Leonardo Boff, as questões ambientais e o programa ‘Cultivando Água Boa’ da Itaipu Binacional
Por Luísa Moura (Doutora em Sociologia e Editora-chefe da Revista Latinoamérica) e Elissandro dos Santos Santana (Colunista socioambiental e tradutor do Portal Desacato e Revisor da Revista Latinoamérica)
Este artigo seguido de uma entrevista com Leonardo Boff foi publicado na Edição Especial Nº 2 da Revista Latinoamérica e apresenta uma discussão importante acerca de quem é Leonardo Boff, sobre as questões ambientais e, em especial, traz um panorama geral no que concerne ao Programa Cultivando Água Boa da Itaipu Binacional.
Para iniciar a discussão, cabe destacar que Leonardo Boff dispensa apresentação, mas nunca é demasiado pontuar que ele é um dos teóricos mais envolvidos com as discussões em torno das questões socioambientais brasileiras. Como profundo conhecedor dos problemas sociais e ambientais planetários, é, talvez, o pensador brasileiro mais sensível no que tange à ecologia do grito da terra e dos pobres, um incansável defensor dos direitos e da dignidade do Planeta.
Na verdade, ele é importante não somente no cenário nacional, mas, também, internacional, tanto que, juntamente com Mercedes Sosa, a grande cantora do continente latino-americano, e outros nomes de peso de outros continentes e nações como Maurice Strong, Mikhail Gorbachev e Steven Rockfeller, fez parte da Comissão de Redação de um dos documentos mais importantes acerca da situação ambiental planetária – a Carta da Terra. Atualmente, arrisco-me a dizer que é um dos humanos mais envolvidos com a temática do cuidado e com a ética biocêntrica – concepção que parte do pressuposto de que todos os seres que existem, tal qual o homem, têm todo o direito de continuarem existindo.
Diante da história de luta e de socialização de saberes no que se refere aos problemas socioambientais do Brasil, Boff é um entusiasta e apoiador das práticas ambientais do “Cultivando água boa”, pois reconhece nesse projeto um exemplo daquilo que nomeia de boa sustentabilidade.
Feitas essas considerações, externo que este artigo é uma reflexão em torno das concepções de Boff sobre o Cultivando água boa, a partir da leitura do subcapítulo “Um exemplo de boa sustentabilidade: “Cultivando Água Boa” do capítulo “Sustentabilidade e Desenvolvimento” do livro “Sustentabilidade: o que é, o que não é.”. Na referida obra, o projeto é apresentado como um exemplo concreto daquilo que pode significar um desenvolvimento que preenche os requisitos de sustentabilidade. Mas o que é, de fato, o “Cultivando Água Boa” e quais as contribuições que trouxe para a região de fronteira?
Boff nos responde a esta pergunta, pontuando que o projeto “Cultivando Água Boa”, da Itaipu Binacional, em Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná, na fronteira com o Paraguai, região na qual se localiza a Universidade Federal da Integração Latino-americana, mesmo pertencendo ao sistema global vigente, com alta insustentabilidade, rompe com a lógica dominante e mostra que é possível, de baixo para cima, sem hierarquias, a partir do povo e das comunidades e nos quadros de uma determinada região ecológica, criar uma miniatura que poderá, e, possivelmente, deverá ser o futuro de uma humanidade reunida no único Planeta Terra.
Além do que nos apresenta Boff, é oportuno recorrer às informações que estão disponíveis no próprio site do Programa. Nesse espaço, encontramos que o “Cultivando Água Boa” parte do reconhecimento da água como recurso universal e, dessa forma, pode ser considerado bem natural que pertence a todos. O projeto desponta como uma estratégia em âmbito local para o enfrentamento de uma das mais graves crises da humanidade: as mudanças climáticas que colocarão em risco a sobrevivência humana e estão diretamente relacionadas com a água e seus usos múltiplos (a produção de alimentos e de energia, o abastecimento público, o lazer e o turismo). No momento, o projeto conta com alguns programas e ações fundamentados nos principais documentos planetários, oriundos de importantes fóruns de debates a respeito da problemática socioambiental. Cabe destacar que as ações vão desde a recuperação de micro bacias, à proteção das matas ciliares e da biodiversidade até a disseminação de valores e saberes que contribuem para a formação de cidadãos dentro da concepção da ética do cuidado e do respeito com o meio ambiente. Além de desempenhar o papel imprescindível de projeto ambiental, o “Cultivando Água Boa” é um movimento de participação permanente, com a parceria de órgãos governamentais, ONGs, instituições de ensino, cooperativas, associações comunitárias e empresas.
Após esse breve resumo sobre o projeto e seu campo de atuação, é interessante contextualizar historicamente a respeito de como surgiu a ideia do “Cultivando Água Boa”. Mais uma vez, sustento-me em Leonardo Boff para isso. A partir de Boff, tem-se que, em 2003, os diretores Jorge Samek e Nelton Friedrich, juntamente com a equipe que os acompanhavam e os parceiros dos 29 municípios da barragem de Itaipu, partiram do seguinte insight – que a água não se destina apenas para produzir energia elétrica, mas, também, para gerar todo tipo de energia necessária aos seres que dependem vitalmente da água, especialmente, os humanos. A partir disso, afirmaram que a hidrelétrica de Itaipu adotou para si o papel de indutora de um verdadeiro movimento cultural rumo à sustentabilidade, articulando, compartilhando, somando esforços com os diversos atores da Bacia Paraná 3 em torno de uma série de programas e projetos interconectados de uma forma sistêmica e holística e que compõem o “Cultivando Água Boa”.
Como considerações finais acerca do projeto, a partir da leitura do subcapítulo que serviu de ponto de partida para a fundamentação da discussão aqui elaborada, e com base também nas informações encontradas no site do Projeto, percebemos que o que torna o “Cultivando Água Boa” sustentável é o fato de que ele foi todo concebido à luz de documentos planetários como a Carta da Terra, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis, a Agenda 21 e os Objetivos do Milênio. Ademais, o projeto possui uma gestão que se configura como participativa, com o envolvimento de todos os cidadãos, o que o torna horizontal.
Por fim, segundo Boff, os dois lemas da iniciativa do projeto resumem bem a qualidade da mudança desejada e ainda em curso: um novo modo de ser para a sustentabilidade, e o outro: somos as mudanças que queremos no planeta.
Na sequência, apresentamos a entrevista exclusiva que o Dr. Leonardo Boff concedeu à Latinoamérica atendendo à solicitação de Luísa Moura, editora-chefe da revista.
RLA 1: Como se dá a intersecção Ecologia e Direitos Humanos?
Leonardo Boff: A ecologia é mais que uma técnica de gerenciamento de bens e serviços naturais escassos. É um modo novo de relacionamento para com a natureza e a Mãe Terra, mediante o qual o ser humano não se sente dono, mas parte deste todo. E a ecologia, em seu sentido amplo, como vem expressa muito bem pela encíclica do Papa Francisco “Sobre o cuidado da Casa Comum” inclui o ambiental, o social, o mental, o cultural, o cotidiano e o espiritual. Portanto, todo o ser humano está envolvido no ecológico em todas as suas dimensões. Hoje é convencimento dos biólogos e cosmólogos, como enfatizam a Carta da Terra e a encíclica papal, que todos os seres possuem um valor intrínseco, em si mesmo, anterior ao uso que os seres humanos possam fazer deles. Tudo o que existe e vive merece existir e viver e deve ser respeitado em seu direito de estar dentro do processo da evolução junto conosco. O ser humano possui uma singularidade: por ser consciente, foi feito o cuidador do mundo que herdamos. É o responsável para que todos os seres tenham garantido a sua sustentabilidade e que possam continuar a evoluir. O ser humano não está cima da natureza como quem domina – essa era a ilusão dos pais fundadores do paradigma técnico-científico moderno – mas está dentro como parte consciente e responsável com a missão de cuidar e guardar essa herança sagrada herdada do universo ou de Deus.
RLA 2 : Diante de um quadro de financeirização dos recursos hídricos, como podemos sonhar com a justiça social se o acesso a esse recurso essencial à vida ainda é negado a grandes parcelas da sociedade latino-americana e mundial?
Leonardo Boff: Como a água é um bem comum, natural, vital, insubstituível para qualquer tipo de vida, especialmente da humana, ela representa um direito essencial, reconhecido pela ONU. Em razão disso, devem-se elaborar estratégias para se reapropriar do que é comum e que foi ilegitimamente privatizado para benefício de alguns. Em primeiro lugar, usando todos os recursos legais disponíveis. Em seguida mobilizar as populações afetadas. E por fim se reapropiar do que é comum e que, por sua natureza, nunca poderia ser privatizado. Portanto, constitui objetivamente um crime contra o bem comum. Esse ato de reapropriação não pode ser considerado ilegal e criminoso, mas como um ato exigido pela sobrevivência da vida humana e natural. Cochabamba, anos atrás, deixou-nos um exemplo singular. A população se rebelou contra a empresa estrangeira que privatizou a água e colocou preços exorbitantes. E o fez com tal força que ela teve que recuar e, por fim, abandonar o projeto.
RLA 3: Como o cuidado com a água interfere na sustentabilidade das atividades econômicas e no futuro das gerações vindouras?
Leonardo Boff: O cuidado não é apenas uma virtude ou um ato de prevenção e proteção. É mais. Trata-se de um verdadeiro paradigma que define uma relação positiva e amorosa, não agressiva e depredadora dos bens e serviços naturais. O cuidado é tão importante que foi visto filosoficamente como pertencendo à essência humana e à vida. O que não é cuidado definha, adoece e morre. Se não cuidarmos do planeta, de sua biocapacidade, dos limites de seu aquecimento, poderemos ir ao encontro de uma catástrofe de caráter apocalíptico. Sem água ninguém vive. Como ninguém vive sem cuidado permanente. Essa é uma lei inscrita no próprio processo da evolução como os cosmólogos o tem reconhecido. Se as energias originárias não se tivessem articulado com sutilíssimo cuidado, não teriam surgido as estrelas e nem a Terra. E nós não estaríamos aqui para falar destas coisas.
RLA 4: O Senhor conhece bem o programa Cultivando Água Boa. Como se dá o compartilhamento do Programa no Paraguai e em outros países da Bacia do Prata e da América Latina?
Leonardo Boff: Não conheço suficientemente os referidos países para emitir uma opinião responsável. Sei que se trata de um projeto binacional, envolvendo o Brasil e o Paraguai. Ele está sendo difundido entre outras hidrelétricas brasileiras, como a CEMIG de Minas Gerais, no Nordeste, em Goiás e em outros estados. Tenho acompanhado pessoalmente a criação das condições de sua implantação na América Central, em países como Guatemala e República Dominicana. Outros países como o México e a Argentina estão mostrando também interesse. Isso se deve ao fato de que se trata de um projeto exitoso, reconhecido internacionalmente e pela própria ONU. A Binacional Itaipu vem comprovar que mesmo uma grande empresa, das maiores do mundo, pode perseguir políticas ecológicas que preservam e resgatam a vitalidade da natureza.
RLA 5: O que o senhor teria a dizer sobre a metodologia de implantação do programa e sua aceitação pelas comunidades e sua replicação?
Leonardo Boff: Decisivo neste projeto Cultivando Agua Boa é seu método. A estratégia básica é envolver todos os atores da região e as comunidades ribeirinhas ou próximas das bacias hídricas. Tudo começa com uma sensibilização das comunidades e das pessoas. Sem esse primeiro passo, elas jamais entenderão a relevância da cuidar da água e gestar novas relações ecológicas e sociais. É a criação de uma nova consciência. Em seguida vêm os cursos de conhecimento e aprendizado do que significa a água e toda a infraestrutura que ela supõe como a preservação da mata ciliar, a manutenção de cada simples manancial, a pureza da água contra a poluição de dejetos da produção (suínos e gado) e, especialmente, mantê-la livre da contaminação dos agrotóxicos. Outro passo importante é criar as comunidades que se organizam ao redor de um interesse comum de cuidado da água, da introdução da agricultura orgânica, da produção de energia elétrica a partir dos resíduos da produção agrícola e animal, o resgate da cultura popular que se formou ao redor do tema da água, até da culinária e da produção de artesanatos. Trata-se de um projeto complexo e inclusivo, até de populações antes marginalizadas como os indígenas e os quilombolas, que transforma as relações sociais e, principalmente, a consciência no sentido de tratar de outra maneira os bens naturais e o zelo por sua sustentabilidade.
RLA 6: Para finalizar, o Senhor poderia nos dizer como percebe o papel deste programa voltado para o cuidado com a água para emancipação da América Latina no tangente à dependência histórica do continente?
Leonardo Boff: A tendência das potências hegemônicas do processo de globalização é recolonizar novamente a América Latina. A perspectiva imperial da potência mais poderosa que é a América do Norte se rege por dois modos: um só mundo e um só império; e cobrir todos os espaços (full-spectrum dominance) para que a dominação não encontre anti-poderes. Em razão desta estratégia, mantém 800 bases militares em todo o mundo, a maioria com ogivas nucleares. Tais bases estão presentes em vários países da América Latina. Neste momento, estão em negociação com a Argentina duas bases militares, uma no extremo sul, em Ushuaia, e outra na fronteira trinacional Brasil-Argentina-Paraguai onde se situa o maior aquífero do mundo, o Guarani. Como a água é fundamental para tudo e o futuro da economia se encaminha na direção da ecologia, esta visão imperial procura controlar as principais fontes de energia do planeta. O continente latino-americano, ecologicamente, é o mais rico de todos, especialmente, em água potável, florestas úmidas e biodiversidade. Ao querer nos reduzir a colônias, como outrora, significa desmontar nosso processo de industrialização para ficarmos dependentes das tecnologias controladas pelos países ricos, sermos condenados a exportar principalmente commodities (grãos, minérios, água e alimentos em geral). Essa estratégia é de dominação e nos impede de elaborar um projeto nacional próprio e garantir a própria soberania. A estratégia consiste em debilitar as soberanias nacionais para que todos os países se alinhem à única estratégia global, comandada pelas potências militaristas, cujo poder último reside na capacidade de matar a todos e de eliminar toda a espécie humana. Desta forma, haverá uma homogeneização dos espaços econômicos e políticos que facilitará a dominação a partir de um único centro de poder. Tal estratégia, porém, não conta com a resistência dos povos e a crise ecológica da Terra que poderá colocar tudo a perder. Obrigará a humanidade, se quiser sobreviver, a um acordo de uma governança global para equacionar os problemas globais e manter a sustentabilidade da vida e da Casa Comum.
Referências para a construção do texto
BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é: o que não é. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.
http://www.cultivandoaguaboa.com.br/o-programa/sobre-o-programa. Acesso em 14 de novembro de 2016.
Fonte: http://www.revistalatinoamerica.com/edicao-especial-2
in EcoDebate, 27/01/2017
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