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Crise hídrica. Uma fatalidade climática ou ela foi construída? Entrevista com Humberto Miranda

 

“Se considerarmos o mesmo nível de ‘exportação de água’ hoje, para uma população de 200 milhões de habitantes, estaríamos exportando 560 litros de água/ano por habitante”, diz o economista.

Foto: http://itambe.projetosredirect.com.br

A partir da crise hídrica que já afeta alguns estados brasileiros, devem ser feitas as seguintes questões: “Por que chegamos a esse ponto? A quem interessa a crise da água? É uma fatalidade climática ou ela foi construída?”, sugere Humberto Miranda em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.

Ele lembra que embora a agricultura tenha demandado um uso expressivo de água com a expansão do agronegócio, a “chamada ‘crise hídrica’, por seu turno, tem mais a ver com o urbano: indústria e urbanização”.

De acordo com ele, o consumo de água industrial e o uso doméstico apresentam uma situação mais complexa, porque estão relacionados “às formas de produção intensivas em recursos naturais (desperdiçam/degradam) ou às características específicas de um segmento em franco crescimento, como o de bebidas alcoólicas e não alcoólicas”. Para fabricar apenas um litro de bebida, por exemplo, são gastos entre 1,5 e 3 litros de água.

Contudo, pontua, a expansão urbana é o ponto “mais grave de todos” quando se analisam as causas do desperdício de água. “A questão central está no ritmo de crescimento das manchas urbanas. Esse é um dado mais estrutural e que não se resolverá tão cedo, mas poderá ser o calcanhar de Aquiles da crise das águas urbanas”, frisa. E acrescenta: “O avanço do capital imobiliário, através da valorização/especulação do uso/ocupação dos solos e na disputa pela localização vantajosa contribui vigorosamente para essa expansão”.

Humberto Miranda é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, mestre e doutor pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico – CEDE e desenvolve estudos e pesquisas na área de Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente, com ênfase na questão regional e urbana.

Confira a entrevista.

Foto: http://greenstyle.com.br

IHU On-Line – Como o fato de a economia brasileira ser uma economia que depende da exportação de commodities impacta na crise hídrica que estamos vivendo?

Humberto Miranda – Numa matéria do jornal O Globo de 11/09/2012, intitulada “Brasil exporta cerca de 112 trilhões de litros de água doce por ano”, fez-se uma estimativa aterradora. Se considerarmos o mesmo nível de “exportação de água” hoje, para uma população de 200 milhões de habitantes, estaríamos exportando 560 litros de água/ano por habitante. Só que não adianta individualizar o problema. Essa informação se refere ao setor agroexportador, mas não sabemos ainda o quanto isso tem afetado ou impactado o abastecimento humano. Também não se trata de cada um de nós reduzirmos o consumo individual, que tem efeito no curto prazo. Isso ajuda até certo ponto, mas os limites são mais dramáticos. Trata-se de perguntar: por que chegamos a esse ponto? A quem interessa a crise da água? É uma fatalidade climática ou ela foi construída?

IHU On-Line – Qual é o custo para o Brasil da exportação de água via commodities? Qual é o impacto econômico desse processo de exportação de água?

Humberto Miranda – Vamos, em primeiro lugar, separar as coisas. A questão da exportação de commodities tem a ver com a forma como o Brasil foi resolvendo a vulnerabilidade externa, fragilizado pela falta de crescimento industrial e com sérios gargalos na infraestrutura. Dada tal exigência exportadora, fomos expandindo o agronegócio. Só que as características de nossa agricultura tropical obrigam um elevado gasto de água/hectare em determinadas culturas que necessitam de irrigação em larga escala e em mais intervalos de tempo. Uma técnica conservacionista como a do Plantio Direto, utilizada na cultura de grãos (soja), em que há maior preocupação conservacionista dos solos e das águas, foi introduzida muito tempo depois da substituição do modelo de modernização agrícola subsidiado pelo Estado que vigorou nos anos de 1970 e entrou em crise nos 1980.

Aquele modelo era desperdiçador de recursos naturais e incentivava o desmatamento provocando sérios processos de erosão dos solos. Foi um modelo que intensificou a degradação ambiental (poluição, desmatamentos, perda de solos e águas, etc.). Com a crise da dívida externa e as restrições à expansão do financiamento (e do crédito agrícola em particular), houve uma redução dos subsídios na agricultura e isso fez com que o custo aumentasse para o empresário rural. A solução seria construir um modelo mais conservacionista. Todavia, a preocupação não era necessariamente com os impactos ambientais, mas como a queda dos investimentos e prejuízos ao empresário rural, que viu sua lucratividade cair rapidamente.

“A transposição do Rio São Francisco, por exemplo, seria hoje um problema ou uma solução?”

Pós-1990, com a ascensão da chamada “agricultura verde”, os agricultores foram convertendo seus sistemas de produção. O apelo conservacionista é funcional ao novo modelo de agricultura quanto à diminuição do uso de defensivos (“venenos”) nas lavouras, mas não perdeu suas características centrais de ser concentrador de terra, degradador de recursos naturais e promotor de relações de trabalho precárias ou de baixa qualificação/remuneração. Essa é a questão. Não é apenas porque a água é utilizada para produzir soja ou para matar a sede do gado ou como um insumo, etc., mas porque ela é disputada por grupos econômicos (agroindustriais) poderosos e desperdiçada por falta de controle público.

O mercado olha para o produto e não para o manejo dos solos e das águas. Por exemplo, a soja orgânica no Brasil é certificada e valorizada no mercado internacional, mas as técnicas de manejo ainda prejudicam o solo (revolvem o solo com mais frequência e há maior perda superficial dos solos que no Plantio Direto). No caso da criação de animais, estimulada pelo poder dos grandes frigoríficos dos grupos JBS (FriBoi) e Marfrig, muitos córregos estão sendo fechados impedindo que as águas alimentem os rios. Os rios estão sobre perdas de água. Essa água é “exportada” nas carnes e nos grãos. Esta é a situação do Centro Oeste hoje, que sofre uma progressiva e acelerada degradação em seus recursos naturais. Ninguém pergunta: quanto de água se exporta? Então, a questão é anterior à crise da água atual. É um problema que já existia e que foi agravado nos anos 2000 em diante.

IHU On-Line – O crescimento rápido e desordenado das populações urbanas, marcado pelas desigualdades sociais e também pela negligência com o meio ambiente, pode agravar a crise hídrica? De que maneira?

Humberto Miranda – A chamada “crise hídrica”, por seu turno, tem mais a ver com o urbano: indústria e urbanização (expansão urbana). As estimativas, em geral, dizem que o uso doméstico, o industrial e o agrícola da água, respectivamente, são de 10%, 20% e 70%. Tenho chamado atenção para o fato de que, no caso da agricultura (emineração), esse uso é muito concentrado por usuário e o nosso modelo de agricultura irrigada precisa ser totalmente revisto, tanto no que tange à legislação ambiental/recursos hídricos quanto à eficiência econômica e ao acesso/uso privilegiados dos grandes demandantes. A transposição do Rio São Francisco, por exemplo, seria hoje um problema ou uma solução? A meu ver, seria um problema, porque as nascentes do rio no Sudeste (Minas Gerais) foram comprometidas pela falta de chuvas e de manejo inadequado das águas.

No caso do consumo de água pela indústria e do uso doméstico (serviços de abastecimento), a situação é mais complexa porque está relacionada às formas de produção intensivas em recursos naturais (desperdiçam/degradam) ou às características específicas de um segmento em franco crescimento, como o de bebidas alcoólicas e não alcoólicas. Para fabricar um 1 litro de bebida não alcoólica, por exemplo, gastam-se entre 1,5 e 3 litros de água. Gostaria de ver os critérios de eficiência ambiental e certificação sendo aplicados nessa indústria, porque elas têm garantia de atendimento à sua demanda firme de água. Existem medidas de caráter econômico-ambiental que poderiam perfeitamente ser usadas nesses casos.

Expansão urbana e especulação imobiliária

O caso do modo de expansão urbana é o mais grave de todos. Desperdício de água na cidade pelos grandes usuários (grupos econômicos e bairros de elite) é algo comum: lavagem de calçadas e de automóveis com água potável deve ser tratado como crime ambiental. São segmentos das classes médias sem compromisso ambiental que cometem esses atos, são empresas sem noção do valor dos recursos hídricos, que precisam ser multadas para mudar de comportamento. O uso humano/residencial da água não é respeitado. Quando a Sabesp diminui a pressão da água, penaliza a população pobre em benefício dos usuários mais abastados ou com recursos para ir à justiça cobrar o que é de direito de todos, mas que está sendo individualizado. Porém, a questão central, a meu ver, está no ritmo de crescimento das manchas urbanas. Esse é um dado mais estrutural e que não se resolverá tão cedo, mas poderá ser o calcanhar de Aquiles da crise das águas urbanas.

“A nossa crise não é propriamente de falta d’água, mas do colapso do sistema de abastecimento”

As cidades de hoje crescem além de seus limites e tornam-se conurbadas rapidamente. Os incentivos ao uso do transporte individual em detrimento do público também estimulam essa expansão, inclusive porque boa parte da classe média alta mora em condomínios fechados, nos limites da cidade ou afastados destes. O avanço do capital imobiliário, através da valorização/especulação do uso/ocupação dos solos e na disputa pela localização vantajosa contribui vigorosamente para essa expansão. Empresas como MRV e Cyrela ganham mais na valorização dos terrenos que nas construções em si. O prédio ou a casa construída é seu custo fixo barateado ao máximo. O terreno sujeito à especulação é seu superlucro.

Nesse processo, a população está perdendo o direito à cidade e o acesso ao abastecimento de água também. Deslocada para longe do lugar de trabalho, torna-se ainda mais carente de serviços de infraestrutura. Tanto é que, proporcionalmente, o ritmo de crescimento da mancha urbana tornou-se mais acelerado que o ritmo de crescimento da população urbana, que continua superconcentrada nas grandes cidades.

Com o avanço da especulação imobiliária na última década, o espraiamento da cidade puxado pela valorização dos terrenos favorece os impactos aos solos e às águas. A ampliação da infraestrutura e dos serviços é garantida desigualmente. Por isso que a cidade cresce expulsando moradores para perto de mananciais, piorando as condições de captação de água em quantidade e qualidade adequadas. Estima-se que só em São Paulo um milhão de pessoas ocupem essas áreas de preservação permanente. Culpam os ocupantes, mas não culpam os interesses especulativos que não desocupam prédios vazios nos centros urbanos em flagrante desrespeito à função social da propriedade.

Judiciário

O judiciário é incompetente nessa questão porque privilegia o direito de propriedade em detrimento do que estabelece o Estatuto da Cidade e a Constituição Federal. Dessa maneira, o crescimento das áreas de ocupação irregular e a dificuldade de ampliar a rede de abastecimento d’água contribuem para o espraiamento da cidade e isso encarece o investimento público e compromete a rede de águas que não dá conta. Há sucateamento, vazamentos, falta de manutenção, “gatos”, etc. As parcerias público-privadas nem sempre dão conta da cidade como um todo e privilegiam áreas com maior retorno econômico.

Por outro lado, nossa rede urbana é muito concentrada. Grandes cidades localizadas em áreas metropolitanas e outras grandes cidades situadas fora do espaço metropolitano tornaram-se um problema. Grosso modo, em cerca de 610 grandes cidades brasileiras estão concentrados 130 milhões de brasileiros, aproximadamente, sendo que, nas demais, quase cinco mil cidades, concentram-se algo em tono dos 70 milhões de brasileiros. A questão do abastecimento de água nas cidades onde as manchas urbanas se expandem num ritmo maior se tornou extremamente grave e a dificuldade de realizar saneamento ambiental (água e esgoto) em cidades dispersas num vasto território encontra dificuldades.

A maioria dos municípios nem sequer acessa recursos financeiros disponíveis (verba federal) do fundo de saneamento. Poucos usam o dinheiro. Ademais, apesar de haver uma legislação própria para a gestão de áreas metropolitanas, não se veem iniciativas governamentais para lidar com o problema das “águas urbanas”, falta d’água, preservação de mananciais ou combate a enchentes de forma efetiva. A cisterna que capta água da chuva foi uma solução de suma importância para as áreas rurais do Nordeste, mas nenhuma iniciativa apropriada às cidades foi proposta. São iniciativas individuais que predominam ao estilo “salve-se que puder”. Na verdade, seria preciso criar uma novainfraestrutura urbana para lidar com o problema das águas, bem como reduzir a impermeabilização dos solos urbanos, aumentar as áreas verdes para, ao menos, amenizar a situação e, no caso de São Paulo, parar de fazer viadutos nas zonas de vale e realizar a abertura de córregos. São medidas que não exigem novas construções, mas que não são feitas. Os governos atendem aos interesses das empreiteiras, mas não dos cidadãos.

IHU On-Line – Quais as diferenças entre crise hídrica e crise de abastecimento? Em que momento a crise hídrica pode nos levar a uma crise de saneamento?

Humberto Miranda – O problema desencadeado agora no estado de São Paulo, em especial, é mais uma crise de abastecimento do que crise hídrica. Não falta água no Brasil. A idade da pedra, como disse o economista Delfim Netto, não acabou por falta de pedra. A nossa crise não é propriamente de falta d’água, mas do colapso do sistema de abastecimento, da má gestão e das “aventuras hídricas” da Sabesp, que protegeu seus investidores e não a população (usuários). A Sabesp acabou de distribuir dividendos para seus acionistas nos EUA em meio à crise. Atribuir o problema a uma fatalidade (estiagem prolongada) é uma forma de evitar as explicações.

Esta crise é, a meu ver, eminentemente urbana, porque é de abastecimento humano nas áreas territorialmente mais concentradas de pessoas e que sofrem com o ritmo de crescimento da mancha urbana onde ela ocorre de maneira mais dramática. Se do ponto de vista do desperdício ou do gasto, a agricultura e a indústria utilizam muito mais água que o consumidor residencial, do ponto de vista urbano a situação é mais grave e pode levar a conflitos sérios porque interesses econômicos estão sendo privilegiados em detrimento do abastecimento da população, salvo os casos em que a água deve ser garantida prioritariamente, como nos hospitais. Portanto, o problema tem suas implicações urbanas como as centrais, além do fato de nossa agricultura ser mesmo “exportadora de água”.

(EcoDebate, 25/05/2015) publicado pela IHU On-line, parceira editorial do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]


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3 thoughts on “Crise hídrica. Uma fatalidade climática ou ela foi construída? Entrevista com Humberto Miranda

  • Excelente entrevista!
    Henrique, parabéns.
    A propósito o Humberto e economista?

  • Paulo Afonso,

    Humberto Miranda é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, mestre e doutor pelo Instituto de Economia da Universidade de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico – CEDE e desenvolve estudos e pesquisas na área de Desenvolvimento Econômico, Espaço e Meio Ambiente, com ênfase na questão regional e urbana.

  • Na realidade não há falta de água no Brasil. É mais um conflito no abastecimento do que propriamente uma crise hídrica.

Fechado para comentários.