EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

Usinas no Rio Madeira: Consenso privado impõe as regras de licenciamento dos projetos de infra-estrutura, artigo de Luis Fernando Novoa Garzon

[Correio da Cidadania] Desde o início, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) das Usinas no Rio Madeira, patrocinado pelo Consórcio Furnas-Odebrecht, mostrou-se inconsistente diante da enorme complexidade do Rio Madeira, da sua bacia e da vida em seu entorno. Em 24 de fevereiro de 2006, uma informação técnica do IBAMA(12/2006) já apontava para a necessidade de complementação dos estudos: “considerou-se que eram necessárias adequações para que o estudo a ser submetido às audiências públicas tivesse maior consistência”. Em 28 de abril de 2006, o Consórcio entregou o que considerou serem “complementações”.

Em 26 de junho de 2006, em nova Informação técnica (08/2006), o IBAMA declara que as complementações “foram insuficientes e/ou insatisfatórias tecnicamente para o aceite dos estudos”. Entre 11 de agosto e 21 de agosto, quatro reuniões foram feitas entre IBAMA, o Consórcio Furnas-Odebrecht e consultorias, para “dirimir dúvidas acerca das exigências do órgão ambiental”. Em 11 de setembro de 2006, O IBAMA então reconhece em Informação técnica (34/2006) que, mediante considerações/pendências (“não impeditivas”) a respeito:1) da área tombada da EF Madeira-Mamoré; 2) de “características intrínsecas dos fenômenos ligados aos sedimentos”, bem como da explicitação da necessidade de monitoramento e de continuidade dos estudos, que o EIA-RIMA, com as complementações feitas, estava apto à análise de viabilidade ambiental dos empreendimentos, ou seja, apto para ser avaliado em audiências públicas.

Nesse episódio, já se faziam perceptíveis as pressões para a flexibilização dos critérios do IBAMA para o aceite inicial dos estudos. Mesmo assim, ficou claro que as pendências identificadas deveriam ser sanadas com a “continuidade dos estudos”.

As Audiências foram realizadas no município de Porto Velho, entre 11/11/2006 e 30/11/2006, sem o nivelamento prévio necessário para que houvesse entendimento dos riscos envolvidos pela população, sem portanto acúmulo de diálogo social e de discussão técnica, sem metodologias de debate que fossem eficientes e participativas.

Até a emissão do Parecer técnico, o conjunto das pendências e insuficiências levantadas não foi sanado, nem houve tentativa verificável nesse sentido. O Parecer Técnico nº. 14, emitido em 21 de março de 2007, reafirmou, portanto, as inobservâncias encontradas anteriormente pelo IBAMA. O Parecer apresenta uma lista de insuficiências do EIA apresentado pelo Consórcio Furnas-Odebrecht. Uma delas seria a ausência de estudos conjuntos dos impactos a montante das obras, no Peru e na Bolívia: “Nesse sentido, considerando a real área de abrangência dos projetos e o envolvimento do Peru e da Bolívia, a magnitude desses novos estudos remete à reelaboração do EIA e instrumento apropriado a ser definido conjuntamente com esses países impactados”. Mais à frente “conclui não ser possível atestar a viabilidade ambiental dos aproveitamentos hidrelétricos Santo Antônio e Jirau sendo imperiosa a realização de novo Estudo de Impacto Ambiental…”.

A forma dessa conclusão é contestada pelo diretor nacional de Licenciamento Ambiental, à época, Luiz Felipe Kunz, no despacho de 30 de março de 2007. Motivo que ampara seu não acolhimento da conclusão do Parecer e sua decisão de dar continuidade ao processo de licenciamento com as “devidas complementações”. Textualmente: “Deixo de acolher o Parecer 014/2007 solicitando sua revisão, em face de dubiedade de suas conclusões, uma vez que, no último parágrafo da página 220, a equipe técnica sugere a reelaboração do EIA e, no parágrafo final da página 221, sugere a realização de novo estudo de impacto ambiental”.

A circunstância que remete “à reelaboração do EIA” respalda a conclusão de inviabilidade ambiental e a necessidade de um novo EIA. A dubiedade apontada por Kunz (que permitiria a interpretação de que a reelaboração seria do EIA já apresentado) não abole a insuficiência identificada no mérito, ou seja, a inexistência de estudos prévios conjuntos sobre a bacia internacional do Madeira. Estudos que, por sua magnitude, deveriam estar contemplados em novo EIA, como deixa claro, por este e por outros motivos, a conclusão final do Parecer.

De qualquer modo, a sugestão de reelaboração ou de realização de novo EIA seria considerada extemporânea para Kunz, alegando, na seqüência do despacho, que “no entendimento dessa diretoria, o momento atual do processo é o de complementações (…)”. Desse modo, Luiz Felipe Kunz substituiu meses de trabalho coletivo especializado, que redundaram em um Parecer Técnico conclusivo pela inviabilidade ambiental, por um unilateral “entendimento” a favor da complementação dos estudos. Em entrevista à imprensa, Kunz se contorce para distorcer o resultado do Parecer como se fora despropositado, para assim vender ponderação: “Não cabe nem refazer nem começar do zero. Não tem sentido processual mudar as regras depois de um pedido de complementações, que foi feito ao consórcio pelo Ibama em fevereiro de 2006, e depois das quatro audiências públicas já realizadas”, afirma Luiz Felippe Kunz.

A afirmação do ex-diretor faz crer que a recusa da Licença-Prévia não faz parte das regras do jogo. Deixou de ser redundante dizer que a licença ambiental, tal como o alvará e demais licenças, são decisões administrativas que têm poder de autorização ou de veto? A definição apriorística do diretor pela opção da complementação contradiz posição anterior sua, em nome do IBAMA, divulgada pela assessoria de imprensa do órgão dois meses antes. A “nota oficial do IBAMA” publicada em 21 de fevereiro de 2007 procura retificar a declaração atribuída a Kunz, veiculada pela Agência Brasil-Radiobrás, anunciando que a licença prévia do Madeira sairia dali a um mês. A nota procura demonstrar que o que o diretor de licenciamento do IBAMA estava anunciando era a emissão do parecer sobre a LP e não da própria LP em si. O parecer, segundo esta nota, compreenderia distintas possibilidades:

“O parecer poderá trazer três desfechos possíveis:

1º – poderá ser pela viabilidade ambiental do empreendimento, com a conseqüente emissão da Licença Prévia (LP). Tal licença garante que o empreendimento é viável ambientalmente;

2º – a equipe de licenciamento poderá, no parecer, solicitar maiores complementações ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), considerando novos questionamentos levantados pela população de Rondônia, por movimentos sociais e pela documentação protocolada por eles nas audiências;

3º – a equipe poderá, ainda, dar parecer considerando o empreendimento inviável ambientalmente – situação que levará o empreendedor a ter que elaborar novo projeto”.

Fica claro aqui que a equipe técnica que elaborou o Parecer 014/2007 optou pelo último desfecho, pela inviabilidade ambiental dos empreendimentos Santo Antonio e Jirau , situação que deveria levar “o empreendedor a ter que elaborar novo projeto”. A própria nota técnica ditada e orientada pela diretoria do IBAMA mostra que são interdependentes os momentos de definição de inviabilidade e de necessidade de elaboração de novo projeto. Ainda que não fosse competência específica da equipe técnica sugerir ao empreendedor que refizesse os estudos de impacto ambiental, tal procedimento depreende-se da reprovação da viabilidade ambiental do projeto. Uma avaliação rigorosa de caráter técnico, feita por especialistas experimentados, não poderia ser desqualificada por conta de elementos textuais colaterais. A conclusão do Parecer foi legítima e legal. Reiterando: o veto foi previsto como um dos “três desfechos possíveis” para o Parecer 14/2007, como consta na Nota oficial do Ibama citada.

A busca público-privada pela aprovação incondicional e a divisão do IBAMA

Não há justificativa técnica, administrativa, processual e jurídica para o não acolhimento do Parecer 014/2007.O que não faltou antes e depois desse despacho foram as pressões políticas e econômicas, notadamente do Ministério das Minas e Energia, da Casa Civil, da Presidência da República e das grandes corporações empresariais, todos interessados na aprovação mais rápida possível da licença-prévia das duas Usinas. Na verdade, governo e setor privado queriam era a aprovação sumária e incondicional da LP do Madeira. Era a senha para a grita generalizada, primeiro do próprio presidente, depois de todo establishment público-privado e seus negócios associados, contra o “gargalo ambiental” e os “entraves ao desenvolvimento”.

Foi nesse contexto que se deu a chamada “reestruturação” do IBAMA com a subdivisão do Instituto Chico Mendes. O objetivo foi ceifar a autonomia do órgão licenciador para alinhá-lo aos requerimentos e ao timing dos investimentos privados. Ou seja, na trajetória do auto-licenciamento dos empreendimentos privados com diligente chancela “pública”, que os imuniza contra eventuais contestações jurídicas.

O primeiro teste desse IBAMA mutilado, acéfalo, com uma presidência pro-tempore permanente, encarnada na figura de Basileu Margarido, foi a rápida emissão da LP do Madeira como esperado. Vista grossa para impedimentos e insuficiências capitais do projeto e a aposição de condicionantes genéricas que oficializam seu auto-licenciamento pelo consórcio vencedor, beneficiado, por isso e com isso, duplamente.

As respostas às Informações técnicas (ITs) nº. 17, 19 e 20 (respectivamente sobre sedimentos, peixes e mercúrio) tiveram caráter reiterativo dos limites de informação alcançados pelo Consórcio, que chamou para si a competência de definir o “grau de suficiência ou de insuficiência” de informações para cada fase de licenciamento. Para a fase prévia (a mais crucial para projetos de grande impacto), o Consórcio e seus especialistas contratados, o que se apresentava deveria ser sempre o bastante. Na resposta do Consórcio às ITs, apresentada em 11 de maio de 2007, na página 9, consta que: “a conclusão da referida instrução técnica (IT nº. 17) afirma que os Andes e a planície a montante (Chaco,Beni-Llanos) são de fundamental importância para a análise das questões hidrosedimentológicas relacionadas com os aproveitamentos hidrelétricos, enquanto afirmação em contrário foi exaustivamente apresentada ao IBAMA pelos consultores Drs.Newton Carvalho e Sultan Alan, ou seja, de que não é imprescindível um conhecimento detalhado da origem dos sedimentos do rio Madeira nessa fase de licenciamento prévio, o que é novamente explicado no item 3.4.2.1.” (grifos nossos).

Frente à questão colocada da necessidade do estudo prévio da bacia hidrográfica, requisito da Lei Nacional de Recursos Hídricos, a resposta foi a seguinte ( na página 12, item 2): “para o diagnóstico do EIA quanto a sedimentos, tema dessa Informação Técnica, não é necessário para a definição da viabilidade ambiental avaliar a bacia hidrográfica como um todo, ponto de consenso entre os especialistas e confirmado na Nota Técnica do MME e na Nota Técnica “Sedimentos, Modelos e Níveis d’Água” (grifos nossos).

O próprio consórcio patrocinador dos estudos, e que concorreu e venceu a licitação, é que define a aplicabilidade e a abrangência da regulamentação a que deve estar submetido. Doravante, são os consensos privados e as confirmações dos lobbies esclarecidos que estabelecem a jurisprudência do licenciamento dos grandes projetos de infra-estrutura no país.

Luis Fernando Novoa Garzon, membro da ATTAC/REDE BRASIL/REBRIP, é professor da Universidade Federal de Rondônia – Email: l.novoa@uol.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email

Artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, 13/02/2008