Os biocombustíveis vão produzir escassez de alimentos? Especialistas expõem opiniões divergentes em entrevistas ao G1
Eles avaliam se o Brasil tem responsabidade na anunciada crise mundial de alimentos. Assunto principal na agenda mundial das últimas semanas, a polêmica dos biocombustíveis e da crise mundial dos alimentos tem o Brasil no centro do debate. A principal questão é: o Brasil é ou não um vilão no cenário de escassez de alimentos? O G1 ouviu dois especialistas na área de agricultura com opiniões dissonantes sobre o tema. Por Isabelle Moreira Lima Do G1, em São Paulo, 20/04/2008.
Para o economista Ricardo Abramovay, professor da USP, ao estimular a pesquisa e a produção do etanol, o Brasil não contribui para a inflação dos preços dos alimentos no mundo. “Não há escassez ou ameaça ao aumento da produção agropecuária brasileira em virtude da expansão dos biocombustíveis”, afirma.
Para o economista Sérgio Schlesinger, o Brasil tem responsabilidade direta na crise, e, se o atual cenário dos biocombustíveis se mantiver pela próxima década, o futuro estará comprometido. “O pior cenário é justamente continuar no caminho pelo qual as coisas estão indo.”
Confira abaixo as duas entrevistas.
“O Brasil não tem responsabilidade pelo aumento dos preços alimentares, não há escassez ou ameaça ao aumento da produção agropecuária brasileira em virtude da expansão dos biocombustíveis”, afirma Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP).
Pós-doutor pela Fondation Nationale des Sciences Politiques, de Paris, e membro titular do Conselho Científico da Maison des Sciences de l’Homme de Montpellier, ele avalia que, se há perdas causadas pelo cultivo de cana-de-açúcar em larga escala para a produção de biocombustíveis, elas são ambientais.
Em entrevista ao G1, Abramovay destacou a importância do desenvolvimento de novas tecnologias e de maneiras inteligentes de produzir os biocombustíveis e fez um alerta sobre a devastação do cerrado. Leia os principais trechos:
G1 – Qual é o papel do Brasil na crise dos alimentos? Ao incentivar a produção de biocombustíveis, o país contribui para a inflação mundial do preço dos alimentos?
Ricardo Abramovay – Não, não contribui. Existem duas fontes importantes de biocombustíveis no Brasil. A primeira, a que realmente tem peso em termos nacionais, é o etanol. O etanol é cultivado em uma superfície de 6 milhões ou 7 milhões de hectares, em um país cuja área de lavoura está em torno de 70 milhões de hectares. A segunda é o biodiesel feito de soja.
O Brasil não é responsável pelo aumento dos preços alimentares, não há escassez ou ameaça ao aumento da produção agropecuária brasileira em virtude da expansão dos biocombustíveis.
O que está acontecendo com os preços brasileiros é resultado do que ocorre com os preços alimentares mundiais, estes sim fortemente influenciados por opções tecnológicas – tanto dos EUA, quanto da Europa.
Se tudo der certo para o etanol brasileiro, o horizonte é de passar de 6 milhões, 7 milhões de hoje para 13 milhões de hectares em torno de 2020.
G1 – Isso não prejudica a agricultura? Abramovay – Não. A ameaça dessa expansão não é ao abastecimento, mas sim ao meio ambiente. E não sobre a Amazônia. O problema é o cerrado, um bioma fundamental no equilíbrio, na oferta de água, nas bacias hidrográficas subterrâneas. É preciso planejar a ocupação do cerrado de maneira estratégica.
G1 – Como é a ocupação no cerrado?
Abramovay – No PAC, há a previsão de construção de um alcoolduto de 1.150 km, ligando estados de Goiás a São Paulo. Por aí, vão ser exportados 3,5 bilhões de litros por ano a partir de 2011, e este alcoolduto vai estimular a construção de 40 usinas na sua rota em Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Paraná. Cada uma dessas usinas são extensões contínuas de 20 mil, 40 mil hectares, num total de mais de um milhão de hectares de cultivo de substituição.
G1 – Mas, nesse cenário, já começa a ficar mais preocupante?
Abramovay – Do ponto de vista ambiental, sim. Não dá pra deixar de levar em conta que é uma cultura energeticamente eficiente. É uma cultura que apresenta um produto melhor que os de origem fóssil. Mas será que a reserva legal de 50% no cerrado está sendo respeitada?
O horizonte do setor é ampliar a produção da cana de açúcar das 425 milhões de toneladas em 2006 e 2007 para 727 milhões de toneladas entre 2007 e 2013, um aumento de 71%. A área não será aumentada proporcionalmente, porque há expectativa de aumento da produtividade.
Em compensação, em termos de condição de trabalho é uma tragédia. Mas essa tragédia será suprimida porque o setor, até 2014, em São Paulo, não vai ter mais colheita manual.
G1 – Se é problemática a expansão da cana porque ela invade o cerrado, por onde ela poderia crescer?
Abramovay – Ela poderá crescer no cerrado caso esse crescimento seja rigorosamente acompanhado do cumprimento das leis ambientais. Talvez não seja o caso de todo mundo virar produtor orgânico.
G1 – Qual o melhor e o pior cenário para a próxima década no que diz respeito ao meio ambiente?
Abramovay – O melhor cenário envolve o fim do motor de explosão e o início da produção massiva de transporte individual baseado em eletricidade, além da redução do uso do automóvel.
O pior cenário é que aquele em que essas inovações tecnológicas, por razões muito provavelmente ligadas a alguns interesses – é difícil analisar quem está a favor e está contra -, não sejam utilizadas.
G1 – Como o sr. avalia a declaração de que os biocombustíveis são um crime contra a humanidade?
Abramovay – Há um exagero nisso. Dizer que é crime contra a humanidade me parece um pouco demagógico, assim como me parece ingênuo pedir que os EUA parem de usar milho e comecem a importar nosso etanol.
G1 – Dá para dizer qual é o causador da crise dos alimentos? Há um único fator para isso?
Abramovay – Há alguns fatores. O aumento da renda dos países emergentes é um deles. Em 1975, um chinês consumia em média 20 quilos de alimento por ano. Hoje ele consome 50 quilos. Quem mais pesa sobre os recursos mundiais, no entanto, não são os mais pobres. Um habitante dos EUA, da Europa, do Japão, tem um consumo 32 vezes maior que um habitante da África negra.
O segundo fator é a dependência entre petróleo e agricultura. A agricultura depende do petróleo. Se ele fica mais caro, a produção agrícola fica mais cara também. Um terceiro fator é a financeirização dos mercados mundiais. Os preços agrícolas internacionais variam não só em função de oferta e procura, mas das commodities também.
E quarto, claro, é muito importante a questão dos biocombustíveis. Eles, hoje, são elemento de pressão sobre os preços, mas não os que são produzidos no Brasil. A opção de dedicar parte importante da produção de grãos, nos EUA, e, no caso europeu, de beterraba, para o etanol, exerce uma pressão sobre os preços internacionais. E o patamar passa a ser o preço de petróleo.
G1 – O Brasil pode ser beneficiado nesse sentido pelas recentes descobertas de petróleo? Ou isso nem pode ser ainda discutido?
Abramovay – Pode. Ao mesmo tempo é muito perigoso. O desafio da humanidade nos próximos anos é descobrir como se descarboniza a matriz energética da civilização contemporânea. E essas descobertas podem sinalizar para a sociedade que isso não é tão importante.
O Brasil tem participação direta na crise mundial dos alimentos, com pouca terra e água escassa, de acordo com o economista Sérgio Schlesinger, autor do livro “O Grão que Cresceu Demais: a soja e seus impactos sobre a sociedade e o meio ambiente” e pesquisador do Projeto Brasil Sustentável e Democrático e da ONG Fase. Segundo ele, a tendência é que os biocombustíveis acabem disputando o mesmo território dos alimentos. Confira:
G1 – Ao incentivar a produção de biocombustíveis, o Brasil contribui para a inflação mundial do preço dos alimentos?
Sergio Schlesinger – A minha opinião é que o Brasil contribui sim. O aumento do cultivo de produtos para os biocombustíveis é um dos fatores que contribuiu para essa alta dos alimentos. O Lula, por exemplo, disse que o preço dos alimentos está aumentando porque tem mais gente comendo. Isso é só parte da verdade.
G1 – Quais são as outras partes?
Schlesinger – A terra está escassa, a água também, os biocombustíveis concorrem com os alimentos na disputa de território e de água.
Há outra questão, que é a produção de carne. Para produzir carne, você tem que utilizar um território enorme para produzir a ração animal. A questão do modelo de produção de carne é um problema que a humanidade vai ter que encarar. Tanto isso quanto o padrão de consumo dos alimentos. Tanto que você vê que os chineses, na época de Mao Tse Tung, que tinham seus padrões culturais, não passavam fome. Mas agora estão comendo cada vez mais carne. Isso está acontecendo também na Índia, na América latina. Nós mesmos estamos comendo mais frango.
G1 – Uma recente reportagem da revista “Time” fala em uma reação em cadeia gerada pela produção de biocombustíveis, com consequências para países como o Brasil. Ela começaria com a invasão do plantio de soja, que deixa de ser produzida dos EUA, por ter perdido espaço para o milho. A soja passa a ser plantada no espaço usado para criação de rebanho. E, sem lugar para criar o gado, os pecuaristas devastam a Amazônia para criar bois. O sr. concorda com essa tese?
Schlesinger – Esse é só um dos lados. Aqui no caso do Brasil, esse deslocamento também está acontecendo muito por conta da cana-de-açúcar. São Paulo é o estado que mais produz cana no Brasil. Nesse estado, cresce a plantação de cana e diminui todo o resto. E diminui muito a área de pastagem, porque a terra está muito valorizada e não fica mais apropriada para criar gado.
São Paulo teve uma redução enorme do rebanho bovino e da produção de leite. Muitas dessas regiões não tem nem mais leite para consumo próprio. Com isso, o preço do leite para essas regiões cresce ainda mais.
Com relação aos EUA, o problema do etanol americano é o que mais impacta na questão do preço dos alimentos no mundo inteiro. Aumenta a área plantada com o milho – Brasil e Argentina são os que mais expandem a produção de soja para compensar e para ajudar no consumo da carne de outros países.
Com a produção do etanol, aumentou o preço do milho, um alimento humano forte. Aumentando o preço do milho e da soja, aumenta o preço da carne e dos laticínios. E começa uma reação em cadeia.
Isso liga a uma outra questão, que é a questão do clima. No Brasil, já há problemas no Rio Grande do Sul. Ou pela seca, ou pela geada. E isso também contribui para aumentar os preços dos alimentos.
G1 – Então, mais do que alimentar, o sr. diria que a crise é ambiental? Ou as perdas são da mesma dimensão?
Schlesinger – A crise é econômica, social e ambiental. Fortemente social e ambiental à medida que aumenta o preço dos alimentos. Lula diz que tem mais gente comendo, mas, ao mesmo tempo, tem gente comendo menos. Ele mesmo diz também que o mundo produz alimentos para alimentar todo mundo.
O problema é o acesso aos alimentos por conta da renda. Quando aumenta o preço do alimento, a renda relativa cai. Quando pensamos nas classes mais pobres da população mundial, tem muita gente reduzindo a quantidade de alimento que consome ou mesmo deixando de comer.
G1 – Qual o melhor e o pior cenário para a próxima década?
Schlesinger – No melhor cenário, o necessário seria a redução das emissões de gás carbônico, para reduzir os problemas de clima. Também seria preciso uma mudança desse modelo agropecuário, baseado nas grandes monoculturas, um novo modelo de produção de carnes e de padrões de consumo de alimentos e de combustíveis. Neste cenário, seria preciso pensar em soluções para que a humanidade precise menos de energia. O grande problema é que está se pensando que é possível, sem nenhum problema, substituir toda a gasolina pelo etanol e todo o óleo diesel pelo biodiesel.
O pior cenário é justamente continuar no caminho pelo qual as coisas estão indo. Assim, vamos ter sérias mudanças climáticas, aumento contínuo dos preços dos alimentos. No pior dos cenários há a destruição dos biomas, o aquecimento global e tudo isso.
G1 – Como o sr. avalia a declaração de que os biocombustíveis são um crime contra a humanidade?
Schlesinger – Ela é forte e acho que precisa de uma voz forte. De acordo com alguns critérios de linhas de pobreza, temos cerca de 1,2 bilhões de pessoas pobres. Tem gente que vive com menos de US$ 2 por dia e é uma catástrofe porque realmente estamos vendo o preço do trigo dobrar. Em vez de pensar em alimentar essa grande parcela da humanidade, o mundo pensa em alimentar automóveis e caminhões.
G1 – As críticas vêm, principalmente, de países desenvolvidos – apesar de as opiniões serem divididas, uma vez que os EUA também incentivam a produção do biocombustíveis e de a União Européia ter incentivado a mistura de biocombustíveis nos combustíveis comuns. Mas o sr. acha que isso pode ser uma maneira de inibir a competição de países em desenvolvimento como o Brasil?
Schlesinger – Essa é a visão do governo brasileiro, o seu discurso. Realmente é preocupante ver a União Européia ter uma meta dessas e não ter território nem água suficientes para produzir.
O que me preocupa é o Brasil querer se aproveitar desse cenário para querer aumentar as suas exportações. Essas exportações de produtos primários beneficiam muito pouca gente, em primeiro lugar. Se não fosse isso o Brasil estaria muito bem, porque o Brasil não faz outra coisa se não exportar.
O que me preocupa é que, em vez de estar destruindo a nossa biodiversidade. Com a atual política estamos comprometendo o futuro.