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Crise hídrica de São Paulo foi negligenciada. Entrevista com Marzeni Pereira

 

“Numa situação de crise aguda, que poderemos ter num futuro próximo, já que a possibilidade de colapso ainda não foi descartada, temos de optar por fontes não potáveis para fins não potáveis”, sugere o especialista em engenharia de Saneamento e ex-tecnólogo da Sabesp.

Foto: ultimosegundo.ig.com.br

 

Os dados divulgados pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp, de que o índice de volume útil de água é de 15,3% no Sistema Cantareira, “consideram tanto a primeira quanto a segunda fase volume morto. Na realidade, se fosse considerado só o volume útil, como se utilizava antes, o volume de água hoje seria 13,9% negativo”, ou seja, há um déficit de “14 mil litros por segundo”, diz Marzeni Pereira à IHU On-Line. De acordo com ele, atualmente a região. De acordo com ele, atualmente a região Metropolitana de São Paulo tem um “déficit de mais de 30 mil litros por segundo, porque a entrada de água nas represas é muito menor do que sai para o tratamento”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o ex-tecnólogo da Sabesp, que atuou na empresa durante 23 anos, conta os detalhes da crise hídrica que assusta a região metropolitana de São Paulo e diz ter sido demitido da empresa por conta do seu “ativismo”, ao dar detalhes da crise de abastecimento para a imprensa.

Segundo ele, o déficit dos sistemas de abastecimento em São Paulo já estava sendo observado há mais de uma década, em 2004 o Cantareira quase secou e chegou a 1,6% de sua capacidade. Em 2009, o Sistema Cantareiraestava com um nível de água de 99,7%, em 2010 o pico baixou para 93%, em 2011, para 66%, em 2012 caiu para 62% e desde então só vem caindo. Nesses períodos a quantidade de água que se distribuía era maior do que a quantidade de água que chegava aos reservatórios”, relata.

Apesar da situação de crise ter sido demonstrada em estudos da Secretaria de Meio Ambiente, Pereira frisa que “a Sabesp e o governo do estado de São Paulo optaram por adotar uma política de expansão de venda de água”. Na avaliação dele, “o governo deveria ter tomado medidas para evitar que a crise de abastecimento ocorresse, mas elas não foram tomadas. Pelo contrário, a situação foi negligenciada”.

Pereira disse ainda que a crise de abastecimento poderia ter sido evitada se as perdas de 30% de água do sistema de distribuição tivessem sido controladas. “Esse valor é o quanto o Sistema Cantareira fornece de água, hoje. Logo, seria possível termos evitado essa situação se tivesse se reduzido pelo menos metade dessas perdas. Se isso tivesse sido feito, de 2009 para cá, teríamos minimizado a crise”.

Marzeni Pereira é graduado em tecnologia e pós-graduado em Engenharia de Saneamento Básico pela Universidade de São Paulo – USP. Ele integra o Coletivo Água Sim, Lucro Não!.

Confira a entrevista.

Foto: Portal Viomundo

 

IHU On-Line – Qual é a atual situação do Sistema Cantareira? Ainda há risco de crise de abastecimento em São Paulo?

Marzeni Pereira – A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – Sabesp divulga um índice de 15,3% de volume útil de água no Sistema Cantareira, só que esse volume considera tanto a primeira quanto a segunda fase volume morto. Na realidade, se fosse considerado só o volume útil, como se utilizava antes, o volume de água hoje seria 13,9% negativo. Essa é a atual situação do Sistema Cantareira: 13,9% negativo. Apesar do Sistema Cantareira ser o maior, o que mais preocupa hoje, não é ele, mas, sim, o Sistema do Alto Tietê, que vive uma situação dramática, porque foi utilizado para socorrer o Sistema Cantareira. Hoje, o Alto Tietê está apenas com 13,5% de sua capacidade, já considerando uma pequena reserva de volume morto, de 6,9%. Se não chover nos próximos 90 dias — esperamos que chova — o Sistema Alto Tietê entrará em colapso, acaba a água.

IHU On-Line – Por que, quando se fala da crise de abastecimento em São Paulo, se dá mais evidência ao Sistema Cantareira do que ao do Alto Tietê?

Marzeni Pereira – O Sistema do Alto Tietê abastece cerca de 4,5 milhões de pessoas, e o Cantareira abastecia, antes da crise, 9 milhões de pessoas, por isso se dá tanta importância para ele. Mas o Alto Tietê também é muito importante e, se ele secar, teremos um grave problema de abastecimento. Recentemente, passou a ser tirada uma vazão maior do Sistema Cantareira do que estava sendo retirada no início do ano. Como ele foi poupado durante um período, voltou a ser usado com mais intensidade e está tratando cerca de 15 mil litros de água por segundo. Ontem (02-09-2015), por exemplo, o Sistema Cantareira tratou 17,2 mil litros de água por segundo; só que no Cantareira entraram, pelos rios — ou seja, pela afluência —, 6 mil litros por segundo, e saíram, no tratamento, 17 mil litros por segundo. Além disso, foi dada uma descarga de 3 mil litros por segundo para a região de Campinas. Então, houve uma entrada de 6 mil litros de água e uma saída total de 20 mil litros. Isso mostra que há um déficit de 14 mil litros por segundo.

A entrada de água no Alto Tietê foi de 5 mil litros por segundo, enquanto a saída foi de 15 mil litros por segundo, ou seja, teve um déficit de 10 mil litros. Em todos os sistemas que existem em São Paulo, o Alto Tietê, Alto Cotia,Cantareira, Rio Grande, Rio Claro, Guarapiranga, a entrada total de água foi de 26 mil litros por segundo e o tratamento, de 58 mil litros por segundo. Então, há um déficit de mais de 32 mil litros por segundo, porque a entrada de água é muito menor do que é tratado e distribuído. Essa situação é insustentável e pode se tornar ainda pior nos próximos meses, se não chover. Pois, teremos meses mais quentes, aumentando a evaporação, a infiltração no solo, bem como o consumo.

IHU On-Line – Se esses dois sistemas maiores, Alto Tietê e Cantareira, colapsarem, os demais sistemas de abastecimento teriam condições de abastecer o restante da cidade?

Marzeni Pereira – Se eles entrarem em colapso, os outros sistemas que existem não têm condições de manter o abastecimento. Rio Claro, por exemplo, ontem, tinha 8 bilhões de litros d’água, Rio Grande tinha 90 bilhões, o Cotiatinha 8,75 bilhões de litros, o Guarapiranga, 115 bilhões, o Alto Tietê tinha 70 bilhões de litros, e o Cantareira, que só tem o volume morto, 349 bilhões. A capacidade do volume morto do Cantareira é maior do que a soma dos sistemas Guarapiranga, Alto Cotia, Rio Grande e Rio Claro. A capacidade dele só não é maior do que a do Alto Tietê, que tem 520 bilhões de litros, em oposição a 510 bilhões do volume morto do Cantareira.

“O déficit desses sistemas está sendo observado desde 2010”

IHU On-Line – Desde quando os sistemas de abastecimento de água vêm atuando com déficit?

Marzeni Pereira – O déficit desses sistemas está sendo observado há mais de uma década,  mas desde 2010 a queda foi constante. Em 2009, eles chegaram a 100%, e a partir de 2010 o nível de água começou a cair e já havia indícios de que haveria uma crise. Em 2009, o Sistema Cantareira estava com um nível de água de 99,7%, em 2010 o pico baixou para 93%, em 2011, para 66%, em 2012 caiu para 62% e desde então só vem caindo. Nesses períodos a quantidade de água que se distribuía era maior do que a quantidade de água que chegava aos reservatórios. Ou seja, pelo menos, desde 2010 a contabilidade não estava fechando, mas a Sabesp e o governo do Estado de São Paulo optaram por adotar uma política de expansão de venda de água e começaram a procurar mais clientes, como indústrias, que foram convencidas a comprar água da Sabesp. Muitas dessas empresas utilizavam água de poços, mas foram convencidas a comprar água da Sabesp, com preços mais baixos. Mas o problema não foi só esse. De outro lado, também houve uma expansão do consumo, se estendeu mais redes de água e, em contrapartida, não houve expansão dos mananciais.

IHU On-Line – A crise poderia ter sido evitada? Que percentual da crise pode ser atribuído à falta de chuvas e que parte da crise está relacionada a problemas técnicos ou de gestão?

Marzeni Pereira – Aí está a questão. Muitas pessoas dizem que não era possível evitar a crise, mas se não era possível antes, não será possível fazer nada daqui para frente. Mas o fato é que já existiam vários estudos mostrando que haveria problemas de abastecimento. Vou citar um estudo que o próprio governo do Estado de São Paulo tem desde 2009, o qual foi elaborado pela Secretaria de Meio Ambiente, intitulado Cenários Ambientais 2020, que traçava três cenários: o cenário de referência, que é o mais provável de acontecer; o cenário alvo, que é aquele que se almeja; e o cenário ideal, que é aquele em que é aquele em que não haveria problema algum. O cenário de referência da Secretaria de Meio Ambiente já apontava que entre 2015 e 2018 haveria uma guerra pela água em São Paulo. Inclusive, a página 39 desse documento traça um cenário catastrófico. Esse cenário era o mais provável de acontecer, e o governo — a instituição, não estou falando de uma gestão específica — já tinha esse estudo na mão, porque inclusive, foi ele quem o encomendou.

Nesse sentido, o governo deveria ter tomado medidas para evitar que a crise de abastecimento ocorresse, mas elas não foram tomadas. Pelo contrário, a situação foi negligenciada. Então, a crise de abastecimento poderia ter sido evitada até este momento. Por exemplo, a perda no sistema de água, por causa do vazamento, é de 30% em São Paulo. Esse valor é o quanto o Sistema Cantareira fornece de água, hoje. Logo, seria possível termos evitado essa situação se tivesse se reduzido pelo menos metade dessas perdas. Se isso tivesse sido feito, de 2009 para cá, teríamos minimizado a crise.

IHU On-Line – Quais são as causas da perda de água na distribuição?

Marzeni Pereira – As perdas na distribuição de água de água têm algumas causas, e a primeira delas é o serviço mal feito. A Sabesp poderia fazer esse serviço com mão de obra própria, mas opta por terceirizar essa atividade, embora muitas empresas não tenham mão de obra qualificada para a realização do serviço, acrescente aí redução de custo pelas empreiteiras e serviço feito às pressas. O segundo problema é o uso dos materiais: ainda se usa materiais ultrapassados, como PVC e Ferro Fundido, que a cada seis metros tem um ponto vulnerável de vazamento. Hoje já existem materiais mais modernos, que têm menos emendas. Tudo isso poderia evitar os vazamentos da água. Com certeza se os vazamentos fossem controlados, não teríamos a crise de abastecimento que existe hoje.

Então, diria que a crise é, em parte, um problema de má gestão, somada com o problema climático, e ainda com o desmatamento em larga escala, do Cerrado, da Amazônia, que também, é um problema de gestão federal. Tudo isso somado acabou acarretando a crise de abastecimento de água em São Paulo.

“Se o vazamento fosse controlado, não teríamos a crise de abastecimento que existe hoje”

IHU On-Line – Você faz algumas críticas à política da Sabesp de vender água com um valor reduzido a grandes empresas que utilizavam água de poços. Que alternativas poderiam ter sido adotadas nesse sentido? Que percentual de água essas empresas utilizam?

Marzeni Pereira – Muitas das empresas tinham poços e várias ainda continuam usando poços. O consumo de água do setor industrial não é igual ao residencial: o consumo residencial na região metropolitana de São Paulo é responsável por cerca de 80% da água que a Sabesp vende, e os outros 20% são divididos entre o consumo industrial, público e comercial. Mas mesmo que esses grandes consumidores utilizassem poços, isso tem impacto na quantidade de água reservada nas represas, porque à medida que se retira água do subsolo, parte da recarga do subsolo é feita pelas represas. Então, se a Sabesp não vendesse a água, essas empresas iriam utilizar a água do subsolo do mesmo jeito.

Os grandes consumidores que compram água num valor abaixo daquele vendido normalmente, não causam grande impacto, o problema é moral: como se vende água para grandes consumidores utilizarem para fins não potáveis, como dar descarga em banheiros, e se vende água num valor maior para as escolas, que vão usar para fins potáveis?

Do ponto de vista das residências, também tiveram políticas para aumentar o consumo. Antes de 1990, era comum as pessoas terem poços rasos em casa, mas foi desenvolvida uma política do Estado, nos últimos 20 anos, para que as pessoas fechassem os poços, com a justificativa de que eles estariam contaminados. Mas não foram feitas análises da água para verificar se de fato a água de todos os poços estava ou não contaminada. Eu acredito que grande parte da água estivesse, sim, contaminada, mas só é possível afirmar isso depois de fazer análise da água. Mas por que houve esse empenho em fechar os poços? Porque havia uma política de aumento da venda de água para aumentar a lucratividade, ou seja, aumentar a arrecadação da empresa.

IHU On-Line – Valeria a pena tratar a água dos poços ou utilizá-las de algum modo?

Marzeni Pereira – Poderia usar a água dos poços para fins não potáveis. Numa situação de crise aguda, que podemos ter num futuro próximo, já que a possibilidade de colapso ainda não foi descartada, temos que optar por fontes não potáveis para fins não potáveis, ou seja, fontes de água que as pessoas podem utilizar para regar plantas e jardins, para dar descarga no vaso sanitário, etc. Nesses casos, a água não precisa ser potável. Até mesmo para lavar roupa, não precisa ser água potável, tem que ser limpa, do mesmo modo que para tomar banho. Nós tomamos banho em rios e no mar e a água não necessariamente é potável.

Não estou dizendo que não temos que tomar cuidado com a qualidade das águas, mas numa situação de crise, temos que optar. Em minha casa tenho captação da água das chuvas, mas filtro, trato e faço o controle do PH dessa água, e a utilizo para tomar banho, lavar roupa. Claro que nem sempre teremos água de chuva, mas muitas vezes tenho mais água da chuva do que da rede pública.

IHU On-Line – Esse tipo de reutilização da água faz parte de uma política de reúso de água?

Marzeni Pereira – Não consideramos a utilização da água da chuva como reuso, porque a água de reuso é aquela que já foi utilizada uma vez, por exemplo, a água do banho que se coleta e se joga no vaso sanitário, ou a água que é acumulada na máquina de lavar roupa e é reutilizada. Só que o reuso de água pode ser feito em grande escala também. Em São Paulo há um volume enorme coletado de esgoto, mas o tratamento é muito pequeno, de cerca de 18 mil litros por segundo, enquanto o tratamento de água, em tempos normais, é de cerca de 73 mil litros por segundo. Então há uma diferença muito grande em relação ao que se trata de água e de esgoto.

Agora, parte ou a totalidade da água tratada de esgoto poderia ser utilizada para fins não potáveis. Uma indústria poderia utilizar a água do esgoto tratada, não potável, para dar descarga no vaso sanitário ou refrigerar equipamentos, por exemplo. Isso representaria uma redução na captação de água em novos mananciais. Imagina quanto não aumentaríamos de disponibilidade de água.

Ao invés de buscar novos mananciais para serem explorados, poderíamos criar alternativas que já estão na região metropolitana de São Paulo. Para você ter uma ideia, somente aqui nessa região, temos uma capacidade de coletar, em média anual, 15 mil litros de água de chuva por segundo. Isso representa o que já está tratando no Cantareirahoje. Entretanto, a coleta e uso das águas das chuvas não podem ser feitam sem técnicas e critérios. É necessário um programa governamental para isso, com verba, técnicos e projeto. Caso contrário, a população fazer coleta de água de chuva sem critérios podem ser gerados outros problemas de saúde pública, como epidemia de dengue, leptospirose, por exemplo.

“Somente na região metropolitana de São Paulo, temos uma capacidade de coletar, por ano, 15 mil litros de água de chuva por segundo. Isso representa o que já está faltando no Cantareira hoje”

IHU On-Line – E qual é a viabilidade de tornar um sistema de reúso de água disponível para a população?

Marzeni Pereira – Isso é perfeitamente possível, de forma planejada, só é preciso fazer tubulações das estações de tratamento de esgoto para postos de gasolinas, empresas, ou seja, basta ter uma tubulação exclusiva de água de reuso para isso. A utilização de carro-pipa também é uma alternativa que já existe, e a prefeitura de São Paulo já lava as ruas da cidade com água de reuso. O Polo Petroquímico do ABC também utiliza água de reuso, 500 litros por segundo fornecida pela Sabesp, para atividades não potáveis. Mas ainda é muito tímida a utilização. Soluções existem, o problema é que não querem gastar dinheiro, porque o interesse econômico fala mais alto do que os interesses ambientais e sociais.

IHU On-Line – Em que outros mananciais o Estado de São Paulo e a Sabesp estão buscando água para conter a crise de abastecimento?

Marzeni Pereira – Já está em construção o sistema chamado São Lourenço, que trará água do Vale do Ribeira, que dará um fôlego de 5 mil litros por segundo, a um custo de R$ 2,2 bilhões. Mas se esse dinheiro fosse investido nessas alternativas que mencionei, poderia haver uma maior disponibilidade de água.

Outra possibilidade encaminhada pelo governo, que já está em fase de licitação, é trazer em torno de 5 mil litros por segundo de água do Rio Paraíba do Sul e interligar à represa Atibainha no Sistema Cantareira. Essas são obras extremamente caras, que causam um impacto ambiental grande e que poderiam ser evitadas se cuidássemos melhor das águas que temos, porque existem muitos rios em São Paulo, mas estão todos poluídos.

Em São Paulo existem muitos rios, e a incidência de chuvas no estado é boa: chove quase três vezes o que chove no Sertão Nordestino. Só que esses rios são abastecidos, essencialmente, por esgotos. Se parar de chover dois meses, por exemplo, os córregos continuam tendo fluxo e isso significa que são abastecidos por esgotos. Mas a questão é: quem joga esgoto nesses córregos? São as companhias de saneamento e, em São Paulo, a Sabesp contribui muito com a vazão dos córregos.

Os nossos rios poderiam ser utilizados como mananciais, mas não são utilizados porque não cuidamos deles. Não vou atribuir a culpa disso somente a essa gestão atual do governo e da Sabesp, claro que não, isso seria leviandade. Pois houve sempre uma política de desprezo em relação aos rios; eles eram vistos como algo sem importância, mas agora estamos pagando essa conta pela negligência.

IHU On-Line – De quem é a responsabilidade pelo saneamento dos rios?

Marzeni Pereira – Existem vários níveis de responsabilização. O governo federal deveria ter uma política de recursos hídricos mais séria, deveria atuar mais através da Agência Nacional de Águas – ANA. Os governos estaduais, especialmente São Paulo, têm a política de saneamento e gestão sobre as águas, só que essa gestão não é eficiente. Em São Paulo existe a Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo – Arsesp, que deveria fiscalizar e proibir que se jogasse esgoto nos córregos. Os municípios, que são os poderes concedentes, também deveriam atuar, fiscalizar e exigir que as empresas tratassem os esgotos antes de lança-los nos rios.

No entanto, vários municípios também têm suas empresas de saneamento, algumas têm o departamento de água e esgoto, que são os DAE, outros têm serviços autônomos de água e esgoto e, no caso de São Paulo, vários municípios não são geridos pela Sabesp, pela administração estadual. Então, grande parte desses municípios não trata seus esgotos em quantidade e qualidade suficiente para que os corpos d’água não sejam poluídos. Em Guarulhos, por exemplo, pouco se trata esgoto. Em Mogi das Cruzes, no Alto Tietê, jogam esgoto in natura nos rios. Mas, a maior parte, a responsabilidade é do governo do Estado, que tem a Sabesp como empresa de saneamento e tem recursos.

“A Sabesp tem de voltar a ser uma empresa pública, ela tem que ser reestatizada”

IHU On-Line – Em que consiste o plano de rodízio da Sabesp? Ele é uma alternativa adequada ou não?

Marzeni Pereira – O rodízio da Sabesp — que ela não assume — foi um dos motivos da minha demissão, depois de atuar na empresa por 23 anos, porque eu disse aos órgãos de imprensa — fui entrevistado pelo El País — que a Sabesp estava fazendo um rodízio, ou seja, a Sabesp fecha a saída do reservatório e faz o rodízio.

O rodízio é uma forma de segurar mais água. Caso a Sabesp não tivesse feito o rodízio, a água não teria sido suficiente para abastecer a população até o mês de fevereiro, que foi quando começou a chover. O rodízio, infelizmente, foi utilizado muito tardiamente.

A Sabesp tinha um plano de rodízio já no início de 2014, mas em função das pressões eleitoreiras – tinha uma eleição no meio do caminho – e em função de uma Copa do Mundo, o rodízio foi postergado, porque não queriam mostrar que o estado mais rico do Brasil, em um dos países mais ricos em água do mundo, estava enfrentando um problema de abastecimento de água em pleno período de Copa. Portanto, para evitar isso, não fizeram o rodízio como deveria ter sido feito. À época, o rodízio era necessário para garantir uma gestão segura do abastecimento, do ponto de vista da quantidade de água.

Problemas do rodízio de água

Por outro lado, fazer rodízio também é um problema, porque pode contaminar a rede de abastecimento. Toda vez que se paralisa uma rede de abastecimento de água, aquele volume que tem dentro da rede precisa ser ocupado, pode ser por meio de ar ou qualquer outra substância que estiver fora, qualquer outro fluido, se a rede tiver vazamento. Onde tiver vazamento, há risco de água contaminada entrar na rede e contaminar, por exemplo, a água que está na caixa d’água, nas residências.

O rodízio, além do problema da qualidade da água, pode trazer outros problemas. Por exemplo, uma informação que é pouco veiculada na mídia: toda vez que se faz rodízio, entra ar na rede, e esse ar, depois, tem que sair e sairá no cavalete das pessoas e fará o hidrômetro girar favorável ao aumento da conta de água. Então, se todos os dias o abastecimento de água é paralisado, significa que todos os dias haverá mais ar na rede.

Além disso, também se gera um problema na estrutura de rede. Imagina que todos os dias uma rede de água tem uma pressão de 50 metros de coluna água (mca), ou seja, a água está pressurizando a rede e quando falta água, o que acontece? A pressão vai para zero. Esse processo causa, na rede, um efeito chamado de “efeito fadiga”, que é uma hora a incidência de pressão alta e, em outra, de pressão baixa. Se isso acontece com frequência, com o tempo a rede será comprometida, porque esse aumento e queda abrupto de pressão danificará a rede. Se continuar por mais tempo com o rodízio, a Sabesp terá que trocar toda a sua rede, porque estourará tudo, tanto a rede de ferro quanto a rede de PVC. É um problema sério para o futuro.

Falta d’água

Atualmente, a Sabesp está deixando muitos lugares sem água durante 13, 15, até 16 horas. Em alguns locais, esse tempo chega até 18 horas todos os dias. Mas como Em São Paulo, mais de 80% da população tem caixa d’água em casa, parte dessa população normalmente não percebe quando falta água, porque se chegar água em casa durante seis horas do dia, com exceção de quem fica em casa, poucos percebem que está faltando água.

Mas há um lado positivo no rodízio: Imagina que falta água 15 horas por dia, nesse período não tem vazamento, o que significa também, que nesse período não tem perda. Com esse rodízio, a Sabesp conseguiu reduzir significativamente suas perdas, porque o tempo de pressurização da rede é muito menor. Então, isso justifica, por exemplo, por que ainda temos água hoje. Poderíamos não termos mais água se não tivesse sido feito o rodízio.

Assim, toda vez que se paralisa a rede de água, há o risco de contaminação. Nesse sentido, o rodízio é um problema, mas em última análise, ele foi necessário. Fazer o rodízio foi uma atitude acertada, o que não foi acertada foi a política de orientação do governo do Estado de São Paulo, que não deixou a Sabesp fazer o rodízio antes e não é transparente. Se a Sabesp tivesse autonomia para atuar desde o início de 2014, a situação hoje seria mais confortável; não estou dizendo que seria segura, mas seria mais confortável.

“Se a Sabesp tivesse autonomia para atuar desde o início de 2014, a situação hoje seria mais confortável”

IHU On-Line – Como se deu seu processo de desligamento da Sabesp?

Marzeni Pereira – Eu era empregado público, mas não era estatutário, pois a Sabesp é uma empresa de economia mista, então a admissão se dá pelo concurso público, mas os funcionários trabalham sob o regime da CLT. Por isso, a Sabesp pode demitir, desde que tenha a justificativa adequada. Eles fizeram um corte de 604 trabalhadores no início deste ano. Eu já havia sido avisado no final do ano passado que seria demitido neste ano, por conta do meu ativismo e da minha forma de atuar. Internamente, eu deixei muito claro que a transparência é essencial, que tem que falar a verdade, porque a população precisa saber o que está acontecendo. Muitas pessoas sentem medo de falar alguma coisa, apesar de saberem, por medo de sofrer retaliações.

Quando comecei a dar entrevistas, evitava falar de questões que são segredos de empresa, aliás, nem existem muitos segredos, até porque uma empresa que presta serviço público nem deveria ter segredo, deveria ser totalmente aberta em relação às suas atividades, além disso, não tem concorrente. De todo modo, eu evitava falar de questões muito específicas, mas mesmo assim isso provocou uma ira muito grande na direção da empresa e do governo do Estado.

Estou entrando na justiça agora por conta da minha demissão. Saiu uma liminar dizendo que não deveria haver mais demissões, só que a liminar caiu e a Sabesp voltou a dizer que não irá readmitir ninguém. Minha demissão foi justificada como redução do fluxo de caixa, ou seja, eles dizem que houve uma redução do fluxo de caixa e por isso eles me demitiram. Ocorre que minha avaliação interna sempre foi muito boa, chegava próximo de 100%. Mas, enfim, eu não perdi horas de sono por causa disso; já estava preparado psicologicamente. Claro que eu não queria ser demitido, mas me preparei psicologicamente para não ficar abatido. Minha demissão é um caso claro de perseguição!.

IHU On-Line – Além do controle na perda da distribuição, das políticas de reúso e do rodízio, que medidas poderiam ajudar a resolver o problema da crise hídrica?

Marzeni Pereira – Não há ações imediatas que possam resolver a crise. Por exemplo, se não chover até o final do ano e prosseguir essa estiagem por mais dois ou três anos, com chuvas muito abaixo da média, teremos um caos em São Paulo. Para os próximos três ou quatro anos, é possível ter algumas opções de atuação. Por exemplo, se não chover nos próximos três ou quatro meses, o sistema Alto Tietê, Cotia e Rio Claro, irão secar e, com certeza, oCantareira também. Nós não teremos água na região metropolitana para 20 milhões de pessoas, o que seria um caos, uma catástrofe.

Mas vai chover, pode ser abaixo da média, mas vai chover, então teremos água para mais uns meses. O que poderia ser feito para minimizar? Primeiro, temos de ter um programa ousado de coleta e uso da água de chuva. É preciso também que o governo abra mão da necessidade de arrecadação, porque aí também cai a arrecadação da empresa de saneamento, da Sabesp — o Estado usa parte dessa arrecadação até para as receitas estaduais, o que é um erro, pois o dinheiro do saneamento deveria ser utilizado no saneamento, mesmo o excedente.

Alternativas

Ainda no curto prazo, dependendo da situação, é preciso abrir poços em larga escala. O próprio governo deveria fazer isso para que a população não fique totalmente sem água. Além disso, a Sabesp tem de voltar a ser uma empresa pública, ela precisa ser reestatizada, só que não pode ser estatizada na forma como era antes, em que o governo tinha a maioria das ações, mas as empreiteiras continuavam mandando por dentro e dando as ordens de como e quais obras deveriam ser feitas. Tem que haver controle social dessa empresa. Nós estamos falando do setor de saneamento, que atinge diretamente a saúde das pessoas. O Ministério da Saúde divulgou que cerca de 80% das internações hospitalares vêm da falta de saneamento. Portanto, esse é um setor que está ligado diretamente à saúde pública.

Também é preciso um programa agressivo de preservação e recuperação de mananciais. Os mananciais que existem hoje têm que ter suas áreas preservadas, mas, mais que isso, é preciso fazer o reflorestamento com espécies nativas. Além disso, é preciso retirar os esgotos dos mananciais. Tem mananciais em São Paulo, como é o caso da represa Billings, do Guarapiranga, que estão em estado deplorável. A qualidade da água da Billings é pior que a qualidade da água do volume morto do Cantareira, muito pior. Então, é necessário retirar o esgoto dos mananciais, há a necessidade de tratar o esgoto urgentemente, não dá para jogar o Rio Pinheiros na Billings, na qualidade em que está hoje. Em médio e longo prazo seria indispensável esse tipo de atuação.

Também precisamos combater a especulação imobiliária, porque as áreas de mananciais são ocupadas ou pela especulação imobiliária para fazer novos loteamentos ou pelas populações mais pobres, que não conseguem comprar casas nas regiões mais centrais.

Atuação no médio e longo prazo

Em médio e longo prazo existe uma folga maior para atuar. Agora, o problema principal é no curtíssimo prazo. Inclusive uma das minhas críticas mais fortes na Sabesp era de que o governo estava fazendo uma administração de alto risco, porque já havia avisos e previsões mostrando que era preciso fazer algo com urgência. Inclusive à época da renovação da outorga do Sistema Cantareira, em 2004, já havia a previsão de que o governo do Estado deveria reduzir perdas e tratar esgotos para que se reduzisse a dependência do Cantareira, e isso não foi feito.

“Brasil exportou em 2013 o equivalente em água que poderia abastecer a região de São Paulo por 100 anos”

Mas para reduzir perdas é preciso ter pessoas qualificadas para fazer os serviços, não dá para contratar uma empreiteira e depois de dois anos contratar outra, com pessoas que nunca trabalharam no setor. Os funcionários da Sabesp têm 10, 15, 20 anos de trabalho na área e conhecem tudo de saneamento. Então esse profissional precisa ser preservado. É preciso também ter um combate ao lobby das empresas que vendem materiais, e não dá para submeter o interesse coletivo da população em geral aos interesses individuais, tanto das prestadoras de serviços, das empreiteiras, quanto das empresas que vendem materiais.

No meu ponto de vista, essa crise de abastecimento de água que sofremos, que é essencialmente é uma crise de gestão, tem que servir como balizador do que não deve ser feito, ou seja, não podemos deixar acontecer no futuro o que está acontecendo agora. Como é que vamos deixar uma região com 20 milhões de pessoas, correr o risco de ficar totalmente sem água? Não tem cabimento.

O problema não é só a questão da falta de chuva, é questão de gestão. Devemos tomar medidas que sirvam de precaução, e o princípio da precaução tem de estar sempre pautado. Se nós não temos certeza de que irá chover no ano que vem, o que vamos fazer? Vamos preparar a população, vamos pensar alternativas.

Gostaria ainda de lembrar que nós também temos um problema sério no uso da água no Brasil em relação à agricultura, que utiliza 70% da água hoje. Só para termos uma ideia — fiz um cálculo rápido com dados do Ministério do Desenvolvimento e Comércio —, só com quatro produtos — soja, carne, café e milho —, o Brasil exportou em 2013 o equivalente em água que poderia abastecer a região de São Paulo por 100 anos.

Por Patricia Fachin

(EcoDebate, 08/09/2015) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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One thought on “Crise hídrica de São Paulo foi negligenciada. Entrevista com Marzeni Pereira

  • Paulo Afonso da Mata Machado

    Marzeni é um técnico experiente que possui formação na área de saneamento. Sua entrevista é bastante elucidante.
    Gostaria, no entanto, de acrescentar algumas observações com relação à política de reúso que ele recomenda.
    Primeiramente, não creio que o reúso da água deva ser exclusivo de empresas e postos de gasolina. A meu ver, o reúso deve ser para toda a população abastecida. A dificuldade que ele menciona de fazer uma rede especial para água de reúso ou usar carros-pipa fica superada na medida em que o tratamento do esgoto chegar ao nível de água potável.
    Os números citados por ele mostram como esse reúso é necessário: 73 mil litros por segundo de tratamento da água e 18 mil litros por segundo de tratamento de esgoto.
    Isso mostra o quanto o tratamento de esgoto é relegado a segundo plano.
    Por quê? Simplesmente porque não há receita com o tratamento de esgoto. A Lei 9.433 deu poder aos comitês de bacia para taxar punitivamente o lançamento de esgoto “in natura”, mas esse poder, infelizmente, não vem sendo utilizando.
    Fica mais barato para as prefeituras e as companhias de saneamento pagar as pequenas taxas cobradas pelos comitês de bacia para lançamento de esgoto não tratado que tratá-lo para reusá-lo.
    Portanto, o reúso de água só vai se tornar generalizado, com tratamento adequado, se o lançamento de esgoto “in natura” em cursos de água vier a ser taxado de forma punitiva.

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