Trabalho escravo e desmatamento na Amazônia: homens cortam árvores sob risco e ameaça
IHU
Entre acidentes fatais e ameaças dos donos de serrarias, homens cortam árvores de modo ilegal no Pará. Crime afeta os trabalhadores, os indígenas e a floresta
A reportagem é de Ana Aranha e Tania Caliari, publicada por Repórter Brasil, 14-03-2017.
Novato no ofício de derrubar árvores em regiões que deveriam ser preservadas, João se perguntava porque aceitara aquele ganha-pão “errado demais”. Estavam em meio à floresta amazônica nativa, a 90 quilômetros da rodovia Transamazônica, oeste do Pará. Ele e seus colegas haviam acabado de derrubar a primeira das dez maçarandubas que cortariam no dia, quando ouviram o ronco de carros. Espiando entre as árvores, viram a chegada de homens armados, vestidos com coletes da “federal”.
“Meu deus, me tira dessa, não me deixa morrer”, ele pedia, em voz baixa, enquanto corria mata adentro. Há apenas 11 dias no ramo, João já ouvira alertas dos colegas mais experientes sobre como equipes do estado tratam trabalhadores como eles: repressão, prisão e, segundo corre pela rádio peão, até violência física.
João fugia porque não passou pela sua cabeça a possibilidade dos funcionários do estado estarem ali para lhe proteger. Mas era esse o objetivo da equipe liderada pelo auditor fiscal do Ministério do Trabalho José Marcelino, e integrada por representantes do Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública de União e com Proteção da Polícia Rodoviária Federal. A operação ocorreu em outubro de 2016 no município de Uruará.
A ação testava uma nova estratégia para aplicar a lei na fronteira da destruição da floresta. Ao invés de tratar o trabalhador na ponta como inimigo, a ideia era reconhecê-lo como vítima e até um possível aliado no combate aos crimes da indústria da madeira.
Quando finalmente foram encontrados, João e seus colegas deram longos depoimentos que revelaram crimes muito além dos ambientais. O primeiro deles foi a exploração de trabalho escravo, crime atribuído à pequena serraria M. A. de Sousa Madeireira, na sede da cidade de Uruará.
João trabalhava das 6 da manhã às 6 da noite, sem carteira assinada e sem equipamento de proteção. Embora cortar árvores seja uma atividade de grande risco, com um dos mais altos índices de morte e amputação do país, não havia medidas mínimas de segurança. Acidentes fatais eram descritos como ocorrências banais. “Teve um cara lá que fazia a mesma coisa que eu, morreu. Estava distraído, passou bolando um cigarro. A tora caiu por cima dele, de cima do caminhão. Acabou, foi pro cemitério”, conta João.
No barraco, nada de primeiros-socorros ou qualquer remédio. Apenas uma espingarda para proteção e caça. Além de uma moto velha para emergências, como ataque de bicho ou acidente. Mas os trabalhadores nem contavam com a possibilidade de socorro. “Lá não tem acidente, lá tem morte. Se tu fizer errado, tu já se foi”, diz outro trabalhador. A equipe era composta por quatro homens, responsáveis por derrubar e empilhar as árvores no caminhão, e uma cozinheira.
Mesmo para João, que tem estrada nas armadilhas que se apresentam para migrantes em busca de emprego pelo Brasil, o ofício de derrubar árvores estava além de qualquer outra experiência. Pior do que as empreitadas pela construção civil no sudeste. Pior até do que a passagem por carvoarias no Maranhão, quando seu pulmão doía de tanto tossir.
No barraco onde dormiam, sem paredes e com piso de terra batida, nada barrava o vento frio da madrugada, nem a visita de insetos peçonhentos e outros animais. “Teve uma noite que o cara acendeu a lanterna, tava lá a cobrazona. Mais de dois metros, grossa. Ele pegou uma madeira e deu em cima. Matou na paulada”, lembra João. Não é raro o relato de visitas de onças na região, a reportagem testemunhou as marcas de suas patas pelo chão.
As refeições, feitas em dois fogareiros de argila improvisados em latas de 18 litros, eram de arroz, feijão e macarrão. Com eventuais pedaços de carne de sol, que ficavam pendurados em um varal bastante visitado por moscas. A água vinha em tonéis, com um “farelinho” no fundo. O banho de balde era amparado por um biombo de folhas de palmeira e lona. Para as demais necessidades, a floresta era o banheiro.
O trabalho escravo foi caracterizado devido ao risco que corriam ao exercer as atividades e às condições degradantes em que viviam na mata.
A serraria M. A. de Sousa Madeireira foi obrigada a contratar e demitir os cinco funcionários e a pagar verbas rescisórias no total de 31 mil reais. Na hora do pagamento, o auditor explicou que é protocolar conferir o dinheiro na frente do trabalhador. Que surpresa quando, no acerto para a cozinheira do grupo, faltavam mil, dos 3.900 reais que ela teria a receber. A advogada da serraria se desculpou, “foi um engano”, e o ritual de contar cédula por cédula continuou até o último trabalhador receber.
Crime contra trabalhadores, indígenas e a floresta
Em seu escritório empoeirado, Manoel Araújo de Sousa, dono da serraria, argumentou que não era responsável pelos trabalhadores. A frente de extração seria uma iniciativa autônoma de um de seus ex-empregados. Depois, admitiu que ficaria com parte da madeira e que era “dono” da terra onde eles trabalhavam, assumindo a responsabilidade.
Para provar que a atividade seria legal, apresentou um mero contrato de compra e venda. Sem registro da escritura ou autorização ambiental. O caso ilustra bem o cipoal de crimes do setor, que combina ilegalidades ambientais, trabalhistas, fundiárias, contra o meio ambiente e contra comunidades locais.
Não seria possível ter qualquer autorização ali, já que a floresta de onde Manuel tirava madeira é terra da união embargada pela justiça. Ainda em 2007, quando já havia evidências do avanço madeireiro na região, o Ministério Público Federal contestou um projeto de assentamento proposto no local. Os procuradores suspeitavam que seria apenas uma justificativa para a abertura de estradas e retirada de madeira.
“Tais projetos não atendem a uma autêntica demanda de potenciais clientes da reforma agrária. São, antes, resultado da pressão do setor madeireiro junto às esferas governamentais, que vislumbram nos assentamentos um estoque de matéria-prima”, lê-se na Ação Civil Pública movida contra a Superintendência do Incra em Santarém, Pará.
A ação segue seu trâmite na Justiça Federal, e o saque da madeira avança.
Mas a serraria de Manoel é peixe pequeno no mar de ilegalidades operado pela indústria madeireira na região. A cidade de Uruará integra um dos maiores polos em expansão da indústria madeireira na Amazônia brasileira. A ilegalidade, porém, é crescente e explícita. Qualquer um pode ver os caminhões sem placa, carregados de toras de árvores nativas, andando em comboio pela Transamazônica. Muitos saem de dentro de terras indígenas, fartas no entorno da rodovia federal, que corta a bacia do Xingu.
Estima-se que 62% da madeira retirada do Pará seja ilegal. Os cálculos são de estudo do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente), que cruzou a quantidade de madeira produzida em 2009 com o volume autorizado pelos órgãos ambientais.
Além do prejuízo à floresta, a ilegalidade do setor também pressiona povos indígenas, assentados e comunidades ribeirinhas, que têm seus territórios invadidos para o roubo da madeira.
Dias antes do flagrante, a equipe do Ministério de Trabalho fizera incursões na Terra Indígena Cachoeira Seca. Lá, vivem os Arara, índios de recente contato.
Pressionados pela invasão dos madeireiros, estão ficando ilhados dentro de sua terra. Evitam caçar em certas áreas e escutam o barulho das motosserras de diversos pontos. O caso é acompanhado de perto pelo Instituto Socioambiental (ISA), que há anos divulga estudos e alertas sobre a gravidade do caso.
A equipe de Marcelino passou dias pelas pequenas estradas dentro da terra indígena, viram barracos iguais ao de João, pilhas de toras, além de queimadas. Porém, ao cruzar com um homem de moto, foram informados que poderiam desistir, a notícia sobre a presença “da federal” já circulava pelo sistema clandestino de rádios.
Escondidos sob a floresta
Embora centenas de toras já tivessem saído dali, o local onde João foi resgatado não aparece nos mapas de desmatamento. Isso porque sua tarefa era buscar apenas as árvores mais valiosas, fazendo o que se convencionou chamar de “extração seletiva de madeira”: a árvore é escolhida com cuidado e cortada individualmente, sem abrir as clareiras detectadas por satélite.
A prática está crescendo justamente porque dribla a fiscalização. Depois que as árvores valiosas são retiradas e levadas para a serraria, a origem ilegal é “lavada” com notas de planos de manejo (locais autorizados a fazer a extração seletiva de alguns tipos de árvores nativas). Embora o funcionamento do esquema seja bem conhecido por especialistas e autoridades brasileiras, ainda não há uma estratégia para furar o cerco.
Entre todos os crimes que a ilegalidade do setor esconde do radar do estado, o trabalho escravo é um dos mais graves. Apenas no Pará, 931 trabalhadores foram resgatados enquanto desmatavam ou extraiam árvores de 2003 a 2016, segundo cruzamento de dados oficiais feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
A relação “indissociável” entre o trabalho escravo e a retirada ilegal de árvores foi uma das conclusões de pesquisa inédita feita pela Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão. O estudo aponta que os riscos e condições degradantes enfrentados por João são comuns aos milhares de trabalhadores do setor (Veja animação sobre o estudo: “Quem são os homens que derrubam a floresta”). Realidade que permanece invisível aos órgãos públicos.
São tantos os casos que, enquanto aguardavam a regularização de João e seus colegas, os fiscais seguiram outras pistas e resgataram mais sete trabalhadores cortando madeira em situação de trabalho escravo. Dessa vez o empregador era Eudemberto Sampaio de Souza, dono da serraria Betel, também responsabilizado pelo crime.
Quando se alastrou pela cidade a notícia sobre os fiscais, trabalhadores começaram a bater na porta do hotel onde a equipe estava hospedada. Dessa vez, os relatos eram ainda mais pesados. Falavam de ameaças físicas, da contratação de pistoleiros e homicídios que seriam encomendados pelos donos das serrarias.
Funcionários ou reféns?
“Nós viemos aí, mas estamos com medo. Muito medo mesmo”, disse um dos homens que buscou a ajuda dos fiscais. Ele contrai o rosto ao contar que seu patrão contratara um matador profissional para vigiar seus passos, e de outros colegas, desde que eles se atreveram a cobrar um pagamento atrasado.
O nome dos empregadores denunciados por ameaças de morte estão sendo investigados, mas não serão identificados para não colocar ainda mais em risco a vida dos trabalhadores.
São muitos os relatos sobre calotes seguidos de violência para fugir da dívida. “Ele [dono da serraria] fala: ‘melhor pagar 3 mil para um pistoleiro, do que pagar 5 ou 6 mil pra um funcionário’”. Realidade corroborada por outros entrevistados: “chega no final do mês, se tiver muito pra receber, eles mandam matar. Eu já vi isso acontecer. Foi dentro da cidade mesmo, executaram ele”.
Homens de baixa renda, muitos analfabetos e migrantes, os trabalhadores não têm a quem recorrer, pois não confiam nas autoridades locais. “A polícia militar aqui é um perigo. Vai na serraria dele pegar dinheiro, pegar madeira, tanto a militar como a civil. Se algum de nós denunciar um cara desse para a polícia daqui, isso é suicídio”, disse outro trabalhador.
Se a violência já parece desproporcional para quem cobra seus direitos na cidade, é ainda pior na mata. O total isolamento, na maior parte das vezes, faz com que os trabalhadores tenham medo de fazer qualquer tipo de reclamação.
Isso quando não são abandonados, sem meio de locomoção. “No dia da votação [eleições municipais 2016], a gente passou cinco dias no mato sem chegar rancho [comida]. Nem vir pra votar ninguém veio”, lembra um tratorista.
“Não tem como ir e vir, o patrão não deixa. Se não ficar no mato, perde o emprego. Só o patrão vai na casa da gente dar algum recado. A gente só recebe notícia”, diz outro trabalhador, que tem filhos pequenos na cidade.
Diante do alto número de denúncias sobre violências que vão além do direito trabalhista, o procurador do Ministério Público do Trabalho Allan Bruno, que também integrava a operação, recolheu as denúncias e repassou ao Ministério Público Federal, que deve investigar os casos dentro de possíveis ações penais sobre retenção de salários e ameaças à vida, além de crimes de natureza ambiental, fundiária e fiscal.
Um longo caminho para a mudança
No segundo flagrante de trabalho escravo feito pela equipe, a resposta do empresário responsabilizado pelo crime revela o modo como os madeireiros enxergam os trabalhadores.
“A gente pede os documentos para o suposto funcionário, eles falam que perderam. Você pede o nome, eles dão apelido. Muitos são drogados, pé inchado [alcoólatras]. São pessoas que surgem do Mato Grosso, do Maranhão, da Bahia, do Pernambuco. Ninguém sabe sua história, ninguém sabe o seu passado. Então isso não se vê, que muitas vezes a gente leva um cara desses para trabalhar e estamos salvando a vida dele”, diz Eudemberto Sampaio, dono da serraria Betel.
O depoimento é um termômetro da baixa disposição do setor para se legalizar. Ao mirar na erradicação do trabalho escravo, o Ministério do Trabalho mexe em um dos pilares da ilegalidade, mas há muitos outros.
O tamanho do problema foi exposto pela Operação Madeira Limpa, deflagrada pelo Ministério Público Federal e Polícia Federal. A operação prendeu 21 pessoas na região oeste do Pará em 2015, entre eles três funcionários públicos de diferentes esferas do governo. A quadrilha fazia desmatamento e extração seletiva ilegal de madeira, grilagem e coagia os assentados a autorizar a retirada de árvores de suas terras.
Alguns dos casos denunciados na operação já estavam na “Lista Suja do Trabalho Escravo”, que reúne os flagrantes do Ministério do Trabalho. Entre eles estava a madeireira Iller, responsabilizada por trabalho escravo e crime ambiental. A madeireira faz parte da segunda parte da investigação da Repórter Brasil. Aos rastrear degraus acima da cadeia de fornecedores dessa e de outras serrarias, a reportagem descobriu relações comerciais com fornecedores de grandes marcas nacionais e internacionais.
O auditor do trabalho José Marcelino lembra que essa operação foi apenas o começo de uma investigação de fôlego que busca descobrir o funcionamento da indústria ilegal de extração seletiva de madeira em em parceria com o MPF e MPT e em uma tentativa de diálogo com órgãos ambientais e fundiários.
“Temos que aprender como entrar nesse setor, estudar as estratégias”, afirma. Marcelino já aprendeu que, na ponta, trata-se de um setor desorganizado e que convive com altos riscos econômicos. “A derrubada das árvores não quer dizer que está garantida a venda da madeira. E, como o empresário não tem um capital de giro adequado, ele não arca com os custos para tratar os trabalhadores de forma adequada”, avalia.
Apesar do aparente improviso, Marcelino sabe que a escolha em fazer a extração ilegal é uma decisão bastante racional, baseada em um ambiente de baixo investimento empresarial legalizado, grande potencial de exploração de trabalhadores vulneráveis e baixo risco de serem pegos pela fiscalização.
Após receber o dinheiro da rescisão, João saiu dizendo que voltaria para o mato, mesmo que fosse nas mesmas condições, se não conseguisse outro emprego nos próximos meses.
“Eu não queria serviço de destruir a natureza. Mas tô longe da minha terra, precisando trabalhar. Eu não vou roubar, nem virar mendigo. Se é isso que tem, eu vou encarar”.
*O nome dos trabalhadores foi alterado. Ainda assim, todos correm risco de vida. A Repórter Brasil permanece acompanhando o caso de perto.
(EcoDebate, 20/03/2017) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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