Estado dissolvido, artigo de Amadeu Roberto Garrido de Paula
[EcoDebate] Todos que dominam conhecimentos de Teoria Geral do Estado, cadeira preliminar do curso jurídico, deveriam universalizá-los sobre o atual estado do Estado brasileiro. A conjectura não será promissora. Estado organizado deve ter domínio sobre seu território. Não o temos. Deve ser composto por uma nação, cuja maioria converge a um determinado sentido de governo, eleito e legítimo.
É imprescindível que tenha um desenho estrutural de sua forma exposto na Constituição do País. Não o temos. Como negar que não temos federação devidamente delineada na Carta Política, se temos uma guerra fiscal e a todo momento se fala num “pacto federativo”. O Estado deve ser constitucionalizado, segundo normas fundamentais fortes e aplicadas. Não as temos. Muitos preceitos da Constituição não são aplicados e o exemplo vem de cima. Uma lei é constitucional enquanto o Supremo Tribunal Federal não declare o contrário, e isto pode demorar dias, meses, anos, décadas; o tema por seu pautado, ou não, pelo plenipotenciário Presidente da Corte. E mais: o Supremo pode “modelar” os efeitos de seu julgamento.
Nossos irmãos portugueses, mais literais e sinceros, usam o termo “manipular”. Isso quer dizer que o STF pode declarar que a lei é inconstitucional apenas após o seu julgamento. Todas as sujeitas anteriores são aplaudidas por nossa Suprema Corte.
Finalmente, é próprio do Estado a coerção ou coação. O Estado é um aparato provido de força mandamental. Se sua decisão é descumprida, ela deve valer por força incontestável. Caso contrário, teremos uma sociedade desorganizada. O Estado não é Estado porque não tem poder policial para fazer cumprir suas decisões. E seria necessário um mínimo de harmonia federativa para que as decisões fossem únicas e a força, se necessário, convergente entre União, Estados e Municípios. Porém, nossa própria polícia judiciária é cindida entre polícia militar e polícia civil. Não há, consequentemente, hierarquia. O Delegado Civil que vê um criminoso rondar sua Delegacia não pode ordenar ao membro da polícia militar que o capture. Do mesmo modo, o Tenente não pode nada determinar a um investigador.
Quando passaram a assumir sua feição moderna, no século XIX, os Estados eram vistos, primordialmente, como uma estrutura criada pelo povo para defendê-lo. Originário do “pacto social” de Rousseau ou da necessidade de defesa contra os inimigos externos e internos, como acertadamente pontuou Hobbes, partindo da premissa de que “o homem é o lobo do homem”. O Estado nada tinha a ver com empreendedorismo. Empreender era coisa dos particulares, numa economia de mercado, corrigida espontaneamente pela “mão invisível” de Adam Smith. O Estado era apenas o “Estado gendarme”, o Estado que cuida da ordem. No mais, tudo é feito pelos cidadãos. Inúmeros estudos abalizados dissecaram esse tipo de Estado.
Manter a ordem e o ordenamento jurídico é o primeiro papel do Estado. Se ele falha nesse pressuposto, o restante desaba. Como desabou no Brasil neste primeiro quartel do século XXI. E falhou pela desordem da federação e pela cisão dos organismos policiais. Só recentemente o STF declarou qual o mister cabente às guardas municipais. É dizer, criamos organismos anencefálicos para atuar no campo da segurança, até que num distante futuro a Suprema Corte diga o que podem fazer…
Em suma, não há como ressaltar valores como o Estado-Providência, Estado do Bem Estar Social, se ele não cumpre sua função básica, consistente em manter rigorosamente a ordem no País. O Estado brasileiro meteu-se a tudo e não fez nada. O resultado está aí. Falido em seus propósitos sociais por obra da demagogia e quebrado em sua função primordial, o Estado brasileiro não pode ser dominado pelo crime organizado. Já está tudo dominado. As escaramuças de decepar cabeças e arrancar corações, que causa arrepios no mundo inteiro, são apenas a parte visível do “iceberg”. Estonteados, por não ter caminhos, nossos governantes que ainda lutam em prol do restabelecimento do equilíbrio social, estão perdidos. E nossa nação infiltrada e contaminada de cabo a rabo. Conseguimos a liderança na corrida da entropia, do homem em direção ao caos. Não nos surpreendamos se formos o primeiro povo a desaparecer de um planeta de curta existência.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, é Advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas.
in EcoDebate, 23/01/2017
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