Demografia Rasa versus Demografia Profunda, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
“Todos pensam em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo”
Leon Tolstoi
“Handle a book as a bee does a flower, extract its sweetness but do not damage it”
John Muir
[EcoDebate] A palavra demografia é formada por dois vocábulos gregos: dámos (Demo) que quer dizer população e gráphein (grafia) que quer dizer ação de escrever, tratado ou estudo. O termo demografia foi utilizado pela primeira vez, em 1855, pelo pesquisador belga Achille Guillard e hoje faz parte do vocabulário de todo o mundo. A demografia estuda o tamanho de uma população, sua composição por sexo e idade e sua taxa de crescimento (positiva ou negativa). Alguns livros definem a demografia como o estudo das populações humanas, enquanto outros a definem como o estudo de qualquer população, sendo humana ou não humana. Nesta segunda perspectiva, encontra-se a citação abaixo de uma aula do demógrafo Joel Colhen:
“Demography gives you the tools to address and to understand these problems. It’s the study of populations of humans and non-human species that includes viruses like influenza, the bacteria in your gut, plants that you eat, animals that you enjoy or that provide your domestic animals. And it includes non-living objects like light bulbs, and taxi cabs and buildings because these are also populations. And it includes the study of these populations in the past, present and future using quantitative data and mathematical models as tools of analysis. I see demography as a central subject related to economics, to human wellbeing as in material terms; related to the environment, to the wellbeing of the other species with which we share the planet; and the wellbeing and culture which affects our values and how we interact with one another” (Cohen, 2012).
Ir além do estudo das populações humanas não é apenas uma questão técnica. A demografia que fica limitada ao estudo dos seres humanos e às áreas ecúmenas é antropocêntrica. Enquanto a demografia que incorpora as populações não humanas, a biodiversidade e as áreas anecúmenas pode ser ou é ecocêntrica.
Neste segundo aspecto, a demografia se aproxima da “Ecologia Profunda”, que foi um termo proposto pelo filósofo norueguês Arne Naess (1973) que, inspirado em Thoreau, Muir e Leopold, sugeriu uma mudança do paradigma antropocêntrico dominante (chamada de “ecologia rasa”) para uma concepção biocêntrica. Naess critica o antropocentrismo que vê o ser humano acima da natureza e como a fonte essencial de todo o direito, atribuindo à natureza um valor meramente instrumental. A ecologia rasa vê os seres humanos como superiores aos demais seres vivos e o ambiente natural como um recurso a ser utilizado pelos humanos. A ecologia profunda, ao contrário, considera que a natureza tem valor intrínseco, com igualdade entre as diferentes espécies. Como disse Fritjof Capra (2006):
“A ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano. Ele vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como a fonte de todos os valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de ‘uso’, à natureza. A ecologia profunda não separa seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. Ela vê o mundo, não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida” (p. 16).
Desta forma, podemos dizer que a demografia rasa estuda apenas as populações humanas e as áreas ecúmenas, além de fazer recortes sobre o Classismo, o Sexismo, o Escravismo, o Racismo, o Xenofobismo e o Homofobismo. Para a demografia rasa os animais são apenas fontes de proteína que devem ser estudados na forma e na medida da dieta humana.
Mas a demografia profunda estuda não só as populações humanas, mas qualquer tipo de população, além das áreas ecúmenas e anecúmenas (não humanamente construídas) e não concilia com as absurdas desigualdades entre as espécies. Além de combater o Classismo, o Sexismo, o Escravismo, o Racismo, o Xenofobismo e o Homofobismo, a demografia profunda também luta contra o ESPECISMO, contra o Ecocídio, contra o holocausto biológico e a favor da libertação animal.
A demografia profunda também critica o crescimento demoeconômico ilimitado e defende o Estado Estacionário, na linha de pensamento do grande economista inglês John Stuart Mill. Combate ainda o holocausto ecológico e defende o abolicionismo animal. Como mostraram Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri no livro “A vida dos outros: Ética e teologia da libertação animal” (São Paulo: Paulinas, 2015), a relação entre humanos e animais sempre foi cruel. Os autores concordam com “a analogia entre o holocausto humano perpetrado aos judeus na segunda guerra mundial, e o holocausto animal imposto, diariamente, pelo homem aos indefesos e inocentes animais. A conclusão é que o termo ‘campos de concentração’ é o que melhor define a nossa relação com os ‘outros’ animais. A primeira parte do livro se debruça sobre esses ‘campos de concentração’ (estimação, pesquisa, instrumentos, entretenimento, alimentação) mostrando como os animais, no atual estágio da indústria, são coisificados, sem consideração para com seus interesses e direitos” (IHU, 01/11/2015).
A demografia profunda tem similaridade com a economia ecológica que ensina que é impossível manter o crescimento das atividades antrópicas no cenário do fluxo metabólico entrópico. Segundo Nicholas Georgescu-Roegen (1971), com base na segunda lei da termodinâmica – lei do aumento da entropia – as transformações naturais ocorrem com o aumento de energia não utilizável para fazer trabalho. O andamento dos processos naturais resulta num constante aumento de energia não aproveitável e do aumento do grau de desordem do sistema. Isto é, há um constante aumento da entropia (e do caos) associado ao processo de produção de bens no metabolismo social ou no sistema “Extrai-Produz-Descarta” (Cavalcanti, 2012). Segundo Herman Daly (2015), o custo de oportunidade dos recursos naturais varia conforme o tamanho da presença humana no planeta, o que ele chama de “mundo vazio” e “mundo cheio”. No segundo caso, o crescimento fica deseconômico e a degradação da natureza atinge níveis alarmantes.
As diferenças entre demografia rasa e profunda não se restringem às diferenças entre conservação e preservação do meio ambiente. A demografia profunda é ecocêntrica e pensa na humanidade como parte da comunidade biótica e defende não só os direitos humanos, mas também os direitos ambientais, os direitos animais e os direitos do Planeta Terra.
Como disse o biólogo Sean Carroll: “Humanity cannot live in a world of polluted air and water, empty seas, vanishing wildlife, and denuded lands. The ecological challenges we now face are matters of public health and welfare, just as smallpox was. Our mission, whether we want to accept it or not, is to summon the collective will to halt our self-destruction”.
Um copo de vinho perde suas qualidades quando cai no esgoto. Mas um copo de esgoto continua esgoto quando se mistura ao vinho. A demografia não pode olhar apenas para o vinho que produz. Tem que se conscientizar do volume de esgoto gerado e do impacto negativo que as atividades antrópicas têm sobre os ecossistemas e a biodiversidade do Planeta. A natureza não depende da demografia, a demografia depende da natureza.
Referências:
Alves, JED. “A encíclica Laudato Si’: ecologia integral, gênero e ecologia profunda”, Belo Horizonte, Revista Horizonte, Dossiê: Relações de Gênero e Religião, Puc-MG, vol. 13, no. 39, Jul./Set. 2015
http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2015v13n39p1315
ALVES, JED. Dia Mundial pelo fim do Especismo: 22 de agosto. Ecodebate, RJ, 19/08/2015
ALVES, JED. Abolicionismo animal. Ecodebate, RJ, 06/11/2015
http://www.ecodebate.com.br/2015/11/06/abolicionismo-animal-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Editora Cultrix, São Paulo, 2006
CAVALCANTI, Clóvis. Sustentabilidade: mantra ou escolha moral? Uma abordagem ecológico-econômica. SP, Estudos avançados 26 (74), 2012
DALY, Herman. Economics for a Full World, Great Transition Initiative, June 2015
GEORGESCU-ROEGEN, N. The entropy law and the economic process. Cambridge (EUA): Harvard University Press, 1971.
Por uma teologia da libertação animal. Entrevista especial com Luiz Carlos Susin e Gilmar Zampieri, IHU, 01/11/2015 http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/548501-por-uma-teologia-da-libertacao-animal-entrevista-especial-com-luiz-carlos-susin-e-gilmar-zampieri
SEAN B. CARROLL. Mission: Save the Environment, Project Syndicate, 15/07/2016
Joel Cohen. An Introduction to Demography (Malthus Miffed: Are People the Problem?), 2012
https://www.youtube.com/watch?v=2vr44C_G0-o
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, 22/07/2016
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Parabens pelo artigo.
O desfecho foi empolgante: um corpo de vinho deixa de ser vinho ao se misturar ao esgoto, mas o esgoto nao deixa de ser esgoto ao se misturar (sem tratamento) ao vinho.
As religiões, desde suas origens, em tempos remotos, muito contribuíram para a supervalorização da espécie humana diante das demasi espécies e da própria Natureza.