O império dos lixões e o custo Brasil do lixo
O império dos lixões e o custo Brasil do lixo. Entrevista especial com Maurício Waldman
Por Patricia Fachin, IHU
A notícia divulgada pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – TCE, de que uma em quatro cidades paulistas tem lixões a céu aberto, evidencia que “estamos diante de um problema estrutural e institucional de gestão, demonstrando a inoperância do Estado em nível local, regional e nacional, à qual eu também agrego a perpetuação das práticas omissivas, sempre com a lógica em protelar qualquer solução para este problema”, diz Maurício Waldman à IHU On-Line.
Waldman informa ainda que somente “3,11% das prefeituras conseguem selecionar entre 75% e 100% dos itens encontrados nas lixeiras”, e o resultado da não adesão à Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS “é uma calamidade que, por sinal, tendencialmente segue no rumo de agravar ainda mais a situação sanitária e ambiental vivida pelo estado de São Paulo e pelo país como um todo”.
Para Maurício Waldman, a má gestão do lixo no país pode ser atribuída ao fato de que “a discussão do lixo é quase sempre uma narrativa fragmentada, baseada em pressupostos absolutamente falsos, inverídicos e inadequados, frequentemente resvalando para o autoritarismo ou para a folclorização do debate”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Waldman comenta as propostas da Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS e critica a proposta de substituir os lixões por aterros sanitários. “Propor os aterros sanitários como contraponto não constitui, no meu entendimento – à parte materializarem alguns ganhos na comparação com os lixões -, uma proposta contemporânea para acabar com o problema. (…) Aterros sanitários utilizam vastas áreas de terrenos e envolvem investimentos consideráveis para enterrar materiais passíveis de reutilização ou compostagem”, diz.
Maurício Waldman | Foto: João Paulo Barbosa / Unoeste
Maurício Waldman é graduado em Sociologia, mestre em Antropologia e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP. Waldman é autor de Lixo: Cenários e Desafios (Cortez Editora, 2010), a primeira obra sobre lixo finalista do Prêmio Nacional Jabuti (edição de 2011). No final deste mês, está lançando um novo livro, intitulado A Civilização do Lixo, um dos quatro que publicou em 2016 pela Editora Kotev, publicadora digital sediada em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Recentemente o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – TCE divulgou que uma em cada quatro cidades de SP tem lixões a céu aberto. Como o senhor interpreta esse dado?
Maurício Waldman – Este dado é em si mesmo aterrador se lembrarmos que o estado de São Paulo é a unidade da federação que desponta como polo dinâmico da economia nacional, principal agregador de massa cinzenta no país e que, em princípio, dispõe de um aparato estatal adequado para dar conta de uma questão tão séria como esta. Este panorama ganha cores mais preocupantes quando se considera que num plano geral há um cenário jurídico delineado pela Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS. Recorde-se que a PNRS, em curso legal a partir de 2 de agosto de 2010, consistiu um esforço em rever, estatuir e ampliar o escopo das legislações anteriores com foco ou que mantinham conexão orgânica com a problemática dos resíduos sólidos. A PNRS propôs a criação de canais institucionais que viessem a normatizar e detalhar o funcionamento da lei, garantindo a juridicidade da proposta no referente às normatizações específicas na aplicação dos diferentes aspectos abarcados por esta legislação. Contudo, não seria demasiado mencionar que o próprio preâmbulo da PNRS evoca a Lei nº 9.605, relativa a crimes ambientais, que veio à luz aos 12 de fevereiro de 1998. Isto é: doze anos antes já se criminalizava o uso de lixões para a desova dos resíduos urbanos.
Problema estrutural
O que transparece com base nesta cronologia é que estamos diante de um problema estrutural e institucional de gestão, demonstrando a inoperância do Estado em nível local, regional e nacional, à qual eu também agrego a perpetuação das práticas omissivas, sempre com a lógica em protelar qualquer solução para este problema. Além do Estado, deve-se sinalizar para as responsabilidades de atores que orbitam na execução das chamadas políticas públicas, tais como as ONGs, parcelas do empresariado e para a falta de clareza da comunidade acadêmica nacional, que se tornam responsáveis, mesmo que indiretamente, por esta catástrofe, que ocorre até em contextos como o estado de SP, o estado líder da federação brasileira. Claro sinal do que estou colocando é tomar conhecimento de que, em 2016, seis anos após a suposta entrada em vigor da PNRS, a ação do TCE tenha trazido a público o inaceitável índice de 23,31% de municipalidades com lixões em funcionamento.
Mas existem outros dados igualmente constrangedores, pois os levantamentos indicam que apenas 51,54% dos municípios implantaram um Plano de Gestão Integrada dos Resíduos Sólidos – PGIRS e que 19,63% sequer iniciaram a elaboração dos PGIRS. Para piorar, não existe nenhum tipo de Coleta Seletiva de Lixo – CSL em 36,20% das cidades paulistas. Ademais, a CSL abrange fração pouquíssimo substantiva do recolhimento dos refugos. Meramente 3,11% das prefeituras conseguem selecionar entre 75% e 100% dos itens encontrados nas lixeiras. Portanto o que se tem é uma calamidade que, por sinal, tendencialmente segue no rumo de agravar ainda mais a situação sanitária e ambiental vivida pelo estado de SP e pelo país como um todo.
IHU On-Line – O que estes percentuais representam em termos técnicos?
Maurício Waldman – É a continuidade da ciranda de horrores que tem comandado a gestão do lixo no país. Os lixões e os aterros ditos controlados são avatares do descaso do poder público para com um mínimo de qualidade de vida dos governados, que pagam impostos para terem contrapartida em serviços prestados tipo “lixo”. Se é que este termo pode ser utilizado dessa forma. No final das contas os resíduos sólidos merecem respeito. Note-se que mesmo destacar o aterro sanitário como política de excelência na gestão dos refugos é merecedor de apartes, correções e considerandos. Sendo fato consumado o avolumar incessante das sobras e, paralelamente, o fato de que lixões e aterros controlados permanecem como modelo em curso num grande número de municípios, propor os aterros sanitários como contraponto não constitui, no meu entendimento – à parte materializarem alguns ganhos na comparação com os lixões -, uma proposta contemporânea para acabar com o problema. O aterro sanitário como equipamento capaz de proporcionar destinação adequada aos refugos é controverso e sujeito a contestações, mesmo quando teoricamente funcionam bem.
IHU On-Line – Quais seriam os problemas dos aterros sanitários?
Maurício Waldman – Os aterros sanitários utilizam vastas áreas de terrenos e envolvem investimentos consideráveis para enterrar materiais passíveis de reutilização ou compostagem. Constituem verdadeiras usinas de miasmas, que liberam imensas quantidades de gás metano, poderoso gás de efeito estufa (GEE) e de chorume, este último um efluente com razão considerado, ao lado do plutônio e das dioxinas, como das três mais perigosas e mortais ameaças ao meio ambiente criadas pela civilização humana. Mesmo o suposto protagonismo dos aterros sanitários em garantir a degradabilidade dos rebotalhos não possui pleno respaldo técnico. Por exemplo, o grande pesquisador norte-americano William Bill Rathje, decano da lixologia, admirou-se ao escavar aterros nos Estados Unidos e Canadá, com a conservação de certos itens orgânicos encontrados nas camadas profundas dos monturos, alguns dos quais, apesar de décadas de clausura total, apresentavam notável estado de conservação. Materiais celulósicos como jornais e revistas, tidos como facilmente degradáveis, foram encontrados incólumes após décadas de sepultamento.
Rathje assinalou a existência de inúmeras causalidades incomuns que contribuem para estancar a degradação biológica, desde bolsões de gás, processos de mumificação naturais e ambientes quimicamente saturados. Tais condicionantes físicos são pouco estudados e pouco conhecidos pela comunidade acadêmica nacional, que, até por desconhecimento da literatura internacional, acumula décadas de atraso na pesquisa científica do lixo. Por isso mesmo Rathje classificou a biodegradação e o confinamento seguro nos aterros sanitários como sendo pura e simplesmente um mito, responsável, aliás, pela aniquilação de enormes massas de materiais úteis aos humanos.
IHU On-Line – Quais são as razões que fazem os problemas de gestão do lixo perdurarem no Brasil?
Maurício Waldman – Entendo que a discussão do lixo é quase sempre uma narrativa fragmentada, baseada em pressupostos absolutamente falsos, inverídicos e inadequados, frequentemente resvalando para o autoritarismo ou para a folclorização do debate, nesta última variável pespontando muitos dos ativistas dos resíduos sólidos. Não há como não colocar o Estado brasileiro no centro do debate, que no caso apresenta amplo leque de especificidades. O cientista político alemão Joachim Hirsch defende que, numa perspectiva mais ampla, a noção de Estado no momento atual de mundo pressagia contraposições políticas conotadas por injunções contraditórias que se atam aos humores da economia, das reivindicações sociais e reclamos dos cidadãos. Disto se coloca que a máquina estatal deveria, ao menos em tese, prestar-se a uma compatibilização considerada legítima e propiciadora de um mínimo de equilíbrio. Mas o quadro que se apresenta no Brasil é outro. Tal como em muitos outros países periféricos, o aparato de Estado está ancorado em fragilidades estruturais ditadas por acentuadas disritmias socioeconômicas, que em caráter permanente influenciam, corroem e questionam sua pretendida representatividade.
Como assegurou o geógrafo brasileiro Milton Santos, o Estado no Brasil tem por meta um papel mistificador, propagador, ou mesmo gerador de uma ideologia de modernização, de paz social e de falsas esperanças, uma fabulação que nem de longe é capaz ou se mostra disposto a transferir para o mundo real. Dito de outro modo, o lixão é exatamente isto: uma materialização da incúria, incompetência e da ausência de vínculos com o interesse público por parte do Estado brasileiro e dos gestores postados no comando deste.
IHU On-Line – No que isto se associa aos lixões?
Maurício Waldman – No transcorrer do meu terceiro pós-doutoramento, desenvolvido nos anos 2014-2015 com aval do Programa Nacional de Pós-Doutorado – PNPD, vinculado à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, identifiquei em termos de uma cartografia política a atuação de um Diretorado do Lixo, articulação que na realidade é quem dá as cartas na gestão dos resíduos. Evidentemente, num organograma funcional a gestão e o gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos são de competência dos Serviços de Limpeza Urbanos – SLU. Mas não de um ponto de vista objetivo. Na realidade, os interesses das empresas de lixo consorciados à gestão “pública” formam concretamente uma soldadura que funciona tal como um único colegiado. Na prática é a voz e a ação de um único corpo. Portanto um Diretorado do Lixo.
Para este campo político-funcional não interessam tipos de solução minimamente decentes para a gestão dos refugos, nisto incluídos os aterros sanitários. Reciclagem e apoio aos catadores então, nem pensar. Para muitos gestores o lixo é visto como uma miscelânea de itens imprestáveis, repugnantes e daninhos à saúde, o que justificaria uma opção preferencial por estratégias simplesmente estéticas e eliminatórias. Em linhas gerais, a cultura de jogar o lixo longe dos olhos do cidadão tem-se revelado mais poderosa do que a consciência quanto aos danos causados pela destinação inadequada. Além disso, desovar refugo num lixão é um procedimento coerente com uma burocracia pouco afeita a formas de gestão complexas.
O lixão é simples, exigindo pouco de máquinas administrativas viciadas em rotinas repetitivas, na nojenta disputa por cargos, azeitadas pelo mandonismo político, pelo corporativismo e pela aguda falta de visão social e de preparo técnico. No geral, o aparato de Estado tem por meta sancionar intervenções que o coloquem a salvo de interpolações e do trato com segmentos que, como os catadores, são antes entendidos como um estorvo do que como parceiros na gestão do lixo. Naturalmente a isto se soma a ação das empreiteiras, que se consorciam no esforço por perpetuar os lixões, em especial por serem remuneradas por tonelada de lixo coletada, invariavelmente reportando a custos extremamente altos para o cidadão, que paga caríssimo por serviços simplesmente jurássicos.
IHU On-Line – Qual é o custo desta política?
Maurício Waldman – No âmbito do meu terceiro pós-doutoramento, fiz uso da noção de um “Custo Brasil do Lixo”. Em outras palavras, o alto custo da máquina de Estado voltada para gerenciar os refugos. Muito imposto de um lado e péssimos serviços prestados de outro. Certo é que em face das contradições e desigualdades que marcam a economia nacional, seria inútil comparar a gestão do lixo no Brasil com os países afluentes. Daí que uma avaliação mais oportuna seria com a América Latina, cuja realidade é ao menos semelhante à brasileira.
Pois bem, o que as estatísticas mostram é assombroso. No custo unitário para a remuneração da limpeza por km, para coleta e disposição final do lixo, os valores brasileiros são todos, sem exceção, os mais altos. Isto para abduzir refugos que evoluem numa escala ímpar. O Brasil é campeão latino-americano em geração de resíduos. Mesmo com os batalhões de catadores, a recuperação do total de materiais permanece abaixo da média regional. Um dado significativo são os recursos humanos absorvidos pelos SLU. Brasil, República Dominicana e Colômbia lideram, na América Latina, em funcionários. Em média são 30 para cada 10.000 habitantes, as maiores taxas da região. Para planos de manejo do lixo, o Brasil apresenta índices constrangedores. Apenas Nicarágua e Jamaica apresentam resultados piores que o nosso. Mais: o Brasil empata com o Peru no primeiro lugar em ausência de planos para aglomerações metropolitanas. Isso sem contar que a existência de planos não garante qualidade do serviço prestado, nem sua aplicação ou mesmo a possibilidade de execução. No geral, os planos nada mais são que peças publicitárias exibidas durantes as eleições. Executá-los é outra discussão. O pior é perceber que a reação mais sanguínea dos burocratas dos resíduos, amparados pelo Diretorado do Lixo, quando pressionados por melhorias no atendimento e nas formas de gerenciamento dos SLU, desemboca invariavelmente na demanda por mais numerários, seja propondo taxas para o lixo, ou então, arrebanhando mais arrecadação via aumento dos impostos urbanos.
IHU On-Line – Outro apontamento feito pelo TCE diz respeito à coleta seletiva dos resíduos urbanos. Segundo as informações do órgão, somente 63,8% dos municípios oferecem esse serviço. Quais são as dificuldades de se implantar a coleta seletiva?
Maurício Waldman – Note-se que muitos dos supostos programas de CSL funcionam quase que exclusivamente como peça de marketing institucional das prefeituras, iniciativas meramente figurativas, propagandeadas como ações de educação ambiental e de compromisso com a sustentabilidade. No geral, estão restritos a reluzentes “ilhas recicladoras” plotadas em locais coerentemente à vista de todos, cujos contêineres são visitados de tempos em tempos por caminhões coletores. Mas, apesar de irrelevantes, são úteis para os bons ofícios do Diretorado do Lixo, pois inflam e adereçam as estatísticas, na prática uma fabulação, pois permite que muitos municípios com inexpressiva, ficcional ou tecnicamente nula atuação na reciclagem – daí a utilização do conceito de algum tipo de serviço de reciclagem – sejam contabilizados na somatória dos que executam programas de recuperação dos materiais, demonstrando assim “progressos” alcançados pela CSL. É o que se observa nos levantamentos. Exemplo bem conhecido, relatórios da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais – Abrelpe acusavam, para o ano de 2009, a existência de programas de CSL em 56,6% dos então 5.565 municípios brasileiros, em especial no Sul e Sudeste do país, onde respectivamente 76,2% e 78,7% das localidades confirmavam a execução, note-se bem, de algum tipo de serviço de CSL.
Muito embora a inconsistência desta informação tenha sido objeto de contestação por parte de pesquisadores e especialistas, o relatório mais recente da mesma entidade esclarece, no tocante à CSL para o ano de 2014, que aproximadamente 65% dos municípios registravam alguma iniciativa neste sentido. Portanto a situação vigente em São Paulo não contesta no essencial o dramático quadro nacional de mau desempenho da reciclagem. Isto sem contar que a compostagem do lixo, relacionada à recuperação da fração orgânica do lixo, patina em índices aviltantes. O mesmo parecer do TCE assinala que, no estado de SP, tão somente 2,47% dos municípios levam adiante ações de compostagem dos resíduos urbanos. E claro está que os números da reciclagem são mais uma demonstração da força inercial dos modelos tradicionais, conservadores e descompromissados com o meio ambiente que tipificam a gestão do lixo no país.
IHU On-Line – Em quais regiões de São Paulo há predominância dos lixões?
Maurício Waldman – Existem duas regiões particularmente problemáticas: a região do Oeste Paulista, assim entendendo o espaço geográfico magnetizado pela cidade de Presidente Prudente, e o vale do Ribeira do Iguape, no Sul do estado de São Paulo, sendo que das duas a que exibe contornos mais acintosos é o Oeste Paulista, área na qual tive atuação presencial durante minha terceira investigação de pós-doutoramento.
IHU On-Line – Por que Presidente Prudente seria um caso mais grave?
Maurício Waldman – Não diria mais grave, mas sim mais representativo da problemática dos lixões, tal como esta desponta no território nacional. Isto porque as contradições sociais e as dessimetrias econômicas transparecem com nitidez cristalina nesta região. A cidade de Presidente Prudente constitui um polo regional importante, “pivoteando” todas as demais cidades do entorno geográfico. É um centro urbano com aproximadamente 200.000 habitantes e que constitui a maior expressão urbana num raio de dezenas de quilômetros. A área magnetizada por Presidente Prudente constitui uma constelação de cidades muito inferiores em população e em expressão econômica. Neste senso, Presidente Prudente seria virtualmente uma “ilha”, tanto num olhar antropológico como no econômico. Porém, uma ilha dotada de portentoso protagonismo urbano. Muitos analistas indicam Presidente Prudente dentre as seis melhores cidades para se viver no estado de SP e a 29ª como cidade mais apropriada para seguir uma carreira no universo urbano brasileiro. Ao mesmo tempo, é a cidade polo de uma região pauperizada para os padrões do estado de SP, e os refugos da região são depositados basicamente em lixões, todos privados de acompanhamento geotécnico com todos os problemas sociais e ambientais gerados por este tipo de instalação.
A própria cidade de Presidente Prudente desova seus resíduos num lixão pavoroso, localizado em meio a nascentes de água, ainda em funcionamento em 2014, quando estive na cidade pela última vez. Isto 14 anos após uma palestra que dei na Unesp, ocasião em que já tinha visitado este lixão, praticamente num momento em que a fase operacional encetava os primeiros passos. Mas não é o único caso aberrante. Note-se que o único aterro sanitário em operação na região, situado na cidade de Presidente Venceslau, é um verdadeiro filme de terror. Um jovem pesquisador de resíduos da região, o engenheiro Lucas Osco, filmou neste “aterro sanitário” algo que eu nunca vi: um autêntico gêiser de chorume. Uma coisa inacreditável. Mais incrível ainda, no que comprova o cinismo descarado dos gestores municipais e dos órgãos ambientais, este verdadeiro lixão é, nas narrativas institucionais, considerado referência regional em disposição final de resíduos. E insisto em lembrar que se trata oficialmente de um aterro sanitário. Imagina se não fosse. Assim, seguramente a situação regional explicita contrastes que estruturalmente conectam o Oeste Paulista a um padrão, digamos assim, nacional, marcado por cidades modernas adereçadas com o que há de discrepante em conjunturas de atraso socioeconômico e de controle desagregador perpetrado pelo aparato de Estado. Todavia, marcado por fortes especificidades, as quais se associam a um variado leque de ambiguidades e contradições, expressão de vários dos obstáculos que a gestão do lixo enfrenta em todo o país.
IHU On-Line – Em que sentido o Oeste Paulista seria demonstrativo do problema nacional dos lixões?
Maurício Waldman – De vários modos, a começar pelo fato de que não existem neste mundo dois lixões iguais. Durante minha carreira como lixólogo, visitei 63 lixões, inclusive no exterior. Isto até agora. Mas o suficiente para dizer sem pestanejar que cada lixão é diferente de qualquer outro. Em visitas técnicas aos lixões do Oeste Paulista, chamaram-me a atenção vários detalhes, desde a utilização de tração animal nas carroças dos catadores, inexistentes nos grandes centros brasileiros em virtude da proibição de circulação de cavalos e muares nas ruas e logradouros públicos até a presença de esqueletos de fauna silvestre no meio dos monturos, resíduos da caça ilegal. Ao mesmo tempo, no Lixão de Pirapozinho, também no Oeste Paulista, eis que em meio a uma carcaça de tatu-bola e sabugos de milho, encontro um emaranhado de fios de computador e garrafas de vodka importada, claro sinal dos vínculos de um universo espacial específico com a globalização, regrada por formas de inserção desigual na economia estadual.
Ao mesmo tempo, mantive conversas com os trabalhadores dos lixões e indaguei sobre o preço dos materiais recicláveis. Fácil constatar que a remuneração do material recuperado era menor do que nas áreas concentradoras de capital. Este seria um dos muitos dados que exemplificam as trocas desiguais que regem a economia brasileira como um todo, que no caso do Oeste Paulista calçam uma abdução permanentemente da renda regional, encaminhada para os polos urbanos mais importantes, tais como a capital paulista. Trata-se de um movimento geográfico, de uma moldura econômica e de tratos culturais a demonstrar a diversidade de problemáticas evidenciadas pelos lixões, fato que infelizmente não está claro de modo algum para a imensa maioria dos acadêmicos, inclusive os da própria região e os que pesquisam os resíduos do Oeste Paulista, que teimam em repetir fórmulas divorciadas da vida regional. Um dos múltiplos impedimentos, inadequações e agravos que pavimentam a perpetuação do modelo nacional capenga de gestão do lixo.
IHU On-Line – Quais são as dificuldades de erradicar os lixões num país como o Brasil e de aplicar a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS?
Maurício Waldman – Entenda-se antes de tudo que a gestão do lixo, até por estatuto legal, é uma atribuição do Estado, daí que centrarmos nossas atenções no vai e vem da política é essencial. Isto posto, temos que no Brasil a juridicidade das legislações não constitui uma factualidade a priori, com o que comumente os procedimentos omissivos, em especial dos poderes públicos, podem simplesmente revogar a vigência das leis. Neste sentido a Lei nº 10.635 é uma das muitas legislações brasileiras que “não pegaram”. A principal medida inserida na lei, a erradicação dos lixões — uma determinação central da PNRS e prevista para acontecer em agosto de 2014 —, foi sumariamente postergada em julho de 2015. O dispositivo legal que previa a data para fechar estas instalações foi prorrogado pelo Senado brasileiro para ser levado a cabo [teoricamente] apenas em junho de 2021. Alegou-se, para tanto, a existência de obstáculos administrativos e financeiros.
Nas considerações da Senadora Vanessa Grazziotin (PC do B), relatora do Projeto de Lei em favor da prorrogação, a PNRS não teria sido “realista”, em especial por prever um prazo que no seu entendimento era demasiado “exíguo” para que os municípios, em particular os menores e mais carentes, assumissem tal responsabilidade. Isto a despeito de que mesmo metrópoles ricas, como Brasília, mantêm lixões em funcionamento, inclusive o famoso lixão Estrutural, situado a apenas 15 km do Planalto. Neste particular, alerte-se que, nos momentos em que a aplicação da legislação era brutalizada, parecer da Confederação Nacional dos Municípios – CNM indicava que 61,7% dos municípios não se adequavam às exigências da PNRS. Note-se que apesar do indecente volume de verbas que os SLU gulosamente devoram, não faltaram alegações por parte dos representantes municipais de que a PNRS seria inviável e impossível de ser cumprida. Contudo, ao menos em termos do que a vontade política destes gestores tem demonstrado, afirmações como estas seriam absolutamente credíveis. No final das contas, um cálculo simples revelaria que, na hipótese de a média anual de encerramento dos lixões em operação ser mantida no ritmo do último quinquênio, o país somente poderia estar livre dos lixões em 150 anos.
IHU On-Line – Dado que os municípios não conseguiram pôr em prática a determinação da PNRS de erradicar os lixões até 2016, como avalia a prorrogação do fim dos lixões para 2021?
Maurício Waldman – O cenário que se descortina é dramático. Uma vez que o fechamento dos lixões foi sepultado pela conduta omissiva dos municípios, sem dúvida alguma uma das principais metas da PNRS, torna-se perfeitamente factível entender que os problemas relacionados à gestão dos resíduos sólidos se agravem ainda mais nos próximos anos, inclusive com prejuízos para a implantação da compostagem, emperramento dos serviços de CSL, maior morosidade nas negociações dos sistemas de logística reversa, ampliação de municípios em dissintonia com a PNRS, criação de novos lixões e persistência dos agravos que pesam sobre os catadores e suas entidades. Estes prognósticos ganham coloração mais sombria quando se sabe que, entre 2010 e 2014 – período em que a PNRS em tese começou a ser aplicada -, a geração de refugos no Brasil cresceu 10,36%.
Presumivelmente, ninguém pode prever o que está por acontecer e, tampouco, como se tornará exequível gerenciar a multiplicação de montanhas de lixo e os desdobramentos perversos de uma gestão irresponsável e contrária aos interesses nacionais. Com estes múltiplos dados desabonadores à mão, como que respaldadas por sentimentos de revolta e de frustração, duas indagações se desenhariam na mente sem pedir licença: Quem na época do lançamento da PNRS acreditou que, de fato, a lei “pegaria”? E hoje, quem acredita que ela “pegará” em 2021?
(EcoDebate, 02/12/2016) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
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A reportagem, que é muito boa e o entrevistado de excelente nível, diz que uma em cada quatro cidades do Estado de São Paulo tem lixões a céu aberto.
Isto significa que 75% das cidades do Estado de São Paulo tem aterros sanitários.
Os municípios que tem aterro sabem quanto é difícil e custoso ter um e como é também difícil mantê-lo.
Se esse número for real, não se pode considerar o quadro de São Paulo ruim e muito menos aterrador.
Pode até ser considerado um quadro satisfatório.
Mas é preciso ver como está a situação desses aterros sanitários. Daí a realidade sim pode ser aterradora. Ter um aterro e só não quer dizer muito. É preciso que ele tenha boas notas da CETESB, pelo menos no nível “adequado”.
No Brasil a situação é diferente. Daí sim pode se afirmar em situação “aterradora”, um verdadeiro filme de horror.