Hipátia de Alexandria, epicurismo e a realização pela ciência, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Hipátia de Alexandria, epicurismo e a realização pela ciência, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
Hipátia foi, sem dúvida, uma das grandes mulheres da história. Ela foi um dos últimos obstáculos ao predomínio da dominação mundial do dogmatismo que destruiu séculos de conhecimento da sociedade Grego-romana clássica
“Todas as religiões dogmáticas formais são falaciosas e nunca devem ser aceitas,
em definitivo, por pessoas com auto-estima”
Hipátia
[EcoDebate] Hipátia de Alexandria (nascida em torno do ano de 355 d.C.) foi uma mulher que colocou a ciência, a tolerância e a filosofia como ideal de vida, mas morreu torturada e queimada por fanáticos religiosos no dia 08 de março do ano de 415 depois de Cristo (d.C.), por uma grande coincidência, na data em que se comemora, atualmente, o Dia Internacional da Mulher. Há 1600 anos, o mundo perdia uma de suas mentes mais brilhantes e uma mulher com grande capacidade de influência e autodeterminação.
Hipátia era pagã, neoplatônica e lecionava matemática, filosofia, medicina e astronomia na cidade de Alexandria – localizada no delta do rio Nilo e nas margens do mar Mediterrâneo. A cidade possuía a biblioteca mais famosa e importante da antiguidade. A localização geográfica teve importância, pois a biblioteca de Alexandria reunia os conhecimentos do Egito, do Norte da África, do Oriente Médio, de Atenas e de Roma, sendo, durante séculos, a maior e mais rica biblioteca do mundo. A cidade de Alexandria foi criada por Alexandre, o Grande (que teve Aristóteles como tutor), e a biblioteca floresceu sob a dinastia Ptolomaica do Egito e sob os primeiros séculos da dominação Romana.
A imponente biblioteca foi criada com o intuito de concentrar todo o saber da Antiguidade e chegou a reunir cerca de 500 mil rolos de papiro e pergaminhos. Porém, o brilho do conhecimento costuma ser ofuscado pelos regimes autoritários – sejam impérios militares ou monarquias – e pelas forças religiosas dogmáticas. A primeira grande ameaça à sobrevivência da biblioteca de Alexandria ocorreu durante um incêndio, talvez provocado de maneira acidental, quando a cidade era governada por Ptolomeu XII, irmão de Cleópatra. O Imperador Romano Júlio César perseguia o general Pompeu – participante do Triunvirato – e mandou colocar fogo nos navios para impedir a fuga dos seus inimigos, sendo que o fogo atingiu a biblioteca.
Mas nos três primeiros séculos da Era Cristã, a biblioteca de Alexandria funcionou como a guardiã da ciência e o centro mundial de produção e difusão do conhecimento. Hipátia – astrônoma, matemática e filósofa – foi no seu tempo, uma figura proeminente de Alexandria e uma guardiã dos conhecimentos materiais e espirituais da biblioteca. Hipátia era filha de Téon de Alexandria, um renomado filósofo, astrônomo, matemático, autor de diversas obras e professor em Alexandria. Ela foi criada em um ambiente de liberdade intelectual e tinha uma forte ligação com o pai, que lhe transmitiu, além de conhecimentos, a forte paixão pela busca de respostas para o desconhecido (Wikipedia). Sob tutela e orientação paternas, submetia-se a uma rigorosa disciplina física, para atingir o ideal helênico de ter a mente sã em um corpo são.
Hipátia optou por não seguir os desígnios do casamento e por não ter filhos, preferindo se concentrar nos objetivos de sua vida pessoal e profissional, a enfrentar as consequências da maternidade e a segregação que a vida doméstica geralmente encerra. Portanto, com 16 séculos de antecedência, Hipátia já se opunha ao “mito da maternidade” e à ideia combatida por Elisabeth Badinter (1985): “Sendo a procriação natural, imaginamos que ao fenômeno biológico e fisiológico da gravidez deve corresponder determinada atitude maternal”. Ou como diria Simone de Beauvoir: “O que se deve condenar não são as mães, mas a ideologia que incita todas as mulheres a se tornarem mães”. Hipátia de Alexandria deixou a maternidade de lado e optou pela realização através da ciência.
Infelizmente, Hipátia viveu em um momento histórico em que os conhecimentos e o estilo de vida da antiguidade clássica estavam sendo substituídos pelo obscurantismo da “Idade das Trevas” provocada pelo dogmatismo religioso, especialmente por parte das grandes religiões monoteistas. Um momento crucial aconteceu depois de Roma ter se juntado ao Cristianismo. Para o historiador Edward Gibbon, a intolerância religiosa contribuiu para o declínio e a queda do Imperio Romano. Não só as religiões politeistas, mas também a filosofia de Epicuro – que pregava a procura dos prazeres moderados, regido pela razão, para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo (ataraxia), como via de se chegar à verdadeira felicidade – foi radicalmente combatida.
No Egito de dezesseis séculos atrás, o fim da liberdade de culto e pensamento se tornou realidade quando o imperador Teodósio aumentou violentamente a perseguição aos pagãos e ao politeísmo, chegando até a emitir um decreto que bania todas as outras religiões. Cumprindo ordens do imperador, em 391, o patriarca Teófilo reuniu uma multidão de cristãos e juntos destruíram e incendiaram o Templo de Serápis (uma divindade sincrética do mundo Helênico e Egípcio). Em seguida, o prédio contíguo da prestigiosa biblioteca da Alexandria – também conhecida como Museu (templo das musas que representavam as realizações da criatividade humana) – foi saqueado e destruído, deixando as estantes da biblioteca vazias e obscurecidas pelo preconceito religioso. Foram destruídas também as estátuas das deusas, altares e outros símbolos de cultos pagãos.
A vida cosmopolita de liberdade intelectual em Alexandria já estava ameaçada no final do século III. Para piorar a situação, houve um acirramento da disputa entre o prefeito de Alexandria, Orestes e o bispo Cirilo (que posteriormente presidiu o Concilio de Éfeso, em 431 e se tornou santo da Igreja Católica). Quando o primeiro ordenou a execução de um monge cristão chamado Amônio e a expulsão dos judeus da cidade, o segundo mobilizou seus correlegionários cristãos numa retaliação. A vitória cristã em Alexandria prenunciava o fim da liberdade de pensamento científico na cidade.
De acordo com relatos históricos, numa tarde de março de 415, quando regressava do seu local de ensino e pesquisa, Hipátia foi atacada em plena rua por uma turba de cristãos enfurecidos. Ela foi arrastada pelas ruas da cidade até uma igreja, onde foi cruelmente torturada até a morte. Depois de morta, o corpo foi lançado a uma fogueira.
O filme Ágora (2009), dirigido por Alejandro Amenábar, narra toda essa história e a vida e a morte de Hipátia, além do começo do fim da biblioteca de Alexandria. O filme mostra que no século IV d.C. a difusão do cristianismo se fez a ferro e fogo, deixando de ser uma seita perseguida pelos romanos para se tornar religião oficial do Estado, com poderes cada vez maiores sobre a vida e a morte das pessoas. As lutas violentas, entre cristãos e pagãos, cristãos e judeus em Alexandria foram retratadas no filme mostrando que naquele momento a história estava prestes a mergulhar num período de retrocesso cultural e de barbárie. Os monges cristãos que eram incumbidos de cuidar de doentes contagiosos e enterrar os mortos, também serviam de agitadores e guerreiros a serviço dos bispos, promovendo tumultos e praticando violências.
Cerca de dois séculos depois da morte de Hipátia, a destruição definitiva da biblioteca de Alexandria foi concluída pelo general árabe muçulmano, Amr ibn al-As, um dos sahaba (companheiros de Maomé), por ordem do governador provincial do Egito e em nome do califa Rashidun Omar ibn al-Khattab. Assim, pouco depois da conquista do Egito pelas forças islâmicas, no século VI (639–642 d.C.), a hegemonia do cristianismo foi eliminada e o antigo dinamismo intelectual de Alexandria foi substituído definitivamente pelo dogmatismo das orações e pela falta de liberdade de expressão e informação para o conjunto da população. Recentemente, os 21 cristãos coptas do Egito decapitados na Líbia pelo Grupo Estado Islâmico (ISIS), em 2015, lembram o triste passado distante. Passado que também continua sendo uma realidade para muitas mulheres violentadas, segregadas, subjugadas e sem capacidade parar buscar uma realização autônoma ainda hoje.
Mas o tempo dá voltas e o exemplo de Hipátia está mais vivo do que nunca em pleno século XXI. Ela foi, sem dúvida, uma das grandes mulheres da história recusando o obscurantismo e as crendices, enquanto levava uma vida mais próxima da filosofia de Epicuro. Ela foi um dos últimos obstáculos ao predomínio da dominação mundial do dogmatismo que destruiu séculos de conhecimento da sociedade Grego-romana clássica, do Norte da África e do Oriente Médio, além da tolerância do politeísmo e do agnosticismo. De certa forma ela foi lembrada quando o novo primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, reconhecidamente ateu, dispensou o juramento religioso, uma tradição da política da Grécia perante a Igreja Ortodoxa.
Como mostrou Stephen Greenblatt, no livro “A Virada: O Nascimento do Mundo Moderno”, a cultura clássica valorizava os deleites da mente e da carne, enquanto o dogma cristão identificava o prazer com o vício e valorizava o sacrifício, a renúncia, a culpa e o sofrimento. Foi só com a redescoberta da filosofia de Epicuro, no começo da Renascença que houve uma virada contra o dogmatismo teocrático. Greenblatt conta a história da descoberta do manuscrito antigo, Da Natureza, de Lucrécio, que continha conhecimentos da filosofia epicurista, comuns no tempo do “Museu” de Alexandria: a) o universo não tem um criador ou projetista; b) o medo e a intolerância religiosa inviabiliza o progresso humano; c) não há vida após a morte; d) o prazer não se opõem à virtude e podem conviver pacificamente; etc.
A biblioteca de Alexandria foi destruída mas a ciência armazenada e produzida por suas figuras mais importantes não desapareceu.
A vida de Hipátia tem todos os elementos heroicos de uma tragédia grega, que ela soube enfrentar com altivez, determinação e se posicionando contra a intolerância religiosa. Sua vida é um exemplo do gênio científico, pluralidade e prática excepcional. Sua morte não foi em vão. Ela deixou sementes que floresceram séculos após seu iníquo assassinato.
Hipátia morreu no dia 08 de março e nada mais razoável que seja lembrada e homenageada, 1600 anos depois, nas comemorações dos 20 anos da IV Conferência Mundial das Mulheres (Beijing/1995) e do Dia Internacional da Mulher de 2015.
Referências:
HIPÁTIA de Alexandria, Wikipedia http://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3%A1tia
Filme Ágora – Hipátia morta pelo fanatismo, 03/01/2013
http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1919
BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno, Nova Fronteira, 1985
http://www.redeblh.fiocruz.br/media/livrodigital%20%28pdf%29%20%28rev%29.pdf
GREENBLATT, Stephen. A Virada: O Nascimento do Mundo Moderno, SP, Companhia das Letras, 2012
http://pt.scribd.com/doc/108107701/A-Virada-Stephen-Greenblatt#scribd
Carl Sagan – Hipátia e o fim de Alexandria (Dublado)
https://www.youtube.com/watch?v=cw4rlWIuewk
José Eustáquio Diniz Alves, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; Apresenta seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves@yahoo.com.br
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Obrigada pelo texto maravilhoso. Ótima homenagem para o dia próximo.
Parabenizo o autor, José Eustáquio Diniz Alves, pela produção e publicação de tão excelente artigo.
“Todas as religiões dogmáticas formais são falaciosas e nunca devem ser aceitas, em definitivo, por pessoas com auto-estima”. Hipátia
Que o século XXI aprenda os ensinamentos deixados por Hipátia de Alexandria, nos séculos IV E V. (Ou vamos continuar andando em marcha ré?).
As feministas de hoje em dia deveriam seguir o exemplo de Hipátia, a maioria nem sabe quem é, infelizmente.