Preservar a biodiversidade pode ser uma garantia à segurança alimentar global
Biodiversidade é arma para garantir segurança alimentar– Preservar a biodiversidade pode ser uma garantia à segurança alimentar global, hoje concentrada em um pequeno número de cultivos. “O que se come no mundo são poucos alimentos, basicamente trigo, arroz, mandioca, milho. Isso coloca a humanidade em grande risco”, alerta o biólogo Bráulio Ferreira de Souza Dias. “Se ocorrer uma doença em uma dessas culturas será um caos”, prossegue. “É preciso conservar a biodiversidade para uso futuro e para criar soluções a possíveis problemas.”
A reportagem e a entrevista é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 15-10-2012.
É disso que trata o encontro internacional que ocorre até sexta-feira em Hyderabad, na Índia. O brasileiro Bráulio Dias, ex-secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, é desde janeiro o secretário-executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU. A CDB, como é conhecida, é o acordo internacional que busca garantir a conservação e o uso sustentável da biodiversidade no mundo.
A exemplo de sua versão mais famosa, a Convenção sobre Mudança Climática, os países que assinaram a CDB também se reúnem regularmente para tentar estancar a vertiginosa perda de espécies no mundo. Delegados de 193 nações estão neste mês na Índia para, entre outras coisas, encontrar fontes de recursos que financiem a preservação. Em meio à crise financeira global, a pauta vive um impasse.
A conferência procura dar continuidade às decisões tomadas no encontro anterior, em 2010, no Japão. Ali se acertou o Protocolo de Nagoya e um conjunto de 20 metas para 2020 – as chamadas Metas de Aichi. Uma delas, por exemplo, mira a proteção de pelo menos 17% dos ecossistemas terrestres e de água doce, e 10% dos ecossistemas marinhos e costeiros do planeta. A estimativa é que isso custe US$ 600 bilhões se não existirem políticas que incentivem o uso sustentável dos recursos naturais.
O Protocolo de Nagoya dá as regras para o acesso e a repartição de benefícios da utilização de recursos genéticos da biodiversidade. É uma moldura legal básica que garante a quem preservou algum benefício sobre o uso econômico daqueles recursos naturais. Durante anos o debate opôs países ricos, donos das indústrias farmacêuticas e de cosméticos, a países em desenvolvimento donos de grandes florestas, como o Brasil.
Para entrar em vigor, Nagoya tem que ser ratificado por 50 nações – somente seis o fizeram até agora. No Brasil, a discussão sequer começou no Congresso, mas já há setores sensíveis ao debate. Um estudo recente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), um think tank do agronegócio, traçou um cenário hipotético onde o Brasil pode ter forte prejuízo se tiver que pagar um percentual pela produção de cana, soja e carnes aos países de origem desses produtos.
Dias diz que todos os setores econômicos perdem se a biodiversidade continuar a desaparecer no mundo e lembra que o Protocolo de Nagoya não especifica como será feito o pagamento, apenas reconhece que quem preserva merece ser remunerado. Os países decidirão caso a caso, a remuneração pode ocorrer como uma troca de sementes, de tecnologia, de capacitação e, portanto, qualquer estudo de perdas é uma especulação.
Eis a entrevista.
O campo pode perder com o Protocolo de Nagoya?
Há um contrassenso aí: quem diz que não quer pagar pela conservação da semente original é o mesmo que está disposto a pagar pelos royalties dos transgênicos? A origem das propriedades genéticas para os novos cultivares é a natureza, as companhias não fabricam genes. Elas apenas identificam o que tem nas espécies e que faz com que resistam, por exemplo, a pragas ou à seca. Isso não é fabricado em laboratório. Em laboratórios corta-se algo de um lugar e coloca-se em outro. Não interessa à agricultura conservar a variedade original e mantê-la para uso futuro? Por que estão dispostos a pagar royalties de coisas que podem fazer melhorias de sementes e não pagar pela fonte original? Há uma inconsistência nesse tipo de posicionamento.
Representantes do setor agrícola dizem que o campo não se beneficia da negociação que ocorreu. É verdade?
O setor agrícola tem que entender que a negociação envolveu todos os países-membros da Convenção da Biodiversidade, ou seja, 192 nações mais a União Europeia, um debate que durou seis anos e foi aprovado por unanimidade. É uma ilusão do setor agrícola achar que pode ficar fora dessas regras. Veja este exemplo: um país decide não ratificar o Protocolo em função do acesso aos benefícios. Mas digamos que precise ter acesso aos recursos genéticos de outro país para resolver problemas de uma doença nova em uma colheita. O consultado irá falar “está bem, mas quero que pague pelo critério de repartição de beneficio”. O país que pediu ajuda não é obrigado a pagar, mas também não terá acesso ao que precisa.
Já existe alguma regra que diga como quem ganha dinheiro com o uso econômico da biodiversidade pagará quem preservou?
No caso da repartição de benefícios os valores serão negociados bilateralmente. O Protocolo de Nagoya não define o valor a ser pago, não diz isso em nenhum lugar. O valor será negociado caso a caso. E um país não precisa necessariamente pagar em dinheiro, pode oferecer uma troca, por exemplo. Eu preciso de uma variedade de soja e ofereço, em troca, uma variedade de mandioca ou de caju, ou tecnologia. Não estamos falando só de dinheiro. Como isso será feito, será determinado pelas partes.
Quais setores da economia são impactados por Nagoya?
O princípio da repartição de benefícios foi acertado em 1992, na Rio92. O problema é que não foi implementado por falta de legislações nacionais, de clareza dos países de como interpretar essa cláusula. Em 2002 se aprovou uma resolução pedindo à CDB que negociasse o Protocolo. Foi decisão de todos os países e demorou muitos anos. O setor farmacêutico dos países ricos, por exemplo, tinha uma interpretação limitada dessa regra e até há pouco achava que não tinha nada a ver com repartição de benefícios. Agora, com o Protocolo de Nagoya, ficou claro que a indústria farmacêutica, que gera bilhões e desenvolve fármacos a partir de espécies de países tropicais, está dentro da regra.
Como o Brasil se coloca nessa equação?
O Brasil é tanto provedor como usuário de recursos genéticos. Não se faz nada na agricultura sem essa fonte. Em saúde também não se faz nada, em biotecnologia, na economia. Esses setores perderão muito se a biodiversidade continuar desaparecendo no mundo. A CDB garante que os países provedores de recursos naturais também se beneficiem do uso da biodiversidade. Se não se beneficiarem, quebra-se a lógica da conservação.
Porque conservar a biodiversidade é estratégico?
A natureza é um imenso banco de germoplasma, com muitas variedades de sementes. Mas a especialização crescente da agricultura criou um problema, concentrando a eficiência em um número menor de cultivos. O que se come hoje no mundo todo são poucos alimentos, basicamente trigo, arroz, mandioca, milho. Isso parece bom sob certas lógicas de eficiência, mas coloca a humanidade em grande risco. Se ocorrer uma doença em uma dessas culturas vai ser um caos em termos de segurança alimentar. É preciso conservar a biodiversidade para uso futuro e para criar soluções a possíveis problemas.
Que tipo de problemas?
A adaptação das culturas às mudanças do clima, por exemplo. Estudiosos desses impactos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), liderados pelo pesquisador Eduardo Assad, traçaram cenários futuros para a agricultura brasileira. Os resultados dos estudos são assustadores. Poucas culturas não serão muito impactadas, a cana-de-açúcar é uma delas. Mas o café, por exemplo, será afetado.
Quando o Protocolo de Nagoya entrará em vigor?
Precisa ter 50 ratificações de países. Esse é um processo interno complexo que pode exigir consultas à sociedade, um marco legal, o estudo de impactos. Leva um certo tempo. Mas já há seis países que o ratificaram – Jordânia, Gabão, Ruanda, Seychelles, México e Laos. Índia, Tailândia, Etiópia e a União Europeia dizem estar em fase final de estudos. Dos Estados Unidos não temos nenhuma sinalização, é o único pais que está fora da CDB. Isso não quer dizer que os EUA não acompanhem de perto todas essas discussões.
E a situação no Brasil?
O Brasil é um dos poucos países que têm legislação nacional, assim como a Austrália, a Índia, a África do Sul. É uma medida provisória de 2002. Mas faz parte da primeira geração de legislações nacionais, muito burocráticas e que não tinham por meta criar estímulos para a pesquisa, mas evitar a pirataria. Em junho, a presidente Dilma [Rousseff] enviou uma mensagem solicitando ao Congresso que discuta o assunto e ratifique o Protocolo. É bom lembrar que no processo de ratificação de acordos internacionais não se pode discutir modificação. Ou o país ratifica ou não. Nagoya remete para a legislação nacional uma série de questões e é ela quem vai decidir. Cabe a cada país cuidar de operacionalizar como vai ser.
Na Índia haverá alguma discussão sobre o Protocolo?
Não.
Está em pauta a discussão de financiamento para as metas de conservação até 2020. Mas os países ricos estão sem dinheiro…
Essa é uma discussão difícil, porque o mundo enfrenta situação de crise financeira. Na Índia há vários pontos na agenda. Um deles é a discussão sobre a mobilização de recursos financeiros para a implementação das metas de Aichi. Outro são os planos estratégicos 2011-2020, que irão incluir, por exemplo, a incorporação dos valores da biodiversidade nas contas nacionais e nos planos de desenvolvimento e de combate à pobreza.
Estão sendo estudados novos mecanismos de financiamento para garantir a preservação?
A ideia é tentar aproveitar mecanismos que já existem, como o GEF, o fundo global ambiental do Banco Mundial. Mas a ideia é ir muito além do GEF, inclusive com novos mecanismos de mercado.
Na CDB vale o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, ou seja, cabe aos ricos a maior parte da conta?
Sim, vale. Mas todos os países têm responsabilidade e podem fazer algum tipo de mobilização de recursos.
Como está a proteção da biodiversidade nos oceanos, tema muito discutido durante a Rio+20?
A biodiversidade marinha é uma agenda importante. O secretário-geral [da ONU] Ban Ki-Moon lançou recentemente uma iniciativa, a Oceans Compact, com foco na questão dos oceanos e que envolve todas as agências da ONU. Tem três objetivos: proteger as populações que dependem dos oceanos para sobreviver, conservar a biodiversidade marinha e ampliar o conhecimento sobre o melhor manejo dos recursos do mar. A CDB tem um plano de trabalho, desde 1995, que engloba questões que preocupam muito, como a pressão sobre os estoques de peixes. Já aprovamos metas para ampliar as áreas de proteção marinha.
Críticos dizem que a CBD toma decisões, mas é fraca na implementação. O que acha disso?
É verdade. Na minha gestão quero dar prioridade total à implementação. Os países já avançaram bastante em criar uma agenda de biodiversidade, já fizemos esforços muito grandes na parte normativa. Agora precisamos trocar experiências, apoio financeiro e capacitação. É hora de agir.
Como é a atuação dos empresários nessa agenda?
Há um forte engajamento do setor privado. Em Tóquio existe uma plataforma que reúne 500 empresas em uma iniciativa de biodiversidade e negócios. No Brasil também há iniciativas do gênero começando.
(Ecodebate, 16/10/2012) publicado pela IHU On-line, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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