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Notícia

A tristeza de quem vê sua terra virar lago

Construção de barragens deixou marcas profundas em 1 milhão de brasileiros. Nas regiões que serão alagadas, prejuízos começam anos antes de a inundação ocorrer. Matéria do jornal Gazeta do Povo, PR, 06/04/2008.

Existem no Brasil 2 mil barragens, incluindo grandes e pequenas hidrelétricas e represas para captação de água. Um milhão de pessoas foram afetadas por elas, mas 70% receberam indenização insuficiente, ou nem isso. Paradoxalmente, 18 milhões de brasileiros permanecem sem energia elétrica. Quem cita essas estatísticas na ponta da língua é o gaúcho Hélio Mecca, de 42 anos, um dos coordenadores nacionais do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Conhecedor do modelo energético brasileiro, e de seus impactos econômicos e sociais, Mecca tem traquejo para o discurso. Mas, em vez da crítica gratuita, prefere usar as estatísticas, os argumentos, e seu próprio relato – afinal, também sentiu na pele o que é ser desalojado pelas águas de uma barragem. “Metade do município onde eu nasci, Mariano Morro, no Rio Grande do Sul, está debaixo d’água”, conta.

Desde sempre agricultor, nos últimos anos Hélio Mecca passou a levar uma vida de viajante. Divide seu tempo entre trabalhar no campo e cruzar o país, ora denunciando os abusos cometidos em construções de hidrelétricas – como fez recentemente contra o aval do Ibama à usina de Tijuco Alto, no Vale do Ribeira -, ora tentando evitar que injustiças se repitam nas próximas obras.

Saiba mais

A sina maldita de 56 famílias de ilhéus

MST surgiu dos protestos contra Itaipu

De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, pelo menos 8 mil famílias foram desalojadas pelo lago de 1.350 quilômetros quadrados de Itaipu. Nem todas se conformaram. Dos protestos da época surgiu o Movimento Terra e Justiça, que originaria o Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Oeste (Mastro). Em 1984, milhares de integrantes do Mastro, reunidos em Cascavel com outros agricultores da Região Sul, fundaram o MST. Mais de duas décadas depois, poucos sabem que o movimento surgiu da ocupação, pela água. das propriedades de alguns de seus primeiros militantes.

Saga hidrelétrica

A história desta reportagem começou em 2006, quando o jornalista Fernando Jasper e o repórter fotográfico Hedeson Alves percorreram Centro-Sul, Sudoeste e Oeste do estado para conhecer os efeitos da construção de hidrelétricas. O material – que, a partir de entrevistas com quase 50 pessoas, contaria como o Paraná se tornou a “caixa de força” do país – não foi publicado porque, na seqüência, uma longa estiagem reduziu a níveis irrisórios a geração de energia no estado. Além de retratar o novo ciclo hidrelétrico paranaense, esta reportagem especial atualiza os dados e testemunhos colhidos há dois anos.

A localidade onde ele mora – Santa Inês, a 15 quilômetros do centro de Chopinzinho (Sudoeste do Paraná) – abriga 60 famílias que moravam na área alagada pelo reservatório de Itá, no Rio Uruguai, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Inaugurada em 1987, a usina foi a primeira a seguir uma série de procedimentos referentes ao reassentamento antes do início das obras. “Mas só conseguimos isso ocupando escritórios, trancando estradas, fazendo protestos, brigando muito”, lembra Mecca.

A hidrelétrica deu aos atingidos três opções: o reassentamento, a indenização em dinheiro ou a troca da área atingida por uma terra de igual valor. Ficou acertado, também, que não haveria obra até que todos as pendências fossem resolvidas. Mas, depois de Itá, o modelo – considerado um exemplo a ser seguido – parece não ter feito sucesso. Segundo Mecca, apenas uma usina o copiou: a de Salto Caxias, da Copel, inaugurada em 1999 no município de Capitão Leônidas Marques (Oeste do Paraná). “O país regrediu nesse aspecto”, lamenta. “O que vale hoje é o sistema antigo. A idéia de uma usina não se discute. Se impõe.”

Mecca lembra que, mesmo quando a hidrelétrica é construída após muita conversa e negociação, nada garante que ela não deixará marcas profundas nos “alagados”. O processo começa já no anúncio de que haverá um reservatório em determinado lugar. O banco não libera mais financiamentos para a agricultura, a prefeitura deixa de investir, a propriedade perde valor. “Entre o anúncio e o início das obras, podem passar dez anos. Nesse meio tempo, o agricultor vai entrar num processo de desespero difícil de se sair”, diz Mecca.

Depois, quando a barragem começa a ser construída, as pessoas têm de pensar para onde vão. Quase sempre, isso provoca a desagregação familiar: cada filho vai para um lado. E, após a mudança, há quem simplesmente não suporte viver longe. “Das 74 famílias que vieram para cá, 14 voltaram para o Rio Grande”, conta Mecca. Cuia de chimarrão na mão, ele olha para o chão e suspira: “Um agricultor de 40 anos, semi-analfabeto, quando perde sua terra, perde seu rumo.” Exemplo disso, acrescenta, são os sete agricultores que morreram anos após a formação do reservatório de Itá. Quatro deles, segundo Mecca, por conseqüência de problemas psicológicos. Outros três se enforcaram.