Existe uma associação entre mortalidade por câncer e uso de agrotóxicos? Uma contribuição ao debate
Is there an association between cancer mortality and agrotoxics use? A contribution to the debate
Paulo Fernandes Costa JobimI; Luciana Neves Nunes II; Roberto GiuglianiI,IV; Ivana Beatrice Manica da CruzIII
IPrograma de Pós-Graduação em Ciências Médicas, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ramiro Barcelos 2400, Bairro Santana. 90035-003 Porto Alegre RS. pjobim@uol.com.br
IIDepartamento de Estatística, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIDepartamento de Morfologia, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal de Santa Maria
IVDepartamento de Genética, Instituto de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
O uso crônico de agrotóxicos em regiões rurais no Estado do Rio Grande do Sul (RS) tem sido tentativamente relacionado a um possível aumento na incidência de câncer nos trabalhadores rurais. Foi realizado um estudo ecológico de série temporal (1979 a 2003) na microrregião (MI) de Ijuí, no Estado do Rio Grande do Sul e no Brasil, com dados anuais do Sistema do Departamento de Estatística do Sistema Único de Saúde (DATASUS), para avaliar o comportamento do coeficiente de mortalidade por câncer, padronizado por idade e sexo. Utilizou-se um modelo de regressão linear simples e múltipla para estimar, respectivamente, as taxas de mortalidade e as diferenças entre as três regiões estudadas. A MI e o RS apresentam maior taxa média de mortalidade tanto em homens quanto em mulheres, sendo significativamente diferentes das observadas para o Brasil como um todo (p<0,001). Quando o modelo foi ajustado para as três regiões, a tendência de aumento da taxa de mortalidade permanece. Esses dados sugerem que a relação entre uso crônico de agrotóxicos e câncer não pode ser rejeitada e que deve ser melhor estudada.
Palavras-chave: Agrotóxicos, Câncer, Agricultura, Medicina do trabalho, Riscos ocupacionais
ABSTRACT
The chronic use of agrotoxics in rural regions of Rio Grande do Sul State (RS) has been tentatively associated to a possible increase in the incidence of cancer in rural areas. A time-trend ecological study was performed in the micro region of Ijuí County (MI), in RS and Brazil, with data of the 1979 to 2003 period. Data was collected from the Mortality Information System, Brazilian Ministry of Health (DATASUS), to evaluate the cancer mortality rate, standardized by gender and age – corrected mortality ratios. Linear regression for mortality time-trend analysis and multiple regressions for mortality differences among three regions were calculated. The highest average mortality rate in men and also women were observed in RS and MI and they were significantly higher (p<0,001) than the one for Brazil. When the model was adjusted for three regions the upward trend on mortality remained the same. This data suggests that the relation between chronic use of agrotoxics and cancer cannot be denied and should be further investigated.
Key words: Agrotoxics, Cancer, Agriculture, Occupational medicine, Occupational risks
Introdução
De acordo com a Organização das Nações Unidas, o número de pessoas, em 2025, dependentes de alimentos provenientes do meio rural no mundo será de 7,9 bilhões1. Esta necessidade crescente faz com que o processo de produção agrícola esteja sendo, cada vez mais, submetido a fortes mudanças tecnológicas e organizacionais, visando à produtividade2.
No Brasil, parte da agricultura passa por um processo contínuo de modernização, via incorporação de novas tecnologias, com a perspectiva de aumentar a competitividade no mercado internacional3. A “modernização agrícola”, se por um lado gera crescimento econômico, por outro tem riscos potenciais ao ambiente e à saúde humana. Entre esses riscos, se incluem efeitos prejudiciais associados ao uso massivo e crônico de agrotóxicos, como são chamadas as substâncias químicas que têm por finalidade controlar ou eliminar plantas e animais (conhecidos como pragas) prejudiciais à agricultura4.
A cultura do uso de agrotóxicos no Brasil começou partir da década de sessenta, quando o chamado Plano Nacional do Desenvolvimento (PND) adotado pelo governo obrigou os agricultores a comprar uma cota definida de agrotóxicos para que pudessem obter crédito rural. Com essa obrigatoriedade, a utilização de agrotóxicos aumentou de modo exponencial, contribuindo para a quase extinção de práticas alternativas e ecologicamente saudáveis de manejo de pragas5.
De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população rural corresponde a quase 32 milhões de pessoas e a população rural economicamente ativa, a 12 milhões de pessoas6. Por ano, são produzidos no mundo 2,5 milhões de toneladas de agrotóxicos, sendo 39% de herbicidas, 33% de inseticidas, 22% de fungicidas e 6% de outros grupos químicos. No Brasil, a produção de agrotóxicos é de 250 mil toneladas por ano, sendo nosso país o oitavo consumidor de agrotóxicos do mundo7.
Cada vez mais casos de pessoas contaminadas diretamente por agrotóxicos no meio rural são relatados. Entretanto, moradores de áreas próximas e, eventualmente, pessoas do meio urbano também se encontram sob risco, devido à contaminação dos alimentos como carne, peixe, laticínios, frutas e vegetais, tornando assim a exposição crônica8. Desta forma, os riscos à saúde humana associados ao uso e à exposição crônica a agrotóxicos têm sido objeto de grande interesse científico.
Em termos populacionais, os efeitos crônicos podem ser tão prejudiciais quanto os agudos, uma vez que existem sugestões fortemente apoiadas por evidências que apontam consequências deletérias na fertilidade, na etiologia de danos neurológicos e possivelmente no aumento da suscetibilidade a neoplasias9. Assim, indivíduos que participam da produção industrial ou aplicação em larga escala destes compostos podem estar sujeitos a uma maior contaminação do que a população em geral.
O efeito crônico ocorre principalmente porque existem três principais vias de absorção de agrotóxicos (dérmica, digestiva e respiratória), o que aumenta a área biológica de exposição a estes agentes químicos. Adicionalmente, alguns pesticidas permanecem armazenados nos tecidos de organismos vegetais e animais, incluindo o homem, como é o caso dos agrotóxicos que usam organoclorados. Tais pesticidas são lipossolúveis e têm grande estabilidade, o que os torna geralmente resistentes à degradação biótica ou abiótica10.
Alguns estudos vêm demonstrando que tais agentes podem realmente estar relacionados com o desenvolvimento de morbidades crônico não-transmissíveis, como as neoplasias9,11,12.
Entretanto, sob o ponto de vista epidemiológico, a avaliação do potencial carcinogênico dos agrotóxicos com organoclorados e demais agrotóxicos com o câncer é extremamente complexa. As dificuldades são inúmeras, face à heterogeneidade dos compostos utilizados, à diversidade de métodos de aplicação e à ausência de dados adequados sobre a natureza da exposição. Além do que, o nível de exposição a agrotóxicos estimados em estudos epidemiológicos nem sempre representa a sua intensidade real. Como a abordagem quantitativa precisa é difícil de ser realizada, acabam sendo utilizadas medidas subjetivas como, por exemplo, tempo de exposição, área geográfica ou frequência de uso13.
Apesar de existirem áreas do território brasileiro que são fortemente voltadas a agricultura há mais de quarenta anos, o número de estudos que identifiquem ou acompanhem populações cronicamente expostas a defensivos agrícolas é muito incipiente. Uma vez que, demograficamente, o Brasil está envelhecendo e isto significa aumento de indivíduos idosos e de doenças crônico não-transmissíveis associadas, investigações relacionadas a fatores de risco e proteção destas doenças são de grande interesse para a saúde pública. A identificação de grupos suscetíveis, e seus fatores etiológicos principais, permite a criação de programas de saúde voltados a sua prevenção.
Neste sentido, o presente artigo tem como finalidade contribuir para o debate de quanto as áreas cronicamente expostas a agrotóxicos poderiam apresentar uma prevalência maior de neoplasias e se, com os dados governamentais hoje disponíveis, esta relação pode ser de fato sugerida. Para tanto, o trabalho utilizou como referência de área geográfica agrícola a Região Noroeste Colonial do Estado do Rio Grande do Sul, que historicamente concentra sua economia na produção da monocultura da soja.
Métodos
Um estudo ecológico foi conduzido comparando-se as taxas de mortalidade do Brasil, Rio Grande do Sul e da microrregião de Ijuí, que está localizada na Região Noroeste Colonial (RS). O período de análise foi de 1979 a 2003. As principais características demográficas, socioeconômicas e epidemiológicas dos quinze municípios que compõe a MI são apresentadas na Tabela 1, incluindo a percentagem estimada de área geográfica que é utilizada no plantio de soja.
Em termos geográficos, a Região Noroeste Colonial é um extenso planalto, que se inclina, num plano, para o rio Uruguai, que, por sua vez, recorta o estado ao norte e ao oeste, na fronteira com a Argentina. Esta região concentra uma área extensa de plantio de soja. Considerando-se a produção média de 2001 a 2003, o Rio Grande do Sul é o terceiro maior produtor de soja do Brasil, com 16,8% do total produzido, média semelhante a do período de 1998 a 2000, que era de 16,5%. Esta região produz soja intensivamente e outras culturas agrícolas, com destaque ao trigo e milho. A intensificação do modelo de monocultura baseado em métodos convencionais de cultivo que inclui o uso de agrotóxicos começou durante a década de setenta e se estende até os dias de hoje14.
Esta região foi escolhida porque, segundo resultados apresentados no Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul15, organizado e publicado pelo Governo do Estado, e disponível via Internet, além de ser produtora agrícola (Tabelas 1 e 2), em termos epidemiológicos, a mesma apresenta alta prevalência de neoplasias. Esta sugestão foi oriunda da análise da proporção de óbitos por neoplasias, baseada no ano de 2002, tendo como fonte de dados o DATASUS.
Os resultados mostraram que existem quatro áreas geográficas organizadas por Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS), que apresentam uma prevalência de morte por neoplasias mais alta que as demais regiões do estado (entre 20,1 a 23,2%): a 7ª CRS, cuja coordenação é localizada no município de Bagé, a 5ª CRS, no município de Caxias do Sul, a 6ª CRS, no município de Passo Fundo e a 17ª CRS, no município de Ijuí. Porque então se optou por estudar a microrregião de Ijuí como um possível local que apresente maior susceptibilidade a neoplasias associada ao uso crônico de agrotóxicos?
Responder esta questão é metodologicamente importante para o estudo uma vez que:
(1) A alta prevalência observada poderia ser consequência de uma proporção maior de indivíduos idosos na população em relação aos grupos etários mais jovens, causado principalmente pela migração continuada de adultos produtivos da região para outras, com maior oferta de emprego. Esta condição explicaria o maior número proporcional de mortes por neoplasias. Para minimizar este problema, o estudo realizou as análises comparativas entre o padrão de mortalidade por neoplasias da MI, do RS e do Brasil, utilizando a padronização dos dados etários baseada em uma população padronizada proposta pela Organização Mundial de Saúde (Word Health Organization (OMS) Standard Population), cujo referencial está baseado em Ahmad et al.16. Optou-se por eliminar o viés da idade em vez de se realizar uma análise multivariada incluindo a idade, pelo número populacional relativamente baixo da MI (Tabela 1), o que limitaria os testes estatísticos relacionados. Adicionalmente, uma comparação entre a distribuição etária da MI com a do RS e do Brasil, utilizando dados censitários do IBGE para 1996 e 2000 mostrou tendência similar;
(2) Outro possível efeito relacionado com uma taxa mais elevada de óbitos por neoplasia poderia ser o desenvolvimento regional. Dados epidemiológicos têm mostrado uma tendência de ocorrer aumento na prevalência da mortalidade por neoplasias em países altamente desenvolvidos, como é o caso do Japão17. Uma vez que o Rio Grande do Sul apresenta características similares a países desenvolvidos, estas regiões, incluindo a MI, poderiam apresentar esta tendência em relação a outras regiões do próprio estado e do país. A OMS, a fim de comparar os países quanto ao seu desenvolvimento, criou um índice conhecido Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)18. Baseado neste índice, a Fundação de Economia Estatística do Estado do Rio Grande do Sul (FEE) organizou o Índice de Desenvolvimento Socioeconômico para o Rio Grande do Sul (IDESE). Segundo a FEE, IDESE é um índice sintético, inspirado no IDH, que abrange um conjunto amplo de indicadores sociais e econômicos classificados em quatro blocos temáticos: Educação; Renda; Saneamento e Domicílios e Saúde. Ele tem por objetivo mensurar e acompanhar o nível de desenvolvimento do Estado, de seus municípios e Coredes, informando a sociedade e orientando os governos (municipais e estadual) nas suas políticas socioeconômicas.
O IDESE varia de zero a um e, assim como o IDH, permite que se classifique o Estado, os municípios ou os Coredes em três níveis de desenvolvimento: baixo (índices até 0,499), médio (entre 0,500 e 0,799) ou alto (maiores ou iguais que 0,800)19. Optou-se pelo uso do IDESE para responder a questão se a área apresentaria maior desenvolvimento do que outras regiões, uma vez que o IDH é usado para o estado como um todo. A comparação do IDESE da microrregião de Ijuí com a do estado (Tabela 3) e com as demais regiões mostrou que esta apresentou o índice mais baixo que as demais (Caxias = 0,801, Passo Fundo= 0.779 e Bagé=0,751), o que não corrobora esta hipótese;
(3) Diferenças étnicas inter-regionais, ou mesmo fortemente associadas a determinados grupos étnicos específicos, poderiam também influenciar a taxa de mortalidade por neoplasias. Esta condição parece ser improvável, uma vez que na MI, ainda que exista uma contribuição européia significativa em relação à indígena e africana, a mesma foi originada a partir de diferentes etnias. Isto porque as levas migratórias européias que povoaram o Rio Grande do Sul tenderam a formar, no final do século XVIII, os chamados “núcleos étnicos puros”, que dificultavam a integração estadual. Assim, com a intenção de misturar imigrantes de várias etnias, para não causar conflitos nas colônias, foram enviados para a MI diversos grupos étnicos. Neste período, historiadores chegaram a detectar dezenove idiomas entre italianos, alemães, poloneses, letos, austríacos, holandeses, suecos, espanhóis, libaneses, árabes, lituanos, rutenos, checos, finlandeses e até gregos. Apesar da predominância de alemães e italianos, a MI ainda hoje é conhecida como a Europa do Rio Grande do Sul. Apesar da resistência inicial à miscigenação, hoje a tendência de casamentos interétnicos é uma realidade20.
Caracterizada a área do estudo e resolvida às questões pertinentes relacionadas, a seguir foram coletados dados anuais de óbitos por câncer do Sistema do Departamento de Estatística do Sistema Único de Saúde (DATASUS)21, para o período entre 1979 e 2003, do Brasil, do estado do RS e MI. Foram calculadas as taxas de mortalidade por 100 mil habitantes por ano para cada região, separadas por sexo. Essas taxas foram padronizadas por faixas etárias, pelo método direto22, utilizando-se como referência os dados de população residente em cada região, sendo estes obtidos através de pesquisa do DATASUS, referentes ao Censo 2000. Foram utilizadas seis faixas etárias, sendo a primeira 20-29 anos e a última 60-79 anos. Para a análise estatística, foi utilizado modelo de regressão linear simples, a fim de estimar os coeficientes das taxas de mortalidade padronizadas em cada uma dos locais, separados por sexo. A fim de comparar as diferenças entre os três locais, utilizou-se um modelo de regressão linear múltipla, em que se considerou como variável dependente a taxa de mortalidade padronizada e como variáveis independentes, o tempo e os locais. O modelo utilizado teve a seguinte expressão:
Para todos os modelos, foram feitos diagnósticos através da análise de resíduos. Os dados obtidos foram tratados nos programas Microsoft Excel 2000 e SPSS 13.0. Para as análises estatísticas, o nível de significância utilizado foi de 5%. As análises foram realizadas separadamente por gênero. Não foram realizadas análises separadas segundo o tipo de neoplasia, por ser uma população pequena.
A seguir, buscou-se identificar indicadores de exposição e contaminação por agrotóxicos que poderiam influenciar os resultados obtidos. Para tanto, foram realizadas consultas nos bancos de dados de instituições governamentais como o IBGE, DATASUS e FEE sem que se encontrassem dados quantitativos sobre quantidade de defensivos comercializados nas regiões estudadas ao longo da série histórica. Adicionalmente, foram realizados contatos com a Secretaria de Agricultura, Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), sem que se conseguisse documentação apropriada para a coleta destas informações. Deste modo, optou-se por realizar um estudo indireto a partir de resultados e tabela de dados disponíveis no Censo Agropecuário do IBGE. A realização do Censo Agropecuário 1995-1996 teve como referência o período de 01.08.1995 a 31.07.1996 e as datas de 31.12.1995 e 31.07.1996. As seguintes informações foram utilizadas, nas quais a conceituação proposta pelo IBGE foi mantida:
(1) Área total – compreendeu a totalidade das terras que formavam cada município, considerada a situação existente na data do censo;
(2) Área de lavouras (temporárias e permanentes);
(3) Número de estabelecimentos que usavam agrotóxicos;
(4) Relação entre a população ocupada na atividade agrícola e população total das áreas investigadas;
(5) Quantidade de hectares para cada um dos principais tipos de culturas plantadas, (milho, soja e trigo), destacando a proporção da área plantada de soja em relação à área total.
Estes resultados foram expressos em hectares (ha). Os dados foram coletados para cada município, MI, RS e Brasil.
Resultados
A Tabela 2 mostra os dados das populações masculinas, femininas e taxas médias de mortalidade padronizadas por idade para as áreas selecionadas: Brasil, RS e MI, sendo que nos dados do Brasil foram excluídos os dados do RS e nos dados do RS foram excluídos os dados da MI.
Na Figura 1, estão apresentados os dados das taxas de mortalidade por câncer para os homens. Pode-se perceber que o RS e MI apresentam maior taxa de mortalidade padronizada em todos os anos investigados, quando comparados com o Brasil. Provavelmente porque a Região Sul exibe altos níveis de industrialização e sua população revela os melhores indicadores de qualidade de vida do país, sendo o RS o estado brasileiro com maior expectativa de vida (73,4 anos), superior à média brasileira de 69,0 anos. Os idosos (360 anos) representam aproximadamente 10% da população19. Já a MI tem as taxas de mortalidade abaixo das taxas do RS até metade da década de noventa, quando se torna semelhante, e a partir de 2000 passa a ter taxa mais alta que a do Rio Grande do Sul. Também pode ser observado que a tendência dos três locais é o aumento da taxa de mortalidade. Em todos os modelos de regressão simples ajustados, a variável tempo foi significativa (p<0,001). Os ajustes foram bastante bons quando se verifica os coeficientes de determinação (R2), sendo estes 0,973, 0,988 e 0,825, respectivamente, para Brasil, RS e MI. Na Figura 2, são apresentados os dados das taxas de mortalidade por câncer para as mulheres. Pode-se perceber que o RS e MI apresentam maior taxa de mortalidade padronizada em todos os anos investigados, quando comparados com o Brasil. Já a MI tem as taxas de mortalidade abaixo das taxas do RS até o início da década de noventa (1992), quando rapidamente torna-se maior que a do RS. Também pode ser observado que a tendência dos três locais é o aumento da taxa de mortalidade. Em todos os modelos de regressão simples ajustados, a variável tempo foi significativa (p<0,001). Os ajustes foram bastante bons quando se verifica os coeficientes de determinação (R2), sendo estes 0,976, 0,988 e 0,899, respectivamente, para Brasil, RS e MI.
Também foram ajustados dois modelos de regressão simples (para sexo masculino e sexo feminino), considerando como variável dependente a taxa de mortalidade padronizada e como variável independente o tempo. Tais modelos apresentaram R2 de 0,977 e 0,979, indicando bons ajustes. Para o sexo masculino, o modelo teve a expressão taxa=55,25+2,89 ano e para o sexo feminino, taxa=41,33+2,41 ano, sendo que “ano” foi significativo em ambos modelos (p<0,001).
Nos modelos de regressão múltipla ajustados para sexo separadamente (Tabela 2), é possível se verificar que as interações tempo e local foram significativas (p<0,05). Quanto ao local, no modelo para o sexo masculino, verifica-se que tanto o RS (p=0,021) como MI (p<0,001) são significativamente diferentes do Brasil, quanto à taxa de mortalidade por câncer. Já no modelo ajustado para o sexo feminino, somente o RS mostrou-se significativamente diferente do Brasil (p<0,001). Nos dois modelos, o tempo foi significativo (p<0,001), sendo que seu coeficiente estimado foi 2,619 para os homens e 2,082 para as mulheres, ou seja, a cada ano espera-se um aumento de 2,6 óbitos por câncer para os homens e 2,1 óbitos por câncer para as mulheres. Considerando-se a interação de tempo e local, essas taxas aumentam para 3,6 (2,619+0,999) óbitos de homens por câncer por ano na MI, e 5,9 (2,619+3,261) óbitos de homens por câncer por ano no RS. Os coeficientes de determinação foram bastante bons em ambos modelos, indicando um bom ajuste dos modelos.
A seguir, alguns indicadores indiretos de exposição e contaminação foram avaliados. Os resultados são descritos na Tabela 3. Como pode ser observado, cerca de 2/3 da área da MI é ocupada pela agricultura. No caso, Chiapetta chegou a apresentar mais de 80% da sua área destinada à produção agrícola. Estes valores foram extremamente elevados quando se compara esta área com o Rio Grande do Sul e o Brasil, do qual menos de 3% das suas áreas estão comprometidas com a agricultura. O número de estabelecimentos que afirmam utilizar defensivos agrícolas também pareceu ser relativamente grande. Em termos populacionais, 24% da população da MI está ocupada com atividades agrícolas, sendo que esta proporção cai para 14 a 11% no RS e Brasil. Dos três produtos principais que são cultivados, a soja aparece em destaque, sendo utilizado quase o dobro de hectares plantados por soja na MI em relação ao RS. Chama a atenção que 80% da área plantada de Coronel Barros está destinada à soja.
Discussão
Os resultados sugerem que existe maior prevalência de mortalidade por neoplasias na microrregião de Ijuí em comparação ao RS e Brasil. Na ordem em que os mesmos são apresentados, os homens têm uma mortalidade média por câncer maior do que as mulheres no Brasil, RS e MI. Considerando que este gênero possui uma exposição ocupacional maior do que a mulher no que diz respeito ao trabalho na agricultura (plantio, aplicação de defensivos, adubos, etc.), tal resultado seria esperado.
Pode-se perceber que o Rio Grande do Sul e a MI apresentam maior taxa de mortalidade padronizadas, tanto em homens quanto em mulheres, em todos os anos investigados, quando comparados com o Brasil. Talvez isso possa ser explicado pelo fato de que a Região Sul exibe altos níveis de industrialização e sua população revela os melhores indicadores de qualidade de vida do país. O RS é o estado brasileiro com maior expectativa de vida (73,4 anos), superior à média brasileira de 69,0 anos. Os idosos (360 anos) representam aproximadamente 10% da população. Quanto às taxas de mortalidade da MI estarem abaixo das taxas do RS até metade da década de noventa e, a partir de 2000, passar a ter taxa mais alta que a do RS, pode estar associado ao aumento significativo na demanda de alimentos, fazendo com que a produção aumente também. Quando foram vistos separadamente os sexos, as interações tempo e local, o sexo masculino diferiu do Brasil quanto à taxa de mortalidade por câncer no RS e na MI pela semelhança demográfica epidemiológica do RS com países desenvolvidos.
É importante ressaltar que, neste estudo, o RS, apesar de partir de um patamar mais elevado, apresenta uma taxa média de mortalidade para homens e mulheres, respectivamente 47,7 e 38,2, sendo significativamente maior que os outros dois estados (p<0,001). Esses dados denotam, entre outros aspectos, tendência crescente da incidência desta doença associada ao uso de defensivos agrícolas. Este estudo abre perspectivas para novos estudos que busquem associar o uso de agrotóxicos e câncer para que nossos achados possam ser reforçados.
Apesar de serem indicativos leves, a comparação da área plantada, o número de estabelecimentos que usam defensivos e a proporção da população ocupada na agricultura, quando comparados entre a MI e as outras áreas, revelam uma situação na qual não se descarta uma possível influência da exposição/contaminação crônica aos defensivos agrícolas na maior prevalência de mortalidade de neoplasias observada. Neste caso, os resultados obtidos apontam para a necessidade da realização de estudos adicionais que aprofundem esta perspectiva e caracterizem os grupos com maior risco. Inicialmente, um estudo que mereceria ser conduzido é a comparação da morbimortalidade relacionada a intoxicações agudas por agrotóxicos entre todas as microrregiões do RS e o Brasil. É claro que tal estudo também apresenta limitações, mas serviria como um indicativo mais robusto da exposição aos agrotóxicos.
É importante comentar que o presente estudo é preliminar, uma vez que está calcado em um estudo ecológico, limitado a dados de grupo que não permitem análises mais aprofundadas de correlação. Entretanto, tais estudos geralmente são empregados para averiguar se existe uma indicação de associação entre causa e morbidade. Esta estratégia (a de se realizar inicialmente uma investigação ecológica) está condicionada à minimização dos esforços de tempo e recursos humanos, necessários para a realização de investigações com metodologias mais robustas. Por outro lado, trabalhar dentro da perspectiva de que somente tais estudos seriam cientificamente válidos acaba se tornando reducionista e impedindo o reconhecimento de grupos populacionais que podem estar sendo expostos a riscos crônicos e de interesse em saúde pública. Neste sentido, acredita-se que os resultados aqui descritos fornecem os subsídios iniciais para que investigações adicionais, mais aprofundadas e metodologicamente mais robustas, sejam posteriormente realizadas.
Um outro aspecto limitante do estudo diz respeito à própria condição etiológica do grupo de doenças conhecido como “neoplasias”. Neoplasias são morbidades multifatoriais, em que interações gene-ambiente estão presentes em maior ou menor grau, o que influi tanto no seu estabelecimento, quanto no tempo de duração pré-clínico e clínico. Esta heterogeneidade dificulta os estudos populacionais associativos por que indivíduos podem estar expostos a um agente carcinogênico em um dado período de tempo e esta morbidade se manifestar em diferentes períodos conforme o modo de vida e material genético da pessoa afetada. Neste sentido, estudos experimentais, principalmente que envolvem aspectos nutrigenômicos, do envelhecimento, da interação entre fatores protetores e ambientais, de desenvolvimento de marcadores diagnósticos de suscetibilidade, etc., estão cada vez mais sendo produzidos. Por outro lado, há também que se intensificar os estudos das variáveis ambientais, como é o caso da ação crônica de defensivos agrícolas, uma vez que, em nível de saúde pública, é o conjunto de evidências produzidas que permite o reconhecimento de grupos suscetíveis.
Conclusão
Apesar das limitações metodológicas relacionadas a estudos ecológicos, os resultados obtidos não descartam a influência de exposição de agrotóxicos como um fator contribuinte a maior taxa de mortalidade de neoplasias observadas na microrregião de Ijuí em relação ao Rio Grande do Sul e ao Brasil. Estudos adicionais necessitam ser conduzidos para corroborar esta hipótese.
Colaboradores
PFC Jobim coordenou a confecção do artigo, buscando os dados para a análise, fazendo a revisão da literatura e colocando nos moldes para publicação, além de revisar. LN Nunes realizou as análises estatísticas e confecção dos resultados. R Giugliani auxiliou na revisão do artigo. IBM Cruz coordenou a confecção do artigo, revisando periodicamente o trabalho do primeiro autor e auxiliando na revisão.
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versão impressa ISSN 1413-8123
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http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232010000100033
EcoDebate, 25/01/2013
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