A taça da desigualdade global e o choque marxista, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
“Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei.
Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica”
Fernando Sabino (1923-2004)
[EcoDebate] O mundo está ficando cada vez mais desigual e os conflitos sociais tendem a aumentar. A distribuição de riqueza do mundo parece uma taça de champanhe, com uma base bem fininha e um topo bem largo. A figura acima mostra que os 20% mais pobres da população detinham 1,2% da riqueza global. O segundo quintil detinha 1,9% e o terceiro quintil 2,3% da riqueza. Isto quer dizer que os 60% mais pobres do mundo detinham somente 5.4% da riqueza total. O quarto quintil detinha 11,7% e os 20% mais ricos concentrava 82,7% da riqueza global. Para Pavan Sukhdev “Esse modelo é insustentável” (Valporto, 24/11/2015).
Karl Marx (1818-1883) dizia, ainda no século XIX, que a tendência de longo prazo do capitalismo era concentrar a renda, favorecendo o trabalho não-pago (lucro, juros, renda da terra, etc.) em detrimento do trabalho pago às classes trabalhadoras. Thomas Piketty, no século XXI, mostra que a riqueza se concentra quando a taxa média de retorno sobre o capital (r) é maior do que a taxa de crescimento econômico (g). Ou em termos matemáticos: quando r > g. Isto é cada vez uma realidade mais comum no mundo, especialmente sob o domínio do processo de financeirização que aumenta a apropriação da riqueza pelos setores rentistas e não produtivos em detrimento dos setores produtivos, quer sejam empresários ou trabalhadores (Alves, Bruno; 2014).
A crescente desigualdade baseada na injustiça redistributiva é uma afronta aos direitos humanos em qualquer situação. Mas a desigualdade é mais ou menos tolerada quando, no longo prazo, é apenas relativa e não absoluta. A desigualdade absoluta acontece quando os pobres têm menos acesso aos bens de consumo e aos bens de subsistência e alimentação, enquanto os ricos apropriam de montantes crescentes da produção. A pobreza absoluta leva necessariamente ao aumento da fome e das taxas de mortalidade, conforme estabelecido no “choque malthusiano”.
Nos últimos 250 anos, desde o início da Revolução Industrial e Energética, entre 1768 e 2018, a população mundial cresceu quase 10 vezes e a economia global cerca de 130 vezes (utilizando dados de Angus Maddison e projeções do FMI para o período 2014 a 2018) O crescimento anual da população ficou em torno de 0,9% ao ano e a economia em torno de 2% ao ano. Sendo que o maior crescimento da economia ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, com uma média anual de crescimento do PIB acima de 3,5% ao ano. Especialmente no século XX, todas as parcelas da população aumentaram os seus níveis de consumo, só que as classes médias e os ricos aumentaram a riqueza em um ritmo maior do que os pobres (Alves, 2014).
Isto quer dizer que a concentração da renda foi relativa. Os pobres do mundo estão mais pobres em relação aos ricos de hoje, mas não estão mais pobres do que os pobres do passado. Um indicador disto é que a maior parte da população de baixa renda tem acesso à luz elétrica, televisão, telefone, educação básica e outros produtos e serviços que nem existiam ou cujo acesso era inimaginável antes da Revolução Francesa. Outro indicador refere-se à longevidade, pois a esperança de vida estava abaixo de 25 anos no mundo no século XVIII e hoje em dia está acima de 70 anos. Mesmo o país mais pobre da atualidade tem esperança de vida ao nascer acima de 50 anos.
A redução da pobreza absoluta explica porque o mundo não explodiu a taça da desigualdade, que veio crescendo depois da introdução da máquina a vapor de James Watt e o início do uso em larga escala dos combustíveis fósseis. O crescimento econômico possibilitou que os ricos acumulassem riqueza e, ao mesmo tempo, aumentassem o consumo das camadas da base da taça da desigualdade.
Contudo, como mostra a escola da economia ecológica, é impossível o crescimento ilimitado em um planeta finito. As bases ambientais do crescimento econômico estão cada vez mais estreitas, pois o progresso humano ocorreu às custas do regresso ambiental. Os custos ecológicos do crescimento estão cada vez maiores, quer seja em decorrência do desmatamento, da destruição dos ecossistemas, da acidificação dos oceanos, da poluição dos rios, da crise hídrica, da crise energética, quer seja em decorrência do aquecimento global que ameaça o futuro da vida na Terra. Ou seja, é impossível continuar ampliando as atividades antrópicas em um mundo cheio e regido pelo fluxo metabólico entrópico. Tudo indica que o alto crescimento econômico que ocorreu no passado deve se transformar em estagnação secular no século XXI (Martine e Alves, 2015).
Portanto, a continuidade do crescimento econômico pode levar ao colapso ambiental, mas sem crescimento será impossível manter o processo de acumulação da riqueza relativa e a distribuição de “migalhas” para os pobres. Na impossibilidade do aumento rápido e continuado do PIB, o conflito distributivo tende a tomar o centro do palco da comédia ou da tragédia mundial. A crise fiscal do Estado dificulta a expansão de políticas públicas de proteção social, gerando descontentamentos generalizados. A luta pela distribuição da riqueza e pela apropriação do conhecimento é o que se chama de “choque marxista”. Não só os trabalhadores empregados lutam por salários mais altos e melhores condições de trabalho, mas o chamado “exército industrial de reserva” tende a se revoltar e aumentar os conflitos sociais e a violência. As disputas ideológicas e de interpretação dos fatos e da história tendem a se generalizar na mídia, nos currículos escolares, nas expressões culturais como na música e no cinema e no desenrolar dos debates do dia a dia. A desarmonia entre os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e a crise política é mais um dos lados do “choque marxista” do conflito de classes.
O mundo pode passar por grandes crises nos próximos anos devido à tempestade perfeita, que junta dificuldades econômicas, com injustiças sociais e degradação ambiental. Os casos da Síria, Iêmen e Ucrânia são exemplos de colapsos que podem se generalizar para outros países. No caso da Síria, além do conflito religioso, há a junção do “choque marxista”, do “choque malthusiano” (a esperança de vida ao nascer caiu de 74,4 anos no quinquênio 2005-10 para 69,5 anos no quinquênio 2010-15) e do “choque ambiental”, que juntos, formam o tripé da insustentabilidade, da estagnação ou do des-desenvolvimento. Para evitar este desastre é preciso “esvaziar” a taça da desigualdade, iniciando um processo de decrescimento da economia global com aumento da justiça social e ampliação da conservação ambiental.
Referências:
ALVES, JED. O crescimento exponencial em um Planeta finito, Ecodebate, RJ, 01/10/2014
VALPORTO, Oscar. A economia verde e a taça da desigualdade, Projeto Colabora, RJ, 24/11/2015
ALVES, JED. BRUNO, MAP. Crescimento demoeconômico e desigualdade no século XXI, Rev. bras. estud. popul. vol.31 no.2 São Paulo July/Dec. 2014
MARTINE, G. ALVES, JED. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? R. bras. Est. Pop. Rebep, n. 32, v. 3, Rio de Janeiro, 2015 (em portugues e em inglês)
DOI
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
in EcoDebate, 27/11/2015
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A SOLUÇÃO IMPOSSÍVEL.
1º) abolição do regime capitalista;
2º) implantação do regime socialista como condição prévia para se chegar ao comunismo, através dos seguintes suportes:
a) redução da população humana do planeta Terra a uma quantidade compatível com as possibilidades ambientais, no menor espaço de tempo possível.
NOTA: o processo de redução populacional poderia ter início com determinação legal de 10 anos de reprodução humana igual a zero;
b) criação de um único Estado planetário;
c) adoção, a nível planetário, de uma Educação Socialista, que tivesse como objetivos principais a superação da competitividade entre os seres humanos e a abolição de todas as crenças religiosas;
d) utilização dos conhecimentos científicos e tecnológicos de forma criteriosa, tendo como objetivos principais favorecer as condições de vida de todas as espécies e contribuir para o restabelecimento do meio ambiente e do clima.
NOTA: Considerando a inviabilidade de todo o plano acima exposto, devido ao domínio do capitalismo, que utiliza divesos poderes, entre os quais as estruturas dos Estados capitalistas – que inclui uma educação ao avesso, ou seja, a educação capitalista – e as crenças religiosas, concluimos que são ingênuas certas proposições sob o domínio capitalista, tipo “decrescimento da economia, aumento da justiça social e ampliação da conservação ambiental”. Aliás, falar de aumento da justiça social e ampliação da conservação ambiental não tem qualquer significado, uma vez que ambos os elementos inexistem no regime capitalista.
Outro aspecto a ser observado é que é ilusório esperar do capitalismo atitudes que favoreçam outros entes ou interesses que não sejam o seu próprio desenvolvimento, tanto a nível de Estados como de empresas privadas. Como exemplo, citamos a COP21: não passa de um faz-de-conta, como foram todas as Conferências congêneres do passado.
Creio que é com esse olhar extremamente crítico que podemos ver a real realidade em que estamos submetidos. Se não podemos combater a violência que sobre nós se abate, digamos, ao menos, que sabemos de sua origem e que temos consciência de que ela, jamais, se auto-aniquilará.
O Papa Francisco está correndo os quantro cantos do planeta falando bobagens, mas com toda credibilidade da mídia capitalista.
E o pior de tudo é que a base dessa taça (a parte da “riqueza” mundial que fica não com pessoas, mas com todo o restante da biosfera) também está cada vez menor. Se uma taça de champanhe com a haste fina demais se quebra com facilidade, uma taça de champanhe sem base se quebra com certeza.