mansão na ilha no início dos anos 2000, mas só teria conseguido uma licença do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) em 2004.
A Pública ligou para o Inea para confirmar a licença, mas não obteve retorno do instituto. Mas, segundo Ivan, Huck, sem licença ambiental, fez também o que se chama tecnicamente de engorda de praia. Pegou areia do lugar, e trouxe mais areia em lanchas, para fazer um cantinho de praia particular. “Ele fez essa engorda de praia sem amparo [legal]”, diz Ivan, acrescentando que a casa foi construída em desconformidade do zoneamento da Área de Proteção Ambiental Tamoios.
A liderança local disse que Huck quis se isolar com boias, também, porque turistas que passeavam de barco e até paparazzis queriam fotografar famosos levados à ilha. “O casal de atores norte-americanos Demi Moore e Ashton Kutcher chegaram a ser hospedar na mansão em Angra. Um paparazzi chegou a quebrar uma perna caindo de uma árvore”.
A partir de 2007, a prefeitura de Angra chegou a processar Huck por construção irregular, e o apresentador foi defendido pela então primeira-dama fluminense Adriana Ancelmo, advogada e esposa do então governador Sérgio Cabral. Coincidência ou não, Cabral fez, em 2009, o decreto 41.921, que tem normas mais frouxas para construções em algumas regiões de Angra dos Reis, inclusive aquela onde está instalada a mansão, que foi afinal vendida em 2013 ao empresário Joesley Batista, atualmente preso em decorrência da Operação Lava-Jato. Como a Procuradora Geral da União está questionando o decreto estadual, a mansão, com um novo dono, tem à sua espreita o fantasma da irregularidade.
Procurado pela reportagem, Luciano Huck não respondeu às perguntas.
Um tour entre praias privatizadas
Irene sonha em ser professora de geografia. De olho nas encostas de seu município, ela acompanhou a reportagem da Pública em uma aula de mais de cinco horas, a bordo de um barco, apontando as praias de acesso dificultado.
Logo no início da nossa “vistoria”, ela chamou atenção da equipe: “Olha aquilo ali”. Trata-se da foto abaixo, na qual uma mansão, com ares de palácio medieval, avança sobre a areia, em um dos extremos da praia Grande. Trata-se de um caso de praia sem acesso, de acordo com a classificação da pesquisadora. “Já tentei ir à praia por ali, mas a mansão não oferece qualquer caminho. Ou seja, aquele canto da praia, na prática, é da família dona da mansão. Um desrespeito à lei, é claro”, resume.
Que dissertação excelente!
Certa vez, fui a um condomínio em Angra e fiquei surpreso porque não havia ninguém na praia.
Fascistas tomadores de praia ñ passarão!!!
Que tristeza, que cachorrada! O MPF tem que ir atras disso mesmo, mas pelo que vi, leva anos para alguma resposta, que nem sempre é uma resolução…