‘Cumprida a legislação, não sobram materiais para a incineração’. Entrevista com Saint-Clair Honorato Santos
“No cenário nacional, é improvável a possibilidade de obtenção de energia por meio da queima de resíduos sólidos urbanos, já que a composição gravimétrica é de aproximadamente 50% de fração orgânica, e a nossa legislação federal estabelece a priorização da coleta seletiva e reciclagem dos materiais, antes de seu tratamento por qualquer tecnologia”, diz o procurador do Ministério Público do Paraná.
A polêmica em torno de qual é a melhor maneira de reciclar os resíduos sólidos divide opiniões entre aqueles que defendem a reciclagem e os que propõem um processo de incineração. Contudo, juridicamente, “a legislação determina o cumprimento de uma política na qual há uma hierarquia de procedimentos que devem ser levados em consideração e que, se efetivamente realizada, não abre espaço para a incineração”, pontua Saint-Clair Honorato Santos, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
De acordo com o procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná, “a Lei Federal 12.305/2010 estabelece a priorização da classe por ser uma forma de geração de trabalho e renda, portanto a inclusão dos catadores e realização da reciclagem é dever estabelecido em lei.
Além disso, o trabalho das Associações e Cooperativas deve ser apoiado pela administração pública, pois a gestão de resíduos sólidos urbanos é responsabilidade da municipalidade, por isso os catadores, ao realizar a reciclagem, prestam um serviço que deve ser devidamente reconhecido e remunerado pelas Prefeituras”.
O procurador explica que o processo de incineração, além de ser altamente poluente, envolve uma tecnologia com custos de instalação e operação extremamente elevados, se comparado a outros processos de tratamento de resíduos. “Sabe-se que a tecnologia da incineração é custosa e poluidora, ela foi uma alternativa aos países que não possuíam espaço disponível para depositar seus rejeitos em aterros sanitários adequados e que possuem capital para investir em métodos confiáveis de tratamento das emissões atmosféricas geradas. Panorama em que o Brasil não se inclui.”
Na entrevista a seguir, Saint-Clair Honorato Santos também comenta a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS e enfatiza que a “lei pecou ao permitir a possibilidade de implementação de incineração de resíduos. O Artigo 9º, parágrafo 1º enfatiza a ideia de reaproveitamento energético como destinação ambientalmente adequada de resíduos. Tal artigo autoriza o reaproveitamento de resíduos para gerar energia, em que uma das técnicas é a incineração”.
Saint-Clair Honorato Santos é procurador de Justiça e coordenador das Promotorias de Meio Ambiente do Ministério Público do Estado do Paraná.
Confira a entrevista.
Foto: www.mppr.mp.br |
IHU On-Line – Quais são as principais polêmicas em torno do processo de incineração de resíduos no Brasil?
Saint-Clair Honorato Santos – A polêmica em torno do processo de incineração ocorre por se tratar de uma tecnologia com custos de instalação e operação extremamente elevados, se comparado a outros processos de tratamento de resíduos; por possuir alta capacidade de poluição atmosférica, inclusive envolvendo a geração de compostos altamente cancerígenos; por gerar cinzas muitas vezes contaminadas e que ainda necessitarão de disposição final; e, por fim, pela característica do resíduo doméstico brasileiro, que consiste em aproximadamente 50% de matéria orgânica, um material essencialmente úmido e que não se queima com facilidade. Por conta deste último fator, sabe-se que a incineração dos resíduos domésticos inviabilizaria a prática da reciclagem, pois os resíduos recicláveis — plásticos e papéis — são a fração com maior poder calorífico e precisariam compor a massa de resíduos a ser encaminhada ao incinerador.
Sabe-se que a tecnologia da incineração é custosa e poluidora, ela foi uma alternativa aos países sem espaço disponível para depositar seus rejeitos em aterros sanitários adequados e que possuem capital para investir em métodos confiáveis de tratamento das emissões atmosféricas geradas. Panorama em que o Brasil não se inclui.
IHU On-Line – Como o processo de incineração vem sendo feito no Brasil? Qual é o custo dessa prática?
Saint-Clair Honorato Santos – A tecnologia da incineração empregada atualmente no país não faz uso do aproveitamento energético, sendo necessários alguns aprimoramentos tecnológicos para permitir esse aproveitamento de forma economicamente viável e ambientalmente correto. O custo do processo de incineração nos Estados Unidos está entre R$ 160 e 350 por tonelada. Já no Brasil o custo médio de incineração está em torno de R$ 250 a tonelada, o que é muito alto considerando o custo para disposição em aterros sanitários, que está em torno de R$ 70-90.
IHU On-Line – A prática da incineração como recuperação energética é consistente?
Saint-Clair Honorato Santos – Como comentei anteriormente, tudo depende da característica do material a ser incinerado. Porém, no cenário nacional, é improvável a possibilidade de obtenção de energia por meio da queima de resíduos sólidos urbanos, já que a composição gravimétrica é de aproximadamente 50% de fração orgânica, e a nossa legislação federal — Lei Federal 12.305/2010 — estabelece a priorização da coleta seletiva e reciclagem dos materiais, antes de seu tratamento por qualquer tecnologia.
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“A incineração dos resíduos domésticos inviabilizaria a prática da reciclagem” |
IHU On-Line – Como a questão da incineração é tratada nos demais países?
Saint-Clair Honorato Santos – Basta verificar o cenário mundial para visualizar que muitos países que anteriormente abriram diversos incineradores têm sofrido pressão popular para o encerramento dessas instalações. Na Europa, buscam-se alternativas menos ofensivas ao meio ambiente e que estimulem a redução na geração de resíduos, princípios que são opostos à prática da incineração.
Sabe-se que uma vez instalada a planta de incineração, necessita de uma quantidade mínima de toneladas de resíduos para manter-se viável, fato que tem causado problemas em países que ao longo dos anos conseguiram avançar na conscientização da população para a reciclagem e a redução de seus resíduos. Por exemplo, a Suécia tem importado resíduos dos países vizinhos para manter suas plantas de incineração viáveis, pois a reciclagem atingiu patamares altos e faltam resíduos em seu território para compor a massa mínima viável de materiais a serem incinerados.
IHU On-Line – Em oposição à incineração, muitos defendem a reciclagem popular como uma possibilidade de trabalho e geração de renda. Quais as vantagens dessa proposta?
Saint-Clair Honorato Santos – Em nosso país a reciclagem realizada pelos catadores de materiais recicláveis já sustenta milhões de famílias. A Lei Federal 12.305/2010 estabelece a priorização da classe por ser uma forma de geração de trabalho e renda, portanto a inclusão dos catadores e realização da reciclagem é dever estabelecido em lei. Além disso, o trabalho das Associações e Cooperativas deve ser apoiado pela administração pública, pois a gestão de resíduos sólidos urbanos é reponsabilidade da municipalidade, por isso os catadores, ao realizar a reciclagem, prestam um serviço que deve ser devidamente reconhecido e remunerado pelas Prefeituras.
A vantagem desse sistema é duplo ganho, social e ambiental. No viés ambiental, deve-se considerar que os materiais reciclados retornam à cadeia produtiva, reduzindo impactos na exploração de novas matérias-primas brutas e reduzindo o impacto que seria causado pela sua disposição final. Quanto ao ganho social, as famílias adquirem uma melhor qualidade de vida e renda, a qual possibilita a circulação do dinheiro dentro dos municípios, movimentando assim a economia local.
IHU On-Line – Por quais razões somente 3% dos resíduos são reciclados no Brasil?
Saint-Clair Honorato Santos – Primeiramente, devemos ponderar que grande parte do material reciclado no Brasil ainda encontra-se no mercado informal e, por isso, não é considerado nas estatísticas oficiais. De todo modo, com base em nossa atuação no Estado do Paraná, verificamos que os materiais recicláveis ainda são erroneamente encaminhados para destinação final em aterros sanitários ou, no pior dos casos, para lixões. Isso ocorre devido à completa ausência de políticas públicas municipais de gestão de resíduos sólidos urbanos, como a coleta seletiva e a educação ambiental da população.
Mesmo nos municípios em que a coleta seletiva é instituída, nota-se a falta de continuidade nos programas de conscientização da população, pois a mudança de hábitos para a separação dos materiais leva tempo e precisa ser constantemente estimulada na comunidade.
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“Uma vez instalada a planta de incineração, necessita de uma quantidade mínima de toneladas de resíduos para manter-se viável” |
Na Alemanha, que possui altas taxas de aproveitamento de recicláveis, há um sistema de cobrança para as diferentes frações dos resíduos, com prejuízo ao cidadão que decida encaminhar seus resíduos misturados, com uma conta mais elevada. Os cidadãos que separam o seu lixo são menos onerados. Esse sistema faz com que a população torne a separação um hábito.
É importante pontuar que os materiais recicláveis enterrados nos aterros, na verdade, representam dinheiro perdido duas vezes, porque recursos foram gastos para realizar a destinação final e ainda deixaram de ser aproveitados por meio da reciclagem desses materiais.
IHU On-Line – Entre os recicladores e as prefeituras há disputas no sentido de decidir como o processo de reciclagem deve ser feito. Qual é a melhor proposta?
Saint-Clair Honorato Santos – A única alternativa é o cumprimento da legislação que estabelece a ordem de prioridade na gestão de resíduos sólidos, com a “não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos” e a inclusão dos catadores de materiais recicláveis.
IHU On-Line – Qual é a orientação da legislação brasileira acerca da incineração de resíduos?
Saint-Clair Honorato Santos – A incineração, na interpretação lógica do texto da lei de resíduos sólidos, contradita os termos nela estabelecidos. A legislação determina o cumprimento de uma política na qual há uma hierarquia de procedimentos que devem ser levados em consideração e que, se efetivamente realizada, não abre espaço para a incineração.
Senão vejamos, o Artigo 9º estabelece que primeiro tem-se que não gerar resíduos, ou seja, política de envolvimento da sociedade para não geração; segundo, reduzir, ou seja, produzir menos resíduos; terceiro, reutilizar, ou seja, produção com materiais que sejam reaproveitáveis consequentemente não gerando mais resíduos; quarto, reciclar, implantando a coleta seletiva em todos os municípios, ou seja, retornar para a atividade produtiva os materiais que possam ser reaproveitados, assim, menos resíduos; e, por fim, o tratamento e a disposição final exclusivamente dos rejeitos, com o cumprimento de metas para tal, extingue-se a necessidade da incineração.
Cumprida a legislação, não sobram materiais para a incineração, apenas rejeitos. Para que se incinere é preciso que haja combustão, e os materiais oriundos dos resíduos sólidos próprios para a combustão são os recicláveis, ou seja, papel, plástico, etc. Em se cumprindo a política, esses materiais não estarão disponíveis. Já os rejeitos não interessam à incineração porque não têm combustão e precisam consumir energia (que viria dos recicláveis) para produzir a queima, o que tornaria o processo muito mais caro, pois viria de uma energia externa, que custa demasiadamente caro.
Além disso, o que sobra da incineração são novamente rejeitos, cinzas tóxicas que precisam um aterro para a sua disposição final; mais um aterro, portanto, mais despesas para a sociedade, tendo mais um passivo ambiental para custear e monitorar.
IHU On-Line – É possível afirmar que a incineração é inconstitucional?
Saint-Clair Honorato Santos – Comprovada a incineração como uma fonte de poluição, sabe-se que a Constituição Federal de 1988 protege o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito de todos. O Artigo 225 o considera bem de uso comum do povo e essencialmente à sadia qualidade de vida.
Além disso, é válido destacar que o Artigo 9º, parágrafo 1º da Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS vai de encontro à Convenção de Estocolmo, a qual aponta a incineração de resíduos como uma das principais fontes produtoras de Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs). Assim, não priorizar o reaproveitamento, tampouco investir na reciclagem permitindo a implantação de incineradores, fere a Convenção de Estocolmo, compromisso assumido pelo Brasil em 2001, em vigor internacional desde 24 de fevereiro de 2004, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 5.472 de 20 de junho de 2005, a qual recomenda que fontes geradoras de Poluentes Orgânicos Persistentes – POPs tenham o seu uso eliminado progressivamente.
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“Grande parte do material reciclado no Brasil ainda encontra-se no mercado informal e, por isso, não é considerado nas estatísticas oficiais” |
IHU On-Line – A PNRS não usa o termo incineração, mas refere-se à recuperação energética, entendida pelos que são favoráveis à incineração como o processo que deve ser aplicado. Quais suas ponderações sobre essa questão e o modo como o tema foi ou não tratado na PNRS?
Saint-Clair Honorato Santos – A Lei Federal nº 12.305 de 02 de agosto de 2010 institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, apresentando como principais objetivos: (i) proteção da saúde pública e da qualidade ambiental; (ii) não geração, redução, reutilização, reciclagem e tratamento dos resíduos sólidos, bem como disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos; (iii) estímulo à adoção de padrões sustentáveis de produção de bens e serviços; (iv) desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias limpas como forma de minimizar impactos ambientais; (v) o incentivo à indústria de reciclagem e a gestão integrada de resíduos sólidos.
Entretanto, a referida lei pecou ao permitir a possibilidade de implementação de incineração de resíduos. O Artigo 9º, parágrafo 1º enfatiza a ideia de reaproveitamento energético como destinação ambientalmente adequada de resíduos. Tal artigo autoriza o reaproveitamento de resíduos para gerar energia, em que uma das técnicas é a incineração.
Art. 9o Na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.
§ 1o Poderão ser utilizadas tecnologias visando à recuperação energética dos resíduos sólidos urbanos, desde que tenha sido comprovada sua viabilidade técnica e ambiental e com a implantação de programa de monitoramento de emissão de gases tóxicos aprovado pelo órgão ambiental.
Como já citei, a nova lei enfatiza, também, que na gestão de resíduos sólidos deve ser observada a seguinte ordem: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento de resíduos sólidos e a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. Neste sentido, o artigo e o parágrafo em questão, na forma como se apresentam, ameaçam o meio ambiente e a parcela da sociedade que vive dos materiais recicláveis, ou seja, os catadores, que os coletam, separam e vendem.
(EcoDebate, 24/07/2014) publicado pela IHU On-line, parceira editorial do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Vocês insistem em entrevistas tendenciosas. O procurador apesar de bem intencionado, não é precavido. Não se trata de defesa pela incineração, tampouco acredito que o país esteja fazendo uso da tecnologia mais avançada, mas sim de prever a possibilidade de uso de mais uma fonte energética. Imaginem a dificuldade de ter que alterar a lei em meio a uma crise de energia. Os Sistemas de logística reversa estarão contemplando o uso e inserção dos trabalho das cooperativas de recicláveis, mas é preciso ter consciência do que é rejeito e o que fazer com ele. Para a maior parte do país o Isopor é rejeto, mas para as fábricas da Fiat não é mais, pois eles desenvolveram tecnologia para das destinação para este tipo de resíduo. Então se tivermos baixa tecnologia para aproveitamento dos materiais pós-consumo, teremos muito rejeito que irá para os aterros, mas que poderiam ter um aproveitamento energético por meio da incineração. Portanto, senhores, a Lei não “pecou”, mas como poucas coisas e pessoas neste país, não fechou a porta para o futuro. Mais uma vez fica a dica!