Chega de ser bom, artigo Montserrat Martins
[EcoDebate] Os rodoviários em greve prolongada em Porto Alegre cansaram de se preocupar em serem “bonzinhos” com patrões ou mesmo com a população toda, pois só eles sentem na pele a violência produzida pelo trânsito na sua saúde e na sua qualidade de vida – a diminuição da carga horária é uma das principais reivindicações. Doenças como infarto, AVC, hipertensão arterial, estresse, depressão, são bem mais frequentes em algumas categorias profissionais, como a deles, as dos professores, policiais, trabalhadores da saúde, entre outras.
Os mais pobres sofrem mais os efeitos das greves, como a falta de ônibus, ainda mais nesse forte calor. Também foram os principais prejudicados com a greve dos professores, pois além da falta de aulas também não tinham com quem deixar os filhos no horário de trabalho. Mas se as categorias profissionais mais estressadas não fizerem por si, ninguém fará por elas. Tem horas que mesmo enfrentando a raiva dos outros, até mesmo da grande maioria, é preciso dar um basta, chega de ser bom.
“Deixe de ser bonzinho e seja verdadeiro”, de Thomas D’Ansembourg, é um livro de qualidade surpreendente. Apesar do apelo popular do título, não se compara a manuais simplistas que geraram preconceito contra o gênero auto-ajuda. Ao contrário, traz conceitos complexos da Comunicação Não-Violenta, que a maioria das pessoas não conhece mas que podem ser muito úteis nestes tempos conturbados.
Assim como nos conflitos de interesses sociais – categorias em greve versus população atingida – na vida individual há muitas questões em que é importante “deixar de ser bonzinho”. Essa conduta adaptativa – ceder aos outros é sempre uma concessão em prol da harmonia dos relacionamentos – tem seus méritos, mas pode se tornar um vício, uma anulação das próprias percepções e um sufocar da própria identidade. Claro que é bom ser bom. Mas é um mal ser bom em excesso, ou sempre.
No esteriótipo popular, dizer “não” é uma atitude enfática, quase grosseira. Dizer “não” sem ofender é uma arte, como lembra outro bom livro, “Pequeno manual de instruções para a vida”, que um pai escreveu para seu filho adolescente: “Lembre-se que o modo como você diz as coisas é tão importante quanto o que você diz”. Por isso mesmo, Thomas D’Ansembourg usa o método da Comunicação Não-Violenta em seu “deixe de ser bonzinho”. Trata-se de ter empatia com quem se fala, de ser capaz de se colocar no lugar do outro mesmo na hora de dizer um “não”.
Empatia é o mais complexo e sutil conceito na área das relações humanas. Porque nada tem de objetiva, é totalmente subjetiva, o que há para ser compreendido em cada um de nós varia de pessoa para pessoa. Somos diferentes, embora com tantas características humanas em comum. Todos somos medrosos e corajosos, por exemplo, mas para coisas diferentes. Todos sentimos alegria e tristeza, mas também por coisas diferentes, de acordo com nossos valores de vida.
Se colocar no lugar dos outros, porém, não é um luxo, uma sofisticação do comportamento, uma elegância da conduta. É uma necessidade básica, que em situações de risco pode representar até mesmo a sua sobrevivência – é o caso das pessoas que passam por situações de violência e se mantém vivas sendo capazes de empatizar com quem lhes ameaça. Para deixar de ser “bonzinho” é preciso estar adequadamente preparado, pois sua capacidade de adaptação aos outros será testada. É uma arte manter o respeito por si mesmo sem atacar os outros, fazer pedidos claros e aceitar críticas, sem abalar sua autoestima. Um tema que vale a pena ler.
Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.
EcoDebate, 10/02/2014
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