Programa Mais Médicos e os problemas estruturais da saúde pública. Entrevista com Nêmora Barcellos
“Nossas universidades formam profissionais para os centros urbanos, voltados às especialidades e subespecialidades e muito distantes da Atenção Primária à Saúde – APS, a idealizada porta de entrada do sistema para toda a população brasileira”, afirma a médica.
Foto: http://bit.ly/17tfsEH |
Confira a entrevista.
“O Programa Mais Médicos, embora possa suprir necessidades imediatas de muitos municípios brasileiros, necessita de análise mais profunda, uma vez que o aumento isolado do número de profissionais médicos não será capaz de resolver os problemas estruturais enfrentados por este sistema”, declara Nêmora Barcellos, professora do Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Na avaliação dela, o ingresso maciço de médicos no país para atuar na Atenção Básica poderá “contribuir de forma decisiva no caminho da concretização de um SUS mais justo e equânime”. Entretanto, questiona: “A pergunta a ser respondida é: O que vai ocorrer daqui a dois anos, quando findarem as bolsas do governo federal?”.
Para a médica, “a saúde deve passar a ser uma prioridade real para o governo brasileiro”. Segundo ela, a falta de acesso aos serviços de saúde “vem empurrando cada vez mais a população de classes sociais, mesmo sem condições de arcar com as despesas de um plano de saúde, em direção ao setor privado. Este deveria ser complementar ao sistema público, e não a saída para um SUS ineficiente e muitas vezes inacessível”. Nêmora pontua ainda que “nos últimos dez anos, o Brasil acumulou uma carência de 54 mil médicos, e necessitaria contratar 168.424 profissionais para atingir o patamar da Inglaterra, que é de 2,7 profissionais por mil habitantes”.
Sobre a polêmica acerca da contratação de médicos cubanos e as questões trabalhistas envolvidas na vinda dos médicos para o Brasil, Nêmora é pontual: “Esta é uma situação bastante complexa, para a qual deve-se levar em conta o sistema político e as limitações de mobilidade vigentes em Cuba. Ao que parece, o contrato foi elaborado entre os governos. O Brasil contratou um serviço com Cuba. Cuba passa por enormes dificuldades econômicas em função do embargo imposto pelos Estados Unidos. Para todos nós que prezamos a democracia e a justiça, fica difícil aceitar. Penso que seria nossa obrigação abrir espaço para uma negociação individualmente mais justa”.
Nêmora Barcellos é graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestre e doutora em Medicina: Ciências Médicas, pela mesma universidade. Atualmente é técnica em saúde e ecologia – médica clínica do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, professora do Curso de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da UFRGS.
Foto: http://bit.ly/14iZmTm |
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como avalia o Programa Mais Médicos? Ele é adequado para sanar o problema da falta de médicos no país e os problemas estruturais existentes na área da saúde?
Nêmora Barcellos – A Constituição Brasileira e as chamadas Leis Orgânicas da Saúde (8080/90 e 8142/90) representaram um enorme avanço do ponto de vista dos direitos da população brasileira à saúde. O grande problema que vem sendo enfrentado é a efetivação do que foi estabelecido na Constituição a partir de uma estrutura precária, em um processo complexo de descentralização, acompanhado de financiamento insuficiente.
Adicionalmente, nesse cenário, que impõe mudanças radicais, nossas universidades, apesar de alguns avanços recentes, ainda formam profissionais para os centros urbanos, voltados às especialidades e subespecialidades e muito distantes da Atenção Primária à Saúde – APS, a idealizada porta de entrada do sistema para toda a população brasileira.
Por outro lado, a progressiva ampliação da Estratégia Saúde da Família – ESF, com importante impacto no desempenho do SUS (Fachini, 2013), implica a necessidade imediata de milhares de médicos, enfermeiros e odontólogos (entre outros). Dessa forma, o Programa Mais Médicos, promovendo a entrada maciça de médicos na Atenção Básica, com bolsa paga pelo governo federal, pode contribuir de forma decisiva no caminho da concretização de um SUS mais justo e equânime, além de contribuir para a universalização da ESF, que atualmente cobre em torno de 56% da população brasileira.
O Programa Mais Médicos, embora possa suprir necessidades imediatas de muitos municípios brasileiros, necessita de análise mais profunda, uma vez que o aumento isolado do número de profissionais médicos não será capaz de resolver os problemas estruturais enfrentados por este sistema.
Dessa forma, necessitam equacionamento:
• A estrutura física e a de recursos humanos, hoje completamente defasadas, carecem de investimento, sendo este diretamente vinculado à necessidade de ampliar o financiamento para a área da saúde – sobretudo no que diz respeito ao investimento federal e dos Estados.
• A saúde deve passar a ser uma prioridade REAL para o governo brasileiro.
• Nossas escolas médicas (e que formam outros profissionais da área da saúde) devem refletir, sem vieses, sobre que profissioais vêm formando – certamente não os profissionais necessários para atender a demanda de nossa população.
• Os profissionais qualificados ainda precisam ser fixados na Atenção Básica e, principalmente, fora dos grandes centros urbanos, em locais de difícil acesso. Está na hora de se discutir seriamente um plano de carreira não apenas para médicos, mas também para outros profissionais da área da saúde.
• As soluções imediatistas devem dar espaço a um planejamento sério e de longo prazo. A pergunta a ser respondida é: O que vai ocorrer daqui a dois anos, quando findarem as bolsas do governo federal?
IHU On-Line – Em contrapartida ao Programa Mais Médicos, o governo federal também tem incentivado a expansão dos planos de saúde. Como vê essa medida? Trata-se de uma contradição, considerando que os investimentos na saúde pública diminuíram nos últimos anos?
Nêmora Barcellos – O documento publicado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO conclama o “fim da mercantilização e da privatização, que não apenas desviam recursos do setor público para o privado, como representam serviços caros, de baixa qualidade e com inúmeras restrições de acesso e cobertura”.
A falta de acesso aos serviços de saúde vem empurrando cada vez mais a população de classes sociais, mesmo sem condições de arcar com as despesas de um plano de saúde, em direção ao setor privado. Este deveria ser complementar ao sistema público, e não a saída para um SUS ineficiente e muitas vezes inacessível.
Os planos de saúde, muitas vezes, vendem planos sem condições de efetivamente cumprirem suas promessas. Mesmo os hospitais e ambulatórios privados estão superlotados – em situações de maior incidência de doenças agudas, o tempo de espera em emergências chega a quatro ou até seis horas.
Por outro lado, a grande maioria dos planos privados não cobre tratamentos complexos como transplantes, tratamento para a AIDS e para hepatites virais, entre outros, o que significa que cidadãos que passaram décadas pagando um plano de saúde privado, ao precisarem de tratamentos complexos, acabam migrando para o SUS, ocupando um espaço privilegiado e de alto custo.
IHU On-Line – Qual é a atual situação do Sistema Único de Saúde?
Nêmora Barcellos – O SUS é um grande sistema de saúde, e eu tenho muito orgulho dele. O grande problema é seu subfinanciamento – como dito anteriormente, sobretudo à custa do governo federal e dos governos estaduais (como no caso do Rio Grande do Sul).
É vital o aumento dos recursos, acompanhado do uso racional, responsável e ágil desses recursos. E não podemos esquecer que o financiamento adequado também contribui para o aumento do número de profissionais vinculados ao sistema e para a qualificação da estrutura física e de recursos humanos de todas as áreas da saúde, já que a multidisciplinaridade faz parte do funcionamento do SUS.
IHU On-Line – Qual é o déficit de médicos no país?
Nêmora Barcellos – Dados do Ministério da Saúde divulgados em maio de 2013 estimam que, nos últimos 10 anos, o Brasil acumulou uma carência de 54 mil médicos, sendo que, nos próximos dois anos, só com investimento do Ministério da Saúde, serão abertas mais 26 mil vagas. De acordo com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, o país necessitaria contratar 168.424 médicos para atingir o patamar da Inglaterra, que é de 2,7 profissionais por mil habitantes. No Brasil, o índice é de 1,8 profissional para cada mil habitantes. Ainda segundo o ministério, em 1.900 municípios há menos de um médico por 3 mil habitantes. Em outras 700 localidades, não há médico com residência fixa.
Em outras palavras, embora uma análise superficial, feita a partir dos grandes centros urbanos, possa dar a impressão contrária, existe uma necessidade real e urgente de mais profissionais, bem distribuídos geograficamente, generalistas e especialistas, para dar conta da demanda de toda a população brasileira, em todos os níveis de complexidade, dentro de um sistema organizado em rede hierarquizada de referência e contrarreferência, financiado de forma apropriada e suportado por uma boa estrutura de matriciamento.
IHU On-Line – Que melhorias é possível vislumbrar na área da saúde pública com a vinda dos médicos estrangeiros?
Nêmora Barcellos – O mais importante é que, em curto prazo, uma fração da população passará a ter acesso à saúde e à atenção médica.
As questões levantadas anteriormente, entretanto, são importantes para que esse acesso seja permanente, qualificado, integral e inserido em uma rede hierarquizada.
Assustou-me um pouco a notícia veiculada recentemente pela Folha de São Paulo de que municípios estão demitindo médicos para receber bolsistas vinculados ao Programa Mais Médicos e financiados pelo governo federal. Isso não pode ser sério. Aparentemente o governo federal promete retirar estes municípios do Programa. Espero que sim. Saúde não pode ser gerenciada de forma irresponsável, tanto do ponto de vista da população quanto do ponto de vista dos profissionais da saúde.
IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, a maioria dos médicos brasileiros se posiciona de modo contrário às contratações estrangeiras?
Nêmora Barcellos – Acho que dois aspectos chamam a atenção:
O primeiro é a não exigência de revalidação do diploma – o que anteriormente fazia parte do processo e que deveria ser revisto, pelo menos do ponto de vista qualitativo à luz de um novo sistema de saúde e de novas necessidades (será o exame atualmente aplicado o melhor para avaliar profissionais formados fora do país? Como se sairiam profissionais formados no país nesses exames?).
O segundo aspecto é vinculado a pressões corporativas dos médicos, que contam com os conselhos (tanto federal quanto regionais), atuando como confederação sindical quando suas funções seriam, além das funções de registro profissional de médicos, as de supervisionar a ética profissional, julgar e disciplinar a classe médica, zelando pelo desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exercem.
IHU On-Line – Como avalia a obrigatoriedade do primeiro ano de residência, em todas as especialidades, em unidades básicas de saúde? Há uma polêmica entre aqueles que defendem a medida e os que a criticam, alegando que os novos médicos trabalhariam para o Estado. O que isso revela sobre a postura do Estado em relação à saúde?
Nêmora Barcellos – Dentre outros pontos discutidos no Programa Mais Médicos, a residência médica obrigatória para o exercício da medicina no âmbito do SUS é, em meu ver, a mais sensata. Como salienta o documento publicado pela ABRASCO, “é preciso ainda que as vagas de residência (obrigatórias ou não – grifo meu) sejam distribuídas conforme as necessidades do sistema de saúde e que um mínimo de 40% delas sejam em Medicina de Família e Comunidade, medida que é adotada em todos os países com sistemas universais de saúde de qualidade”. De qualquer forma, outras medidas além da residência são necessárias para, como dito anteriormente, fixar profissionais em áreas fora dos concentrados urbanos e em locais de difícil acesso.
IHU On-Line – Por quais razões há poucos médicos nas regiões interioranas do país?
Nêmora Barcellos – Inicialmente, a formação médica baseada na superespecialização que implica importante estrutura de exames diagnósticos e terapias complexas praticamente obriga a fixação desses profissionais nos grandes centros urbanos, onde efetivamente é possível exercer o aprendido.
Em segundo lugar, a estrutura de assistência em regiões mais remotas, sem garantia de matriciamento e um sistema ágil de referência e contrarreferência, impõe dificuldades e fragiliza o exercício da profissão médica.
Em terceiro lugar, a maioria dos formandos está em idade de constituir família e, dependendo da localização, à medida que os filhos alcançam a adolescência, a tendência é a busca por centros maiores para propiciar educação de melhor qualidade.
IHU On-Line – Há uma discussão trabalhista acerca da atuação dos médicos estrangeiros, porque alguns receberão um salário de 10 mil reais, enquanto os cubanos receberão salários entre dois mil e quinhentos e quatro mil reais, porque o Estado brasileiro repassará um valor para Cuba, que pagará um percentual aos médicos. Quais as implicações políticas envolvidas nesse Programa?
Nêmora Barcellos – Essa é uma situação bastante complexa para a qual deve-se levar em conta o sistema político e as limitações de mobilidade vigentes em Cuba. Ao que parece, o contrato foi elaborado entre os governos. O Brasil contratou um serviço com Cuba. Cuba passa por enormes dificuldades econômicas em função do embargo imposto pelos Estados Unidos. Para todos nós que prezamos a democracia e a justiça, fica difícil aceitar. Penso que seria nossa obrigação abrir espaço para uma negociação individualmente mais justa.
IHU On-Line – Em que consiste uma “reformulação” adequada para resolver os problemas?
Nêmora Barcellos – Estamos diante de uma situação já concreta. O importante é ordenar agora para o futuro. A saúde tem que ser priorizada para além do discurso. Prioridade se estabelece com financiamento adequado. Adicionalmente, esta construção atual com vistas a um futuro de mais saúde para a população inclui uma mudança profunda da formação médica, a adequação da estrutura física e de recursos humanos tanto na área da formação quanto na área de atenção, a consolidação da rede descentralizada e hierarquizada de saúde a partir de um sistema efetivo de regionalização com suporte matricial tendo a Atenção Básica como entrada no sistema e a ESF como estruturante da atenção.
(Ecodebate, 11/09/2013) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Fico triste ao ler o que dizem pessoas da mais elevada cultura, como a Dra. Nêmora Barcellos, que rebusca o palavreado em vez de dizer diretamente o que deve ser dito. Por enquanto ainda somos uma democracia! Ora, sua entrevista seria muito mais proveitosa se dissesse claramente o que pensa. Está nas entrelinhas de sua entrevista que esse “programa Mais Médicos” é eleitoreiro, mentiroso e nada significará em função da saúde do povo brasileiro que reside nos rincões do nosso País. Poderia ter dito de forma mais clara que tudo o que se está fazendo de nada adiantará, que sem investimento na infra estrutura da saúde – em sentido amplo, NADA ADIANTARÁ! Daqui a 2 (dois) anos, respondo eu, tudo estará resolvido para as pessoas do governo atual, porque a eleição já terá acontecido e, para eles, a manobra contra o povo já lhes terá dado frutos. Quem viver, verá. Os que podem falar sinceramente com independência deveriam fazê-lo!
Seja lá quais forem os motivos dos médicos brasileiros de não quererem ir trabalhar em regiões remotas e pobres do Brasil, eles não têm o direito de impedir que outros queiram e vão.Eu não tenho qualquer conhecimento de uma grande mobilização envolvendo médicos que queriam ir para o interior do Brasil reinvidicando melhores condições para exercício de sua profissão, ou questionando direitos trabalhistas de outros, muito menos de médicos cubanos. Não entendo esta preocupação agora. Os médicos e todas as outras carreiras formadas em universidades públicas deveriam prestar serviço obrigatório em entidades públicas. Deveria ser meritório e interiormente motivo de sentir-se um ser humano melhor, prestar um serviço a pessoas que no geral não posuem qualquer condição de enfrentamento das situações difíceis na vida, principalmente as que envolvem vida e saúde.