Usinas de cana-de-açúcar certificadas com selo social são autuadas por violações de direitos trabalhistas
Unidades da multinacional Louis Dreyfuss e do Grupo Farias, maiores usinas do Rio Grande do Norte, sofrem atuações por exploração de trabalhadores
Por Verena Glass, da Agência de Notícias Repórter Brasil.
Dois dos maiores grupos do setor sucroalcooleiro atuantes no Brasil foram autuados, no último mês, por violações de direitos trabalhistas no Rio Grande do Norte. Entre os dias 7 e 16 de novembro, uma força-tarefa do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) inspecionou a usina Biosev, da multinacional francesa Louis Dreyfuss, em Ares, tendo lavrado 35 autos de infração, e a usina Vale Verde, do Grupo Farias (da família do ex-senador Antonio Farias) em Baia Formosa, lavrando 17 autos de infração. A força-tarefa também fiscalizou a fazenda Estreito, que fornece cana para a usina Biosev, lavrando 21 autos de infração.
As duas usinas constam na relação de unidades empresariais que cumprem o Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições te Trabalho na Cana-de-Açúcar, mantida pelo governo federal. O Compromisso foi criado em 2009 através de um acordo tripartite entre governo, usinas e sindicatos dos trabalhadores rurais com o objetivo de regularizar as relações trabalhistas no setor sucroalcooleiro. A Repórter Brasil tentou contato com os dois grupos empresariais, mas eles não se manifestaram em relação à fiscalização.
A Biosev, que tem 13 usinas em cinco estados e um terminal portuário em Guarujá (SP), foi criada em 2009 a partir da fusão da LDC Bioenergia, do grupo Louis Dreyfuss commodities (LDC), com a Santelisa Vale, uma das maiores empresas nacionais do setor sucroalcooleiro.
Plataforma enferrujada em usina da Biosev. Fotos: Divulgação/MPT
Apesar de afirmar em sua pagina na internet que “a saúde e a segurança de seus colaboradores são fatores de importância fundamental para a companhia”, a maioria das autuações se referem à falhas e precariedade dos sistemas de segurança no setor industrial, como “plataformas podres, com risco de queda e acidente, escadas e áreas de circulação que não atendem os preceitos normativos”, aponta o MPT.
De acordo com a procuradora regional do Trabalho, Ileana Neiva, porém, um dos problemas mais preocupantes encontrados na usina foi a falta de segurança para os aplicadores de agrotóxicos. “No campo, por exemplo, os aplicadores de veneno tiravam as roupas de proteção, penduravam num galho e iam comer, pra depois retomar o trabalho. Nesse meio tempo, as partes já contaminadas tinham contato com a parte de dentro das roupas, expondo os trabalhadores a graves riscos”, explica a procuradora.
Roupas usadas em aplicação de agrotóxico sujeitas à contaminação |
Uma análise dos prontuários médicos de 29 aplicadores de veneno na usina mostrou a ocorrência de problemas como aumento da atividade de colinesterase (enzima que regula os impulsos nervosos), um forte indicador da relação entre exposição a agrotóxico e problemas de saúde, e diminuição dos níveis de plaqueta (responsáveis pela coagulação do sangue), outro indício de contaminação por agrotóxicos. Segundo o medico e analista pericial que examinou os documentos da Biosev, também foram encontrados indícios de perda de audição em 79 trabalhadores em função da exposição a ruídos.
Na usina Vale Verde – parte do patrimônio empresarial de oito usinas e várias concessionárias de automóveis, entre outros empreendimentos, do Grupo Farias -, os problemas de falta de segurança também são graves. Na usina, os fiscais conversaram com o jovem trabalhador Felipe Alves da Silva, de 19 anos, que teve o polegar da mão direita amputado em função de um acidente ocorrido enquanto trabalhava no turno da noite, em local muito escuro, no carregamento de caminhões de cana. Segundo os trabalhadores, nesta atividade cada um tem que trazer sua própria lanterna, porque nem isso é fornecido pela empresa. O analista em Medicina do Trabalho que avaliou o caso, Felipe Rovere Reis, concluiu “pela incapacidade parcial definitiva para atividades laborais do jovem”.
A maior parte das autuações da Vale Verde, no entanto, se refere a violações de direitos trabalhistas no setor rural. Entre eles, a fiscalização detectou que a usina não concedia descanso semanal de 24 horas consecutivas aos trabalhadores do campo, mantinha empregado trabalhando durante o período destinado ao repouso ou alimentação, prorrogava a jornada legal de trabalho, obrigava os funcionários a trabalhar em feriados nacionais e religiosos, não concedia o mínimo de 11 horas consecutivas para descanso entre duas jornadas de trabalho, alterou condições ou cláusulas do contrato individual de trabalho sem o consentimento do empregado, entre outros.
Jovem perdeu polegar carregando cana à noite no escuro
Segundo a procuradora Ileana Neiva, as duas usinas também estariam tentando burlar direitos trabalhistas dos trabalhadores de campo para não pagar as horas de viagem entre as residências e o local de trabalho (horas “in itinere”). “O pagamento das horas in itinere consta da convenção coletiva firmada com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte (FETARN). Então as usinas passaram a negociar com o sindicato dos trabalhadores da indústria, que não cobra este pagamento, alegando que tratoristas e motoristas de colheitadeiras seriam trabalhadores industriais. Isso é um absurdo”, afirma a procuradora. As duas usinas sofreram autuações referentes a esta tentativa de fraude.
Certificação social
Para a procuradora Ileana Neiva, porém, o grande número de autuações e a gravidade das violações trabalhistas encontradas nas usinas é um forte indício de que há graves falhas na fiscalização do Compromisso. “É um absurdo usinas com tal grau de irregularidades serem agraciadas com o selo de conformidade do governo”, avalia a procuradora. Segundo ela, como o Compromisso Nacional inclui uma auditoria que aprovou as duas unidades em questão, passam a pesar dúvidas e questionamentos sobre a eficiência destes processos.
Outra questão que preocupa o MPT em relação ao Compromisso Nacional é a limitação dos acordos de proteção dos trabalhadores. “Quando o Compromisso foi assinado, os empregadores se negaram a assumir a alimentação dos trabalhadores. Isto é grave, já que os canavieiros muitas vezes são obrigados a comer alimentos azedados em função da longa exposição ao sol. Depois, eles comem um arroz com feijão, que não é suficiente para sustentar um trabalhador com tal exigência de esforço físico. O MPT entende que o fornecimento de alimentos balanceados e frescos deve ser uma obrigação dos empregadores, o que teria que ser incluído no Compromisso”, avalia.
Não é a primeira crítica do MPT em relação ao selo social. Em São Paulo, o procurador do trabalho Rafael de Araújo Gomes, chegou a pedir na Justiça a suspensão da divulgação e do uso do “selo de conformidade” apontando “problemas, falhas, equívocos e fraudes”.
De acordo com o MPT, depois da fiscalização foram realizadas audiências com as empresas investigadas, nas quais os procuradores propuseram a assinatura de termos de ajustamento de conduta (TACs) para sanar as irregularidades. A resposta das usinas deverá ser dada em audiência marcada para o dia 19 de dezembro, mas caso o compromisso não seja firmado o MPT/RN ajuizará ações civis públicas contra as usinas, inclusive com pedido de indenização pelo dano moral coletivo.
EcoDebate, 17/12/2012
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