Por que os índios incomodam mineradores e latifundiários?, artigo de Egydio Schwade
[Adital] Diamantino/Mato Grosso 8 de janeiro de 1963. Do caminhão que me levaria dentro de uma hora para Utiariti no Noroeste de Mato Grosso, onde iria ser mestre de indígenas, desembarcava o primeiro índio que conheci naquele sertão. Era um jovem do povo Kayabi. Ele chegava da aldeia, fazendo a viagem em sentido contrário ao meu. Durante os três anos seguintes que permaneci naquela região, foi esta a rotina mais comum. Indígenas abdicando de sua identidade. E a cidade era o melhor refúgio para ocultá-la. A afirmação mais freqüente era: “não sou índio! Sou caboclo!” Não me recordo de um só que afirmasse: “estou indo para a aldeia, para maloca. Eu sou índio”. O Governo, atrás da política de Rondon falava em “integração à comunidade nacional”. E os antropólogos daquele momento difundiam o conceito de “aculturação” do qual nos advertia o Pe. Adalberto Pereira, jesuíta cearense e guru de nós jovens recém-chegados ali: “A aculturação passa pela desintegração”. Não existia nenhuma organização indígena no país. Durante todo o ano de 1963 fui mestre no internato de Utiariti. A igreja também se preocupava em preparar o índio para a “civilização”.
Doutrinava. Interessava-se por ele, enquanto ainda se cobria de penas e pinturas, muitas vezes, como objeto de propaganda para angariar fundos. Mas quando se vestia a modo “civilizado” o interesse desaparecia. Como provas contavam-se centenas de aldeias fora da Amazônia, abandonadas à sua sorte, sem nenhuma presença da Igreja. Continuando os nossos estudos em São Leopoldo/RS, Thomaz Lisboa que também trabalhara comigo no Mato Grosso e eu, resolvemos passar a Semana Santa de 1967, com os Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul.
Chegamos à primeira aldeia em Nonoai na Quinta-feira Santa chuvosa e fria. Os Kaingang, homens mulheres, jovens e crianças nos acolheram carinhosamente. A chuva escorria forte do telhado dos ranchos muito pobres. E a conversa estava muito animada. Em dado momento um de nós dois fez a seguinte pergunta: “Como está a situação da vossa terra?”
Um silêncio sepulcral e incômodo se seguiu. Subitamente, uma senhora quebrou o silencio com esta frase: “Vocês qué mexê de novo em nossa terra? Então é melhó vocês matá índio tudo! Aí acabou sofrimento para nós e vocês têm o que qué!”
O que incomoda hoje mineradores, agro-negociantes e alguns militares formados na Escola das Américas a ponto de agredirem índios e ONGs indigenistas?
Vamos abrir o livro de Darci Ribeiro, “Os Índios e a Civilização” na página 431, onde comenta dados do seu levantamento sobre os povos indígenas brasileiros, feito nos anos 50. Veja o que diz: “A população indígena do Brasil, cujo montante se encontrava em 1957 entre um mínimo de 68.100 e um máximo de 99.700, não alcança, mesmo na hipótese mais otimista, 0,2% da população nacional. Distribuídos pelas diversas regiões do País, os valores médios destas avaliações nos dão um montante provável de 52.550 (61%) para a Amazônia; de 18.125 (21,6%) para o Brasil Central; de 7.700 (9%) para o Brasil Oriental, e de 5.525 (6,5%) para a região Sul”. Darci comparava este quadro com o do início do século 20 e concluía: “…o extermínio no período considerado foi de 73,4%”.
Nos anos 60 e 70 o latifúndio e as mineradoras, com incentivo do Governo Militar, lotearam entre si quase todos os territórios indígenas do Amazônia, certos de que o desaparecimento desses povos era uma questão de poucos anos. Veja dados e mapas sobre o assunto, publicados pelo CEDI – Centro Ecumêncio de Documentação e Informação. O ministro Rangel Reis, do Interior, responsável pela política indigenista do país em meados dos anos 70, deu à FUNAI o prazo de 20 anos para concluir a integração de todos os índios brasileiros.
Entretanto, esta perspectiva do desaparecimento inexorável dos índios mudou com a intervenção das ONGs que foram surgindo: OPAN (1969), CIMI (1972), CEDI e CCPY (1974), ANAI/RS e CPI/SP (1976), Grupo Kukuru/AM (1977) e outras. Igrejas, como a Católica e a Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, mudaram a catequese doutrinadora para o anúncio da Boa Nova do direito à Terra, à Autonomia e a sua Cultura.
Mas na vanguarda deste mutirão pró-índio não estavam apenas ONGs e igrejas. Muita gente, principalmente jornalistas, trabalhando nas mais diversas empresas da mídia brasileira, de direita e de esquerda, mesmo imprensados entre a Ditadura Militar e os seus patrões, arriscavam diariamente tudo para exercerem um jornalismo que tinha como meta a justiça e a verdade. E, todos juntos, sacudiram a Ditadura muito antes do Movimento Operário do ABC.
Como Coordenador Técnico da Operação Amazônia Nativa – OPAN, no final dos anos 60 e início dos anos 70 e, depois, como Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário – CIMI durante a difícil década de 70, acompanhei os indígenas na sua organização e retomada de sua História de Norte a Sul do país. Animados por igrejas, ONGs, jornalistas, começaram a se visitar, a se reunir em assembléias e se levantaram assumindo a sua identidade étnica, retomando a sua cultura e os territórios perdidos, roubados por governos ou grilados, por latifundiários e mineradores. Povos soterrados nas cinzas de chacinas, de roubos e de preconceitos sofridos, renasceram. Desde aquela viagem aos Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul de 1967 até o inicio dos anos 80, tive oportunidade de visitar o interior de quase todos os estados brasileiros, com a finalidade muito simples de localizar, visitar e animar etnias, muitas soterradas sob cinzas ainda incandescentes. E assisti a alegria do re-despertar de muitos povos por toda a América do Sul. Um espetáculo novo e nunca visto nestas terras, desde 1500.
Em 1978, pelo CIMI, organizei uma nova pesquisa da população indígena brasileira. Os indígenas já se haviam mais do que duplicado sobre os dados de Darci Ribeiro. Eram 220.000. Levantamento recente do CIMI contou 450.000 índios, pertencentes a 849 etnias espalhadas pelo país. E o IBGE contou 750.000 brasileiros que se assumem como indígenas, frustrando toda a espectativa necrófila de mineradores, fazendeiros e militares integracionistas.
Quando em 1978 percorri o Paraguai, a Argentina e a Bolívia com o companheiro Egon Dionísio Heck, alimentávamos um sonho maior: animar os indígenas e suas organizações e a Igreja Católica, da América Latina a mudarem o conceito de índio “campesino” para o de sua etnia: Kiñá, Guarani, Toba, Quetchua, Aymara… Essa mudança, imaginávamos, traria consigo uma nova face para o continente. Sonho que hoje já sentimos se concretizando “por ínvios caminhos cobertos de espinhos”.
Mas os latifundiários e as mineradoras, sustentáculos da política indigenista integracionista da ditadura militar ainda não saíram de cena, apenas mudaram a sua estratégia de ação: novas alianças e suborno de juízes, políticos e donos de empresas de comunicação. Assim mantêm a pressão contra os índios e os seus aliados e fustigam com audácia desesperadora. Daí a resistência contra a homologação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima, o apoio a Aracruz Celulose, do Espírito Santo, que se apossou das terras dos Tupininkin, detentores de registro de 1611, o mais antigo da História Brasileira; e, aqui, a pressão contra o território dos Waimiri-Atroari, sem referir outras que vêm sofrendo.
E os militares integracionistas? Freqüentemente ouvimos o discurso de algum, como o recente do general Augusto Heleno contra os territórios indígenas, a favor dos latifundiários, arrozeiros e agronegociantes da Reserva Raposa Serra do Sol. Favorecer a classe dominante foi a sua missão desde 1500. O mais avançado a que chegaram na política indigenista foi o integracionismo. Integração que conduz ao mesmo fim a que levou a catequese missionária.
Entretanto, os militares também têm exemplos onde se espelhar para mudar os seus inveterados preconceitos e ações criminosas contra os povos indígenas. Leiam, por exemplo, “Jauapery”/1926, do General Alípio Bandeira que peregrinou muito tempo entre os Waimiri-Atroari: “…passei pelo Jauapery de coração consternado, ouvindo gemidos e maldições no vozear noturno da selva, vendo por toda a parte sombras e cruzes, as cruzes de um martírio que não acaba, as sombras errantes dos mortos, dos seus pobres, dos seus insepultos, dos seus desconsolados mortos. Desde esses dias merencórios procuro em vão expressões com que transmita ao público o meu fundo sentimento de tristeza, entusiasmo e vergonha: – tristeza de ter conhecido ao grande e longo sofrimento; entusiasmo de ter contemplado tanta coragem e tanta confiança dos mártires; vergonha, pesada vergonha de pertencer a uma época em que taes crimes são possíveis”.
Outro exemplo. Em maio/1975 a II Assembléia Indígena, primeira de caráter supra-estadual reuniu 800 indígenas, representando quase 20 etnias, no rio Cururu, um afluente do rio Tapajós, em plena floresta amazônica. Esta Assembléia só foi possível graças ao Comandante Camarão, então a frente do Comando Militar da Amazônia. Ele pôs à disposição dos índios a frota de aviões sob seu comando, dizendo-nos (a Dom Tomás Balduino e a mim): “É disso que os índios ainda precisam: oportunidade para se encontrar e discutir os seus problemas! Podem contar com meu apoio!” Aviões sob seu Comando voaram para todas as direções da Amazônia, trouxeram índios Irantxe, Xavante, Bororo, Nhambikuara, Pareci, Rikbaktsa, Kayabi e Apiaká de Mato Grosso, trouxeram Xerente do Goiás, trouxeram Galibi, Karipuna e Palikur do Amapá, trouxeram Tiryó e Kaxuiana dos confins do rio Paru/Pará.
Entre 1972 e 1974, enquanto os militares comandavam a construção da BR-174, desapareceram mais de 2.000 Waimiri-Atroari ou Kiña como se autodenominam. Na expressão de Apoena Meirelles, chefe da Frente de Atração Waimiri-Atroari: “…tombaram no silêncio da mata e foram sutilmente enterrados e esquecidos no espaço e no tempo.” (Jornal Opinião, 17-01-75). Bombardeados, eletrocutados, fuzilados por militares do PARASAR e do 6º.BEC. Ali, os militares puseram em prática a covardia que o militar e deputado Jair Bolsonaro, em recente afirmação, lamenta não terem os seus colegas torturadores aplicado a outras vítimas indefesas. Uma atitude corajosa levou o general aposentado Berthier Brasil que acompanhou de perto os trabalhos do 6º.BEC, responsável pela construção da Rodovia Manaus-Boa Vista, ou BR-174, ao “Confiteor” registrado na dedicatória do seu livro “O Pagé da Beira da Estrada”: “ao anônimo irmão Waimiri-Atroari, cujo cadáver mal enterrado deparamos, muitas vezes, pela frente”. No seu livro questiona o desenvolvimentismo militar: “…o fantasma da guerra parecia andar solto. (…) aqueles últimos anos da década de 60 tinham enfoques especiais. A prioridade era o chamado desenvolvimento. Não havia tempo disponível, para a pesquisa e para o luxo das considerações lingüísticas, culturais e etnológicas.” E busca, embora tarde, penetrar no sofrimento das vítimas: “Na hora do ângelus e mesmo depois, em plena cegueira daquelas noites equatoriais, comovido, eu cansei de ouvir gemidos pungentes e soluços anônimos, verdadeiros clamores de misericórdia daquela gente, que me parecia condenada a um triste e melancólico fim…”
Durante a década de 70 acompanhei a luta heróica de muitos jornalistas contra a ditadura militar e seus tentáculos. Combater a injustiça e defender a democracia e a verdade, não é muito diferente agora do que o foi para os jornalistas de ontem. Instituições, empresas e até o Estado, são ficções criadas pelo homem, muitas vezes, para escravizar as suas consciências. Elas não têm responsabilidade em si mesmas: não pensam, não sentem, não vêem, não riem e nem choram… Para além delas estão consciências, pessoas humanas que têm o direito de se realizar levando satisfação e esperança a todos, principalmente, para os mais pobres e excluídos. Esta tarefa realizada, com ou sem dinheiro, trará tranqüilidade e paz.
Quando acaba a mina, morrem, definitivamente, os mineradores. Os latifundiários do agronegócio morrem quando tiverem envenenado a terra e os alimentos de seus filhos. O fim dos militares virá quando a máquina do Estado estiver congestionada, por processos, por corrupção e por funcionários.
Mas a profecia do índio Aymara, Tupak Katari, antes de ser esquartejado se está realizando nas Américas: “Voltaremos e seremos milhões!” Os Kiñá (Waimiri-Atroari) massacrados e reduzidos, no início dos anos 70, de 3.000 para 373, a partir de meados dos anos 80 começaram a crescer e em 2006 já festejaram sua chegada a 1.000 pessoas…
Casa da Cultura do Urubuí/Amazonas, 25-9-2008
Egydio Schwade é indigenista
Artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – Adital