O Estado é laico? por Viviane Tavares
Com avanço da bancada religiosa no Brasil, pesquisadores apontam como isso tem influenciado nas políticas públicas, principalmente no campo da saúde.
O avanço da bancada religiosa no Congresso Nacional tem preocupado os defensores do Estado laico e das políticas públicas, principalmente, na área da saúde. Por conta disso, ‘Teocracia e fundamentalismos na contemporaneidade: ameaças à cidadania e ao Estado laico’ foi tema do grande debate que encerrou as atividades do dia 15 de novembro no VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), no Rio de Janeiro.
A pesquisadora Sonia Côrrea, do Observatório de Sexualidade e Política da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS, informou que a principal área em que os reflexos deste movimento da religião nas políticas de Estado estão sendo enfrentados é a da saúde. “Já tivemos materiais censurados que falam sobre os direitos dos gays, das prostitutas, do bullying homofóbico, aborto, é uma censura atrás de censura. É importante nos organizarmos porque o inimigo é grande”, indicou.
A professora apresentou ainda que esta realidade não é particular do Brasil: segundo ela, na Índia, por exemplo, já se pediu o fim da sodomia. Ela defendeu que o problema não é de uma religião particular nem do fundamentalismo, mas sim do moralismo. “As pessoas têm usado a religião como obstáculo para a sexualidade, mas esse debate é pouco produtivo. Temos concepções seculares na medicina que não dizem respeito à religião, como o sexo significar homem e mulher, quando hoje temos muitas vozes transexuais que não são representadas neste enquadramento”, debateu.
Sônia disse ainda que culpar o fundamentalismo neste cenário não englobaria as ações em todo o mundo, que não poderia ser transplantado para o conservadorismo católico, para o hinduísmo, para o judaísmo, e tantas outras religiões que também interferem nas políticas públicas. “Marx falou que a religião é o ópio do povo, e essa visão continua conosco, mas tem sido pouco produtiva. A persistência da pobreza e da desigualdade, enquanto existem atores políticos fazendo o uso político da religião, só deixam esse cenário mais grave. Em que momento vivemos essa separação do Estado e religião? O laicismo foi posto na ponta da baioneta de Napoleão Bonaparte; hoje na França as mulheres muçulmanas não podem usar véu”, exemplificou.
Roger Raupp, juiz de direito do Tribunal Regional Federal do Rio Grande do Sul, apresentou dois tipos de laicidade: a neutra, praticada na França, que mantém o distanciamento da religião em qualquer decisão de fragmentação de bens públicos, como saúde e educação, e a pluriconfessional, oriunda dos Estados Unidos da América e mais próxima do que é praticado no Brasil hoje, que traz o respeito à diversidade religiosa e brechas para que elas influenciem em doutrinas do Estado. No entanto, ele explicou que essa influência deve respeitar principios básicos, como a liberdade religiosa, igualdade dentro da esfera pública. Então, o argumento da fé em uma religião não pode ser determinante.
Diferentemente da nossa realidade atual, Raupp listou uma séria de decisões do STF em que o argumento se baseava em aspectos religiosos para a decisão final, entre eles a decisão da união de pessoas do mesmo sexo, a de pesquisa com células tronco, o aborto por conta da anencefalia, além do direito de mudança de sexo no Sistema Único de Saúde. “Por serem argumentos de fé, não são passíveis de debate. Isso não significa o afastamento da religião do debate público, mas significa que todos têm que estar no debate, com argumentos que sirvam para o coletivo”, explicou, apontando ainda um risco maior: “O problema é quando essas pessoas utilizam a igreja e o poder adquirido para agir de má fé, como vem acontecendo recentemente”.
O deputado federal (PSOL-RJ) Jean Wyllys contou que seu enfrentamento dentro da Câmara dos Deputados tem sido uma batalha árdua. Ele já apresentou três projetos que não foram adiante por conta de argumentos religiosos: o PL 4211/12 – projeto Gabriela Leite –, que regulamenta a profissão de prostituta; o PL 5002 -Lei João Nery, que estabelece o reconhecimento da identidade de gênero, permitindo a retificação de documentos de identificação, e o PL 5120/2013, que reconhece o casamento civil e união estável entre pessoas do mesmo sexo, que segundo ele está regulamentado, mas não legalizado.
Para o deputado federal, embora o Brasil seja um país pluriconfessional, as outras religiões não estão representadas ou não representam tanto poder como as cristãs. De acordo com ele, a bancada evangélica já soma 70 deputados e tem prevalência dos partidos PR e PSC, ligados às igrejas Universal e Assembleia de Deus, respectivamente. “Existem projetos que tentam ainda acabar com outras religiões, como a apresentada por Marcelo Crivella (PRBRJ) que trata de peixes ornamentais, mas em um dos artigos fala sobre o sacrificio de animais, que atinge as religiões africanas que têm isso como prática. A moral de uma religião não pode ser imposta a uma sociedade tão diversa”, refletiu Jean Wyllis.
Para o deputado, a separação entre Estado e religião é mais complexa, mas ele conclui que o problema vai ainda para o campo moral, político e cultural. “A nossa própria noção de direitos humanos tem como fundamento o cristianismo. Estamos impregnados de influência religiosa em nossas datas comemorativas, nomes de ruas, nomes de filhos”, pontuou e indagou: “O que significou o pré-candidato Lindbergh Farias (PT-RJ) com o pastor Silas Malafaia? Isso mostra o grau de influência econômica e política que essa bancada tem. Que fique claro que eu não sou contrário aos cristãos, como muitos tentaram manipular minha imagem recentemente, eu sou contra aqueles que são contra e atacam as minorias. E o mais interessante é que essas mesmas pessoas, que tanto se incomodam com as minorias, não falam dos judeus, mas das religiões de matrizes africanas. Isso para mim é preconceito. E os preconceitos estão arraigados em todos nós, mesmo naqueles que não têm religião”, disse.
Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
EcoDebate, 21/11/2013
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Não existe teocracia ameaçando o estado democrático dlaico e de direito. Se houvesse, seríamos um estado teocrático cristão. Entretanto, o fundamentalismo que preocupa a sociedade é o partidário.