Violações de direitos humanos na comunidade tradicional de Zacarias, em Maricá, são tema de relatório
Por Viviane Tavares
Em audiência pública realizada no dia 26/4 pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (CDDHC/Alerj) para o lançamento do relatório “Violações de Direitos Humanos na comunidade tradicional de Zacarias” duas decisões importantes foram encaminhadas: o conflito que envolve pescadores artesanais e um resort do Grupo luso-espanhol IDB Brasil será denunciado ao Grupo de Trabalho de Violações de Direitos Humanos por empresas da Organização das Nações Unidas (ONU), além disso a bancada do PSOL vai analisar a possibilidade de representação de inconstitucionalidade contra o decreto que declara a obra do resort de utilidade pública pra suprimir vegetação.
Na audiência presidida pelo deputado estadual Flavio Serafini (PSOL/RJ) foram ouvidos Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), pescadores artesanais, pesquisadores, movimentos sociais, Instituto Estadual do Ambiente (Inea), secretaria municipal de Meio Ambiente de Maricá, a deputada Zeidan (PT/RJ) e o vereador Brizola Neto (PSOL/RJ). O deputado vem acompanhando o conflito desde o início do mandato e teve como resultado da pesquisa realizada por ele e sua assessoria técnica o relatório lançado nesta data. Durante esse um ano de pesquisa e acompanhamento do conflito, o mandato contou com canais abertos de diálogo com o Ministério Público Estadual e a Defensoria Pública, que se disponibilizaram a receber a comunidade atingida e a realizar diligências no local.
Após visitas, escuta de membros da comunidade (cujos registros remontam ao menos a 1797), pesquisadores e órgãos parceiros, o relatório aponta algumas conclusões: há indícios de irregularidades no processo de licenciamento, que já são objeto de inquérito civil no MPRJ e de ações civis públicas ajuizadas pela Associação de Proteção das Lagunas de Maricá – APALMA e pelo Ministério Público Federal. Para se ter uma ideia, em menos de um ano, o licenciamento foi suspenso duas vezes, uma pela Justiça Estadual e outra pela Federal. As decisões judiciais favoráveis à comunidade obtidas em ambas as ações, no entanto, foram derrubadas por suspensões de segurança ajuizadas pelo Município de Maricá, que alegou aos presidentes dos respectivos tribunais que a suspensão do licenciamento ambiental do megaempreendimento colocaria em risco a ordem pública e a economia local. Vale notar que a suspensão de segurança é medida judicial criada pela ditadura militar, que permite a derrubada de decisões de juízes de primeira instância e colegiados pelos presidentes dos tribunais, procedimento notoriamente autoritário e que facilita o controle político das decisões do judiciário, amplamente utilizado para avançar empreendimentos de larga escala, como Belo Monte.
O relatório denuncia ainda violações mais explícitas de direitos, como as táticas de pressão, intimidação, assédio e vigilância que o empreendedor privado exerceu sobre a comunidade e seus moradores. A tríade clássica e favorável para a exploração das transnacionais também se repete em Maricá: territórios preservados porém vulneráveis, com legislação flexível e sem fiscalização.
“Podemos perceber claramente ao nos debruçar no caso de Zacarias que há uma inversão de valores que não é só na perspectiva ambiental. Há diversos ataques em relação à tradicionalidade, ao respeito da relação com a terra. E fica evidente que o acordo sobre a construção desse resort tem um lado. Este não é o dos pescadores”, avaliou Flavio Serafini que completou: “Não temos dúvida que esse megaempreendimento causa forte impacto ao meio ambiente e inviabiliza a permanência da comunidade de Zacarias que está lá desde o século 18”.
Uma das pesquisadores ouvidas no relatório compôs a mesa da audiência. A geógrafa Desiree Guichard possui uma cartografia social do espaço e conta com um aprofundado acervo da região. Em sua explanação, Desiree apresentou o trajeto de flexibilização da legislação local que viabilizou o empreendimento e os métodos antidemocráticos empregados. “Em 2000, tivemos a aprovação do SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, que estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação], com isso a Secretaria de Meio Ambiente deveria ter reclassificado a Área de Proteção Ambiental (APA) de Maricá pelos seus atributos de biodiversidade e comunidade pesqueira, diante da nova organização das categorias. Mas o Governo não fez. Em 2006, vimos um novo episódio desse ataque, quando a prefeitura e vereadores da época foram em caravana para conhecer o novo empreendimento que se apresentava em uma feira de negócios imobiliários na Espanha. A viagem aconteceu em abril e em junho foi realizado um novo zoneamento da área elaborado pela Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema) e aprovado pela Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca)”, historicizou a pesquisadora.
Vale lembrar ainda que em 2014, o conselho universitário da UFRJ e da UFF e departamental da UERJ aprovaram moções em defesa da área de proteção ambiental da restinga e comunidade pesqueira de Zacarias. A comunidade é uma das poucas que ainda preserva a pesca de galho e se relaciona com a restinga de forma harmoniosa, percorrendo-a há séculos não somente para atravessar os barcos da lagoa para o mar, mas também para a coleta de plantas medicinais, frutos e artesanato.
A pesquisadora informou ainda que a alteração do zoneamento local foi feita sem a realização de qualquer consulta, audiência pública ou reunião com os moradores, academia, associações civis, ignorando completamente o acúmulo já existente e a cartografia social local. “Em 1989, a Feema havia feito essa cartografia. Hoje eles ignoram sua própria avaliação assim como os órgãos ambientais se omitem” alerta a pesquisadora. Os números, de fato, são alarmantes: 50% da restinga deverá ser transformada em uso urbano e 148 hectares será destruído, de acordo com EIA/RIMA”.
O professor da UFF e UFRJ e autor do livro “Gente das Areias”, Marco Antonio da Silva Mello, afirmou que o povoado “tem sido incessantemente assediado por todos os empreendimentos”. Mello estudou a comunidade por mais de 20 anos e defendeu que todo esse processo ignora a questão de pertencimento ao lugar. “O capital detesta lugares. Detesta a presença amorosa dos lugares”, refletiu.
O secretario do meio ambiente de Maricá Guilherme Di Cesar da Mota e Silva defendeu a posição da prefeitura dentro da legalidade. O representante do INEA seguiu a mesma linha. Por meio de nota dada à imprensa, o órgão da Secretária Estadual de Ambiente fez consideração semelhante.
Para o promotor de justiça e membro do Grupo de Atuação Especial em Meio Ambiente – GAEMA, José Alexandre Maximino Mota, a crise econômica não pode gerar uma crise ambiental e critérios e avaliações técnicas não podem simplesmente ser ignorados. O promotor afirmou categoricamente que o processo de licenciamento ambiental do empreendimento está, até esse ponto, eivado de irregularidades e ilegalidades. Para ele, o decreto concedido recentemente pelo governador Francisco Dornelles que reconhece o resort como utilidade pública contraria o ordenamento jurídico. “Várias leis que estão sendo servidas de suporte para o licenciamento desse empreendimento estão sendo questionadas em diversas instâncias. Ninguém nunca viu um precedente desses: um resort ser considerado de utilidade pública”, analisa e aponta: “A impressão que se tem é que estamos vendo uma espécie de pedalada ecológica”.
A deputada estadual Zeidan (PT), que também é esposa do prefeito da cidade, Washington Quaquá, defendeu o resort, dizendo que a audiência pública tratava de um projeto antigo que já tinha sido renovado: “Este não é o ‘nosso projeto’”, apesar de repetir também se tratar de projeto da iniciativa privada e não do poder público. A deputada defendeu a conhecida linha da geração de empregos. “Esse resort vai gerar vários empregos pra cidade. Os netos dos pescadores, depois da formação técnica que receberam por parte da Prefeitura, não serão pescadores: serão pedreiros, limpadores de piscina…”. Além disso, aproveitou o espaço para anunciar as realizações feitas no município sob muitos protestos dos presentes que, em sua maioria, eram moradores e pescadores de Zacarias. Zeidan disse que pretende organizar, em maio, uma audiência pública para mostrar o novo projeto à comunidade e entregar a titulação de posse definitiva aos moradores locais.
A fala da deputada foi rebatida por uma jovem de 17 anos da comunidade de Zacarias, Larissa, que destacou: “Queremos nosso território e queremos também curso técnico e educação superior pública, hoje a Prefeitura não dá nenhuma dessas coisas. Eu, por exemplo, tenho que ir todo sábado a Niterói fazer Pré-Vestibular na UFF, porque não tem em Maricá. Mas eu não vou sair de Zacarias, vamos ficar lá até o fim!”.
O pescador e presidente da Associação Comunitária de Cultura e Lazer dos Pescadores de Zacarias (ACCLAPEZ) Vilson Correa também contestou o posicionamento da deputada: “Estou nessa luta há muito tempo e aprendi muitas coisas. Sabe por que o pescador está virando pedreiro? Porque estamos impedidos de pescar. O prefeito só quer saber de escola de samba e com ela gasta mais de R$ 10 milhões. Enquanto isso, a Lagoa de Maricá, o maior patrimônio da cidade, está sofrendo. Esse relatório veio no momento certo. Maricá não tem mais peixe e agora querem colocar prédio na nossa porta. Queria deixar meu repúdio também ao INEA, que é só pedir um licenciamento que ele dá. Queremos continuar pescadores. Já estamos lá há três séculos. É o direito nosso viver à beira da lagoa. Mas, estão matando os pescadores igual aconteceu com o Poeta”.
O Poeta citado por Vilson é o pescador e poeta da comunidade de Zacarias, Enéas Marques. Enéas faleceu no dia 9 de abril de 2016 e deixou para trás poemas de resistência que mobilizam e ajudam a comunidade pesqueira a seguir em luta. Dois deles foram lidos e distribuídos no encontro.
Relatório: http://www.flavioserafini.com.br/wp-content/uploads/2016/04/relatorio_DH_miolo1-1.compressed.pdf
Crédito da Foto: Luis Felipe Marques
in EcoDebate, 28/04/2016
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