Junho 2013. Eco das manifestações. Entrevista com Marcelo Badaró
‘Até aqui, já foi muito importante para uma nova geração aprender na prática que as mobilizações de massa geram resultados e mudam as coisas’
O professor de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcelo Badaró aponta nesta entrevista que ainda é cedo para analisar os resultados destas mobilizações, e que por detrás desta pluralidade de demandas estão alguns eixos fundamentais, como a defesa dos serviços públicos como transporte, saúde e educação, além da indignação com as remoções, por conta dos megaeventos, e com a violência policial nas manifestações e nas favelas.
Existe alguma explicação para estas manifestações? Os R$0,20 foram a gota d´água?
Não existe uma explicação única. O reajuste das passagens atinge a todos os usuários de transporte público ao mesmo tempo, uma maioria da população que já vem sofrendo com o aumento do custo de vida, mas é particularmente sensível ao fato de que paga muito por um transporte coletivo de nível abaixo do mínimo compatível com a dignidade. Os estudantes, que já há anos vêm se organizando em torno da reivindicação do passe livre, foram os primeiros a ir às ruas e ganharam o apoio generalizado. A violenta repressão policial, desencadeada especialmente em São Paulo, contra as primeiras manifestações, transformou o apoio tácito em mobilização, levando milhões às ruas, com muitas outras reivindicações em seus cartazes e palavras de ordem.
O que o comportamento oscilante da imprensa, ora criticando, ora elogiando e novamente criticando…, diz sobre o caráter das manifestações e os interesses que estão em jogo?
A imprensa empresarial representa a ponta de um enorme aparato de formação de consensos acionado cotidianamente pela classe dominante brasileira. Um dos consensos mais fundamentais no quadro do sistema de poder brasileiro é aquele que se procura manter em torno da necessidade de um aparelho policial repressivo hiperdesenvolvido, herança conscientemente mantida da ditadura militar. Quando das primeiras manifestações, a mídia corporativa procurou justificar a violência da repressão, apresentando todos os manifestantes como “baderneiros”. Na sequência dos acontecimentos, diante do caráter multitudinário das novas manifestações, quando tal posição tornou-se insuportável, a tônica da cobertura mudou: a maioria dos manifestantes tornou-se pacífica, ordeira, cidadãos justamente mobilizados, mas uma minoria de “vândalos” e “radicais” justificaria a necessidade da violência repressiva da polícia. Ao mesmo tempo, procurou-se dirigir a pauta dos manifestantes para demandas mais difusas, como o combate à corrupção e o não à PEC 37, reivindicações de materialidade mais diluída do que a das demandas originais.
Como você avalia a importância da internet, mais especificamente, das mídias sociais nessas manifestações?
As mídias sociais ampliaram a rapidez com que as informações se difundem, possibilitando convocações mais rápidas para os atos e viabilizando a difusão de informações e denúncias, incluindo imagens (fotos e filmes), que estabelecem um contraponto à imprensa empresarial, continuamente desmentida e questionada através das redes. Obviamente, nem todos têm acesso a essas mídias e elas não possuem a mesma penetração da mídia corporativa. Por outro lado, por seu próprio caráter, se prestam também à ação deliberada de setores conservadores e mesmo fascistas, para tentar se apropriar de alguns símbolos e linguagens dos movimentos, de forma a tentar dirigir a atenção para propostas que fogem completamente às originais dos protestos.
Como se articulam o discurso oficial, de que as manifestações são um direito, e a violenta ação repressiva da polícia em vários lugares?
A atual configuração do regime político brasileiro indiscutivelmente assenta-se sobre as bases democrático-representativas. Uma democracia de “baixa intensidade”, em que os cidadãos são chamados a votar a cada dois anos em eleições tratadas como mercado do voto, nas quais os recursos gastos em publicidade são o fator decisivo. Ainda assim, o Estado brasileiro após a redemocratização não abriu mão dos mecanismos repressivos herdados da ditadura militar, como as polícias militares. E diversas vezes desde então temos tido prova de sua função na repressão violenta a movimentos sociais, como o MST. Nesse tipo de regime democrático, espera-se que a mobilização política direta da população seja a menor possível, particularmente dos setores mais organizados e combativos. A surpresa com a dimensão das manifestações tem obrigado os governantes a exercitarem um discurso de suposto reconhecimento à legitimidade dos protestos, mas a tradicional ação repressiva não é desmontada, descortinando os limites desse discurso e do regime democrático brasileiro.
O comentarista de segurança pública da Globo, Rodrigo Pimentel, avalia que a polícia não pode atuar como faz nas favelas. Como você avalia isso? Como isso pode ser permitido nas favelas e não nas manifestações?
Nesta semana, mais uma vez, o BOPE [batalhão de operações especiais do Rio de Janeiro] e outras tropas policiais invadiram uma favela carioca, com seus fuzis de guerra e carros blindados e, aparentemente enfurecidos com a morte de um dos seus, exercitaram o terror de Estado sobre os trabalhadores residentes na Nova Holanda, matando pelo menos nove moradores. Nada de novo. Se em momentos específicos a polícia é empregada para reprimir movimentos sociais, no dia a dia ela atua como força de contenção permanente da explosividade latente decorrente da situação social dos setores mais precarizados e pauperizados da classe trabalhadora, que habitam as favelas e periferias das grandes cidades brasileiras. E como eu disse antes, um dos esforços mais sistemáticos da imprensa empresarial é o de naturalizar a ação repressiva da polícia militar. Por isso, o “capitão Nascimento” em pessoa é contratado pela rede Globo para, todos os dias, na hora do almoço, tentar nos convencer de que vivemos uma guerra e que o combate ao suposto “inimigo” justifica a ocupação militar dos morros por uma polícia assassina de jovens negros e favelados. Esperamos que agora muitos dos que foram às ruas e sofreram com o gás lacrimogêneo, o spray de pimenta, os cassetetes e balas de borracha das PMs acordem para o fato de que essa é a realidade diária de milhões de trabalhadores favelados no Brasil, com diferença de que lá as balas não são de borracha.
O que essa pluralidade de demandas e, ao mesmo tempo, esse antipartidarismo de alguns grupos, diz sobre os rumos possíveis das manifestações?
O processo está em curso e é difícil avaliar seus rumos. Por trás da pluralidade das demandas estão alguns eixos fundamentais, como a defesa dos serviços públicos e de qualidade (transporte, saúde e educação), a luta contra as remoções justificadas pelos megaeventos, assim como a rejeição à repressão policial e às mentiras da mídia corporativa. Caso as frações mais organizadas e combativas da classe trabalhadora entrem em cena, com greves e manifestações de face mais classista, tal pauta pode ter desdobramentos positivos nos próximos momentos. Se o mix de repressão, anúncio de medidas localizadas, posto em ação pelos governantes, der resultado, as lutas podem refluir. De qualquer forma, até aqui, já foi muito importante para uma nova geração aprender na prática que as mobilizações de massa geram resultados e mudam as coisas.
Já os gritos antipartidários possuem duas dimensões. De um lado a revolta contra os partidos tradicionais, que nas eleições renovam promessas que não cumprirão por estarem profundamente amarrados aos interesses das frações de classe dominante que representam. Algo que atingiu o PT e seus aliados (como o PCdoB), antes identificado com a voz das ruas e que hoje é apenas mais um partido da ordem. Por outro lado, há uma tentativa de direcionar essa reação para um ataque aos partidos que ainda se mantêm no âmbito de uma posição de crítica contrassistêmica. Mesmo sendo hoje muito pequenos, para os conservadores representam uma ameaça caso sejam identificados pelas massas que vão às ruas como representantes de suas demandas.
Essa pluralidade de demandas tem trazido também alguns gritos conservadores. Esse pode se tornar um movimento de massas de direita? Quando tomou as ruas, ele já podia ser considerado um movimento de esquerda?
O movimento começou em torno das demandas e formas organizativas da esquerda, na sua defesa de um serviço público mais barato e de qualidade, apontando para um horizonte de mudanças mais amplas. Por exemplo, a mobilização pela redução das passagens como etapa de uma luta maior pela tarifa zero e a estatização dos transportes públicos. Por isso, os conservadores lançam mão de seus espaços de difusão ideológica para propor bandeiras mais ajustadas à ordem e acionam todos os recursos, inclusive fomentando a violência neo-nazifacista, contra as organizações políticas e sindicais dos trabalhadores. No entanto, para o conservadorismo dominante no Brasil, o projeto não é o de mobilizar massas, mas o de conter as lutas e retomar a “normalidade”.
É preciso que a esquerda se reorganize diante deste cenário apresentado hoje?
Sim, a unidade entre partidos, organizações sindicais e movimentos sociais representativos dos trabalhadores é fundamental para que eles possam realmente influenciar o movimento em curso em um sentido mais comprometido com mudanças efetivas. Para tanto, será preciso que os partidos de esquerda, hoje muito reduzidos em sua influência, sejam capazes de se diferenciar efetivamente do PT, apostando no caminho da organização e no trabalho pedagógico junto aos setores que se mobilizaram nessas manifestações, ao invés de concentrarem todas as suas energias nos processos eleitorais. Os sindicatos estão desafiados a se desvincularem das amarras do oficialismo e da burocratização e a criarem vínculos orgânicos com os movimentos que representam as parcelas mais precarizadas da classe.
Como você avalia o discurso da presidente Dilma Rousseff na sexta-feira?
Medidas como a revogação dos aumentos de passagens em várias capitais e a atitude dos governantes de reconhecerem que as mobilizações os obrigam a anunciar mudanças são conquistas efetivas desse movimento. Quando Dilma Rousseff se pronuncia em rede nacional, recebe movimentos e anuncia medidas, legitima as mobilizações. No entanto, seu pronunciamento não anunciou nada de substantivamente novo. Até aqui parece acreditar que as estratégias de marketing político empregadas nas campanhas e o temor dos congressistas diante da voz das ruas serão suficientes para aprovar algumas propostas do Executivo, que seriam apresentadas como resolução dos problemas, mas sem tocar nas suas raízes. O sucesso dessa estratégia dependerá dos desdobramentos seguintes das mobilizações de rua. O processo ainda está em aberto.
Entrevista concedida à Viviane Tavares – Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
EcoDebate, 05/07/2013
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