Coronelismo Hídrico na Transposição das Águas do São Francisco, artigo de João Suassuna
[EcoDebate] Cenários controvertidos
A realidade hídrica, principalmente nos aspectos atinentes à oferta e uso das águas, é tema que, historicamente, tem marcado o debate sobre o Semiárido nordestino e motivado pesquisadores a buscarem compreender a relação existente entre o clima, o solo, a água e as plantas, bem como a sua importância para a população.
Após o agravamento da crise de abastecimento hídrico do Nordeste no ano de 1995, a transposição de águas do Rio São Francisco passou a ser vista como a única alternativa possível de solução para esse problema.
Atualmente, existem dois cenários bem definidos com relação ao tema: o primeiro, o do imediatismo, bastante difundido na classe política, caracterizado pela ânsia de fazer chegar água, a todo custo, às torneiras da população, sem haver, no entanto, preocupação com as conseqüências impostas ao ambiente ao se adotar essa alternativa; o segundo é o cenário da ponderação, caracterizado pela preocupação constante, principalmente no meio técnico, com as limitações das fontes hídricas nesse processo transpositório. O primeiro cenário diz respeito às questões do Brasil virtual ou oficial e, o segundo, às questões do Brasil real.
As observações realizadas nesse capítulo referem-se ao cenário do Brasil real.
Quantitativos hídricos
Para um tratamento mais adequado das questões hídricas do nosso planeta torna-se imperiosa a visualização da distribuição das águas nas suas diversas regiões.
O planeta Terra poderia ser chamado de planeta Água uma vez que possui, aproximadamente, 1.370.000.000 Km³ de água, distribuídos sobre 2/3 de sua superfície. Os mares e oceanos, constituídos de águas salgadas, representam 97% desse volume enquanto as águas doces correspondem a, apenas, 3% do total. Desse pequeno percentual de água doce, 2/3 encontram-se nas calotas polares, possuindo, portanto, água em estado sólido, não havendo, no momento, tecnologia disponível para ofertá-la às populações. O 1/3 restante, que corresponde a aproximadamente 1% do volume inicial, é o disponível para o consumo da população mundial, estimada hoje em cerca de 7 bilhões de pessoas.
O Brasil é um país privilegiado em termos de recursos hídricos, pois detém cerca de 12% da água doce que escoa superficialmente no planeta. Desses recursos, 72% estão localizados na bacia amazônica, região onde vivem menos de 8% da população nacional. O Nordeste brasileiro detém míseros 3%, 2/3 dos quais na Bacia do Rio São Francisco.
O quadro 1, a seguir, apresenta a disponibilidade per capita de água, em diversas regiões do planeta, inclusive no território nacional. Na primeira classe de disponibilidade (> do que 20.000 m³/hab/ano), encontramos todos os estados da região Norte do país, sendo Roraima o campeão em oferta de água. Dos estados nordestinos, localizados no Semiárido, apenas o Piauí encontra-se em situação confortável, pelo fato de fornecer volumes superiores a 5.000 m³/hab/ano, advindos da significativa riqueza de água em seu subsolo e do Parnaíba, grande rio perene que separa este Estado do Maranhão; a Bahia (em situação limite em termos de oferta, com fornecimentos volumétricos superiores a 2.500 m³/hab/ano), possui mais água do que o Estado de São Paulo, por ser beneficiária das águas do Rio São Francisco e possuir reservas subterrâneas em seu território, em áreas sedimentares esparsas, porém significativas. A situação dos demais estados nordestinos é preocupante (pobres em água, com fornecimento de volumes inferiores a 2.500 m³/hab/ano), com destaque para Paraíba e Pernambuco, campeoníssimos em baixa oferta hídrica para os seus habitantes, cabendo a este último o fornecimento de apenas 1.320 m³/hab/ano.
Quadro 1 – DISPONIBILIDADE DE ÁGUA
Disponibilidade hídrica per capita m³/hab./ano |
País |
Disponibilidade hídrica per capita m³/hab./ano |
Estado brasileiro |
Disponibilidade hídrica per capita m³/hab./ano |
Abundante > 20.000 Finlândia 22.600 Roraima 1.747.010 Suécia 21.800 Amazonas 878.929 Amapá 678.929 Acre 369.305 Mato Grosso 258.242 Pará 217.058 Tocantins 137.666 Rondônia 132.818 Goiás 70.753 MS 39.185 Rio G. do Sul 20.798 |
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Muito rico Maranhão 17.184 > 10.000 Irlanda 14.000 Sta. Catarina 13.662 Luxemburgo 12.500 Paraná 13.431 Áustria 12.000 Minas Gerais 12.325 |
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Rico > 5.000 Portugal 6.100 Piauí 9.608 Grécia 5.900 Espírito Santo 7.235 |
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Situação limite > 2.500 França 3.600 Bahia 3.028 Itália 3.300 São Paulo 2.913 Espanha 2.900 |
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Pobre Reino Unido 2.200 Ceará 2.436 <2.500 Alemanha 2.000 Rio de Janeiro 2.315 Bélgica 1.900 Rio G. do Norte 1.781 Distrito Federal 1.751 Alagoas 1.752 Sergipe 1.743 |
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Situação crítica Paraíba 1.437 <1.500 Pernambuco 1.320 |
Fonte: Secretaria de Recursos Hídricos de São Paulo, 2000
Fragilidade ambiental
Qual a razão dessa suposta miséria hídrica em boa parte dos estados nordestinos (estima-se no Semiárido uma população de cerca de 20 milhões de pessoas, 10 milhões das quais, no exacerbar de uma seca, passam sede e fome)? O grande responsável por toda essa adversidade é o próprio ambiente natural da região, principalmente por seus condicionantes climáticos e geológicos, agravado ainda pela ação inconseqüente de seus habitantes.
Geograficamente falando, o Nordeste brasileiro está localizado muito próximo à linha do equador (o Recife está situado a 8° graus de latitude Sul, e Fortaleza encontra-se a 3° graus). Isso significa que os raios solares incidem de forma perpendicular à linha do solo, fenômeno este que tem influência significativa não apenas nas elevadas temperaturas do ambiente (a média da região é de 26 °c), mas, e principalmente, na evaporação e na insolação (evaporam-se no Semiárido mais de 2.000 mm/ano e a região dispõe de mais de 2.800 horas de sol/ano).
Apesar de sofrer a influência de diversas massas de ar formadoras de seu clima (Equatorial Atlântica, Equatorial Continental, Tépida Atlântica, Tépida Kalaariana e Polar), o Nordeste tem clima semiárido em mais da metade de sua área, porquanto, essas massas de ar adentrarem a região com pouca energia, trazendo conseqüências danosas não apenas pelo baixo volume de chuvas caídas, mas também pela periodicidade irregular dessas precipitações. O quadro 2, a seguir, citado por Guimarães Duque, em seu livro O Nordeste e as Lavouras Xerófilas, mostra a irregularidade na caída das chuvas no município de Souza, na Paraíba, em anos considerados secos. Nele observa-se que, em 1941, o total de precipitações foi de 674 mm, das quais, 309 mm, ou seja, 45% do total anual, acontecendo no mês de março, chovendo, em um único dia, 125 mm, ou seja, 40% do que choveu durante todo o mês. Esse aspecto bem caracteriza a anormalidade climática da região, tendo a mesma voltado a se repetir nos anos de 1942, 1951, 1953 e 1958.
Quadro 2 – IRREGULARIDADE NA CAÍDA DAS CHUVAS
Paraíba – Município de Souza – Açude de São Gonçalo
Ano de 1941 (considerado seco)
Chuva total do ano Chuva total do mês de março Chuva total do dia 6 de março |
674 mm
309 mm (45% do ano) 125 mm (40% do mês) |
Ano de 1942 (considerado seco)
Chuva total do ano Chuva total do mês de abril Chuva total do dia 10 de abril |
468 mm
207 mm (44% do ano) 93 mm (44% do mês) |
Ano de 1951 (considerado seco)
Chuva total do ano Chuva total do mês de abril Chuva total do dia 23 de abril |
726 mm
317 mm (43% do ano) 115 mm (36% do mês) |
Ano de 1953 (considerado seco)
Chuva total do ano Chuva total do mês de março Chuva total do dia 26 de fevereiro |
563 mm
254 mm (45% do ano) 113 mm |
Ano de 1958 (considerado seco)
Chuva total do ano Chuva total do mês de março Chuva total do dia 28 de março |
535 mm
275 mm (51% do ano) 127 mm (46% do mês) |
Fonte: O Nordeste e as Lavouras Xerófilas, Guimarães Duque (1980)
Ainda com relação às secas, outros fenômenos merecem ser citados: o El Niño, caracterizado pelo aumento de temperatura no Pacífico, próximo às costas do Peru, que provoca deslocamentos de correntes aéreas entre os Estados de São Paulo e Paraná, impedindo a subida das frentes frias oriundas da região polar, interferindo nas precipitações do Nordeste; a variação nas temperaturas do Atlântico, nas suas partes norte/sul, próximas ao litoral nordestino, que também exerce influência significativa na caída das chuvas na região, havendo possibilidades de bom período chuvoso, quando as temperaturas na sua parte sul encontram-se mais elevadas, quando comparadas àquelas de sua parte norte.
Com relação à geologia, no Nordeste existem dois grandes conjuntos estruturais: o Escudo Cristalino e as Bacias Sedimentares.
O Escudo Cristalino, que representa cerca de 70% da área semiárida nordestina, é constituído por solos geralmente rasos, nos quais as rochas que lhes dão origem estão praticamente à superfície, chegando a aflorar em alguns pontos. Essas características resultam em baixa capacidade de infiltração de água nesses solos e, por conseguinte, alto escoamento superficial e reduzida capacidade de drenagem natural. As únicas possibilidades de existência de água nesse tipo de estrutura encontram-se nas fraturas das rochas cristalinas e nos aluviões próximos a rios e riachos. As fontes hídricas, em tais condições, normalmente têm baixa vazão e, como se isso não bastasse, as águas são extremamente ricas em sais. São águas salinizadas.
Um rio que corre sobre o embasamento cristalino apresenta-se, na época das chuvas, com muita água, e, dependendo do volume precipitado, com enchentes descomunais. Uma vez encerradas as chuvas, volta ao seu leito normal, diminuindo a vazão paulatinamente e, em determinada época do ano, interrompe o seu curso. É um rio temporário. O melhor exemplo a ser citado de um rio que corre sobre o escudo cristalino, na região semiárida, é o Jaguaribe, no Ceará, considerado o maior rio seco do mundo (atualmente, esse rio encontra-se perenizado pelas águas das represas de Orós e do Castanhão).
Diante dessas características do ambiente cristalino, entendem-se as razões que possibilitaram uma verdadeira corrida para a construção de açudes nessa região. Hoje é estimada, no Nordeste, a existência de mais de 70.000 açudes, que são responsáveis pelo represamento de cerca de 37 bilhões de m³ de água. É o maior volume de água represada em regiões semiáridas, no mundo, embora pese, sobre a região, uma triste estatística: as 25 maiores represas têm capacidade de acumular cerca de 18 bilhões de m³, mas apenas 30% desse volume são utilizados na irrigação e no abastecimento das populações. Os 70% restantes perdem-se com a evaporação.
No entorno do Castanhão, no Ceará, a maior represa do Nordeste, com capacidade de acumular 6,7 bilhões de m³ de água, por exemplo, populações inteiras encontram-se desabastecidas. Por sua vez, a Represa Armando Ribeiro Gonçalves, a segunda maior do Nordeste, localizada no município de Açu, no Rio Grande do Norte, com capacidade de acumular 2,4 bilhões de m³, é subutilizada. Estima-se que tenha condições de abastecer toda a população potiguar nos próximos 20 anos, se considerado um consumo médio de 200 litros/pessoa/dia.
Mesmo sendo portadoras de riquezas volumétricas significativas, está previsto o abastecimento, de ambas as represas acima citadas, com as águas oriundas do São Francisco, pelo projeto transpositório atualmente em curso. Se observada a situação de penúria hídrica em que se encontra todo o Seridó potiguar, região onde existem reais necessidades de abastecimento e que não foi contemplada com uma gota sequer das águas do Velho Chico, esse fato pode ser comparado a uma chuva que se precipita no molhado.
Já nas Bacias Sedimentárias, as condições naturais são opostas àquelas do Escudo Cristalino. Normalmente, são caracterizadas pela existência de solos profundos, porosos, com alta capacidade de infiltração, baixo escoamento superficial e boa drenagem natural. Essas características possibilitam a existência de um grande suprimento de água, de boa qualidade, no lençol freático dessas bacias, percolado e gradativamente drenado para os talvegues das mesmas e influenciando positivamente na formação das vazões de base dos rios. No Nordeste, esse conjunto sedimentário está localizado em cerca de 30% da região semiárida. Pelo fato de representar um percentual muito pequeno, em relação à área total do Nordeste, vale aqui um alerta: não é conveniente que se extrapolem os exemplos de riquezas hídricas existentes nas áreas sedimentárias para o Nordeste como um todo. São recursos hídricos importantes, sem a menor sombra de dúvidas, mas essas águas devem ser exploradas com eficácia e parcimônia, evitando-se desperdícios, como os do município de Cristino Castro, região do Vale do Gurguéia, no sul do Piauí, onde poços jorram noite e dia, sem que suas águas sejam utilizadas.
Quais as características de um rio que tem seu leito sobre o sedimentário? Pelo fato de ocorrerem infiltrações significativas e boa drenagem natural nos solos, os rios, em tais circunstâncias, têm constantemente seus volumes enriquecidos pelas vazões de base, drenadas para os talvegues, tornando-se perenes. Nesse aspecto, o melhor exemplo é conferido ao Rio Parnaíba, localizado na fronteira entre os Estados do Piauí e Maranhão.
Aldo da Cunha Rebouças, de saudosa memória, no trabalho “Panorama da Degradação do Ar, da Água Doce e da Terra no Brasil”, publicado em 1997 através do CNPq, entre outras análises, mostra os quantitativos volumétricos existentes no subsolo dos principais domínios hidrológicos do Brasil. Nesse trabalho, são destacados os volumes existentes nas Bacias Sedimentares nordestinas, bem como aqueles existentes no seu escudo cristalino. O quadro 3, a seguir, evidencia a grande diferença volumétrica existente entre os referidos domínios, cabendo ao escudo cristalino (600.000 km² de área), pertencente ao aqüífero principal Zonas Fraturadas, um volume estimado de apenas 80 km³, enquanto na Bacia Sedimentar do Maranhão (700.000 km² de área), pertencente ao aqüífero principal Arenito Itapecuru, Ar. Cordas-Grajaú, Ar. Motuca, Ar. Poti-Piauí, Ar. Cabeças e Ar. Serra Grande, um volume significativamente maior, estimado em cerca de 17.500 km³ de água. Esses dados mostram que aproximadamente 70% das águas de subsolo existentes no Nordeste estão localizadas nas bacias sedimentárias dos Estados do Maranhão e do Piauí.
Levando esses conceitos em consideração, ao ser analisada a transposição de águas em si, observa-se que o Rio São Francisco corre, por toda a extensão do Semiárido (estima-se em cerca de 60% de sua área), sobre uma geologia cristalina. Esse fato faz com que a maioria de seus afluentes apresente, nessa região, regimes temporários, o que resulta em significativas limitações de vazão, no período de estiagem. Esse aspecto condiciona ao rio uma vazão média histórica da ordem de 2.800 m³/s.
O rio tem aproximadamente 2.800 km de extensão, entre o seu nascedouro, na Serra da Canastra (MG), e a sua foz, entre o pontal do Peba (AL) e a praia do Cabeço (SE). Ele é subdividido em Alto (da Serra da Canastra até Pirapora), Médio (de Pirapora até Remanso), Submédio (de Remanso até Paulo Afonso) e Baixo São Francisco (de Paulo Afonso até o Oceano Atlântico), sendo a sua parte Alta responsável por cerca de 70% dos volumes da bacia e de tudo o que se reflete ao longo de todo o rio. É lá onde ocorrem as precipitações que irão abastecer a Represa de Sobradinho, responsável direta pela regularização da vazão do rio; é onde são formadas as cheias necessárias para manutenção da vida na sua parte ribeirinha; é onde a pesca e a navegação se fazem com maior intensidade e é, portanto, a região que deveria receber um tratamento diferenciado por parte de nossas autoridades, o que, na realidade, não vem acontecendo.
Quadro 3 – Principais Domínios Hidrogeológicos, Reservas de Água Doce Subterrânea e Intervalo de Vazão de Poços no Brasil.
Domínio Aqüífero | Área
(km²) |
Sistema Aqüífero
Principal |
Volume
d’água (km³) |
Intervalo Vazão de Poço
(m³/h) |
Substrato Aflorante | 600.000 | Zonas fraturadas | 80 | < 1 – 5 |
Substrato Alterado | 4.000.000 | Manto rochas alteradas
e/ou fraturas |
10.000 | 5 – 10 |
Bacia Sedimentar Amazonas | 1.300.000 | Ar. Barreiras
Ar. Alter do Chão |
32.500 | 10 – 400 |
Bacia Sedimentar
São Luís/Barreirinhas |
50.000 | Ar. São Luís
Ar. Itapecuru |
250 | 10 – 150 |
Bacia Sedimentar
Maranhão |
700.000 | Ar. Itapecuru
Ar. Cordas-Grajaú Ar. Motuca Ar. Poti-Piauí Ar. Cabeças Ar. Serra Grande |
17.500 | 10 – 1000 |
Bacia Sedimentar
Potiguar – Recife |
23.000 | Ar. Barreiras
Calcário Jandaíra Ar. Açu-Beberibe |
230 | 5 – 550 |
Bacia Sedimentar
Alagoas – Sergipe |
10.000 | Ar. Barreiras
Ar. Marituba |
100 | 10 – 350 |
Bacia Sedimentar
Jatobá-Tucano-Recôncavo |
56.000 | Ar. Marizal; Ar. Tacaratu;
Ar. São Sebastião |
840 | 10 – 500 |
Bacia Sedimentar
Paraná (Brasil) |
1.000.000 | Ar. Baurú-Caiuá Basaltos
S.Geral; Ar. Furnas/Aquidauana Ar. Botucatu-Piramboia-R.Branco |
50.400 | 10 – 1700 |
Depósitos Diversos | 773.000 | Aluviões, dunas | 411 | 2 – 40 |
Totais | 8.512.000 | 112.000 |
Fonte: Panorama da Degradação do Ar, da Água Doce e da Terra no Brasil, Aldo Cunha Rebouças, 1997
Após todos esses dados anteriormente comentados, percebe-se o quanto o Nordeste semiárido é frágil em termos ambientais, provavelmente não existindo, com tais características, outra região similar em zonas tropicais de todo o mundo. Acrescentem-se a essas questões, um quantitativo populacional que não para de crescer, secas sucessivas e uma total falta de planejamento, por parte de nossas autoridades, do uso dos recursos hídricos… O resultado é o que estamos presenciando atualmente no Nordeste: municípios de certo porte como Caruaru (PE) e Campina Grande (PB), por exemplo, com racionamentos de água significativos; cidades como Arcoverde (PE) e Bezerros (PE) com colapso no abastecimento e em estado de calamidade pública, havendo necessidade da intervenção do governo, através do uso de carros-pipa e do envio de composições ferroviárias carregadas com 300.000 litros de água para o abastecimento das populações. E ainda, o exemplo mais marcante, a cidade do Recife, com mais de 3 milhões de habitantes em sua região metropolitana, que chegou a ter, em alguns bairros, racionamento de 9 dias seguidos sem água. Essa situação de Recife é lamentável, porquanto a cidade se encontra sobre uma geologia sedimentária riquíssima em água (aqüífero Beberibe) e localizada numa região onde chove, em média, 1.800 mm/ano.
O Projeto
Para resolver o problema de suposta escassez hídrica do Nordeste, coube ao governo federal elaborar uma proposta, que consiste no transporte de águas do Rio São Francisco para as regiões necessitadas, aproveitando o potencial de oferta hídrica supostamente disponível no rio (o Nordeste possui apenas 3% de toda a água doce existente no país, 2/3 dos quais se encontram na Bacia do São Francisco), conforme comentado no início deste relato.
O plano de usar as águas do Rio São Francisco para resolver tais problemas, nos Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, remonta ao século XIX, quando, em 1886, o engenheiro Tristão Franklin Alencar de Lima cogitou, pela primeira vez, essa hipótese. Desde então, muitas outras propostas surgiram, sem que, no entanto, nenhuma tivesse sua eficácia comprovada a ponto de justificar sua execução.
Outras alternativas foram postas em prática pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e pelo Departamento Nacional de Águas e Energia (DNAE), entre outros, mas não vieram a prosperar. Cogitou-se, inclusive, a interligação da Bacia do Tocantins com o Velho Chico. No final da década de 80, um outro projeto fracassou, dessa vez idéia do então ministro da Integração Regional, Aloísio Alves (1985-1989), que sugeria transportar 280 m³/s de água do São Francisco para quatro estados nordestinos.
A proposta atual prevê, em duas tomadas d’água, a retirada de 127 m³/s: a partir da cidade de Cabrobó (PE), eixo Norte (de onde serão bombeados até 99 m³/s) e do Lago de Itaparica (BA), eixo Leste (de onde sairão os 28 m³/s restantes). No Ceará, o Rio Jaguaribe e as Bacias Metropolitanas de Fortaleza já foram interligadas pelo Canal da Integração, transportando as águas do Castanhão. No Rio Grande do Norte, os rios beneficiados serão o Apodi e o Piranhas-Açu. Na Paraíba, as águas do Velho Chico alimentarão as vazões dos Rios Piranhas e Paraíba. Em Pernambuco, os Rios Brígida, Moxotó e, mais recentemente o Ipojuca, serão contemplados.
Para as águas alcançarem as vertentes dos referidos estados, terão que ser elevadas a 164 metros de altura, no eixo Norte, e 304 metros no eixo Leste; terão ainda que passar por túneis e aquedutos e percorrerem cerca de 700 quilômetros de canais e rios a céu aberto, com perdas por evaporação e infiltração. Porém, segundo as autoridades, o bombeamento não seria contínuo, pois o objetivo do projeto visa tão somente suprir alguns açudes para compensar a água evaporada (sinergia hídrica), abastecendo cerca de 12 milhões de pessoas e irrigando cerca de 350 mil hectares de terra, a 500 km de distância das margens do rio.
Com os múltiplos usos existentes, e levando em conta as características ambientais locais de sua bacia, é de se esperar que o rio São Francisco já não tenha mais condições de suprir os volumes que serão demandados pelo projeto. Com vistas ao esclarecimento dessa afirmativa, é necessário tecermos alguns comentários sobre a situação em que se encontra a Bacia do Velho Chico, na atualidade.
Rio doente
A Bacia do rio São Francisco abrange uma área aproximada de 640.000 km², em que existem cerca de 504 municípios, dos quais 97 em suas margens, e uma população estimada em cerca de 14 milhões de pessoas.
A primeira questão a ser observada é a poluição existente em suas águas: com a deficiência no sistema de tratamento de esgotos na região, pode-se imaginar as conseqüências ambientais advindas do despejo diário dos efluentes domésticos, desse significativo contingente populacional, na calha do rio. A grande Belo Horizonte, por exemplo, despeja diariamente seus esgotos – domésticos e industriais – no Rio das Velhas e no Paraopeba, importantes afluentes do São Francisco. Trata-se de um problema de saúde pública que terá que ser solucionado, antes mesmo de se fazer uso de suas águas.
Os desmatamentos indiscriminados são outro fator que merece atenção especial. As siderúrgicas mineiras consomem anualmente cerca de 6 milhões de toneladas de carvão vegetal, 40% dos quais oriundos das matas nativas da região. A remoção dessa biomassa para uso industrial tem causado danos significativos ao ambiente: estima-se que 75% das florestas nativas do Estado de Minas Gerais, bem como 95% das matas ciliares da Bacia do São Francisco tenham sido destruídas.
A expansão da fronteira agrícola, no Noroeste mineiro e em todo o Oeste baiano, principalmente com o plantio do café e da soja irrigados, é outro fator que tem causado danos significativos ao rio São Francisco. Em regiões que possuem uma malha fluvial importantíssima para a regularização da vazão do rio, os desmatamentos praticados, principalmente nas cabeceiras de alguns de seus afluentes, têm ocasionado, com certa freqüência, mortes de nascentes, com conseqüente diminuição das vazões de base do Velho Chico, como ocorreu recentemente com os rios Cabeceira Grande, Sucuriú, Capão e Ribeirão do Salitre, todos pertencentes à Bacia do Rio Corrente, importante tributário do São Francisco, no Sudoeste baiano. Desprovida de vegetação ciliar, as margens desses rios ficam sujeitas à erosão, trazendo, como conseqüência, assoreamentos em seus leitos, o que dificulta a navegação. Estima-se que sejam carreados anualmente para o leito do São Francisco, cerca de 18 milhões de toneladas de solos, volume equivalente a 2 milhões de caminhões-caçambas. As balsas que atravessavam o rio, na altura de São Romão (MG) foram impedidas de navegar, devido à formação de bancos de areia naquela localidade, obrigando os usuários a transferir a travessia para um pequeno lugarejo à sua montante, denominado Cachoeira do Manteiga.
Estes comentários são importantes, como formadores de opinião sobre a realidade da região sanfranciscana, e mostram a necessidade de se empreenderem ações estruturadoras e revitalizadoras no rio, muito antes de se dar início à transposição de suas águas.
Ações antrópicas
Dois aspectos importantes que devemos levar em consideração para o entendimento da situação em que se encontra a Bacia do São Francisco estão relacionados com as ações desenvolvimentistas realizadas pelo homem. O primeiro diz respeito à exploração do potencial irrigável do rio, estimado em cerca de 3 milhões de hectares, 340 mil hectares dos quais já implantados, ao longo de toda sua bacia. Considerando-se, para fins de cálculo do consumo de água, 0,5 litro por segundo para irrigar 1 hectare, a exploração dessa área já utiliza atualmente cerca de 170 m³/s das águas do rio.
O outro aspecto a ser considerado diz respeito à implantação do programa de eletrificação do Nordeste pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). A um custo estimado em cerca de 13 bilhões de dólares, a Chesf, ao longo de mais de seis décadas, explorou, com muita competência e através da saga de um povo, todo o potencial gerador do rio, contando a região, atualmente, com cerca de 10 mil MW de potência instalados. Todo o complexo gerador da Chesf utiliza do São Francisco, uma vazão mínima garantida pela represa de Sobradinho, de aproximadamente 2.060 m³/s, valor este que, devido aos usos indiscriminados das águas do rio, vem caindo. Em recentes aferições de vazões em sua foz, foram registrados valores médios da ordem de 1.850 m³/s.
A construção das represas das usinas geradoras acarretou enormes problemas para a atividade pesqueira da região. As espécies de piracema estão desaparecendo do rio, devido à impossibilidade que têm os peixes de fazerem o seu trajeto natural de subida das corredeiras para a realização das desovas. Ademais, as águas no interior das represas tiveram a turbidez e a temperatura modificadas, confundindo a fisiologia das fêmeas e abortando as desovas.
Ainda com relação às represas das usinas geradoras de energia, frequentemente estão sendo lançados de Sobradinho, cerca de 1.100 m³/s de água, volume inferior ao determinado pelo IBAMA, que estipulou uma vazão mínima ecológica de cerca de 1.300 m³/s até a foz do rio. Esse fato desperta críticas muito fortes, por parte dos habitantes das localidades ribeirinhas, os quais alegam que o rio está correndo com pouca água. A captura de peixes de espécies marinhas, como o camurim e o xaréu, em localidades distantes do estuário do rio, como vem ocorrendo com certa freqüência no município de Porto Real do Colégio (AL), a aproximadamente 100 km de sua foz, vem fortalecendo essas críticas. Ora, se o peixe de água salgada consegue adentrar a uma distância de 100 km do seu habitat natural, é porque os níveis de sal nas águas do São Francisco estão tão elevados que possibilitam a formação de um ambiente favorável à sobrevivência de tais espécies. Diante desse fato, está-nos parecendo que as incursões das águas do mar para o interior do rio estão sendo maiores do que as incursões naturais das águas do rio em direção ao mar. Em outras palavras, o rio São Francisco está perdendo essa luta.
Águas comprometidas
A irrigação de 340 mil ha praticada atualmente no Vale do São Francisco (e essa área cresce em cerca de 4% ao ano), já representa comprometimentos potenciais de cerca de 170 m³/s da vazão média histórica do rio, que é de 2.800 m³/s. Acrescente-se a esse fato, a avaliação técnica realizada no Recife, em 2004, pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, segundo a qual o Rio São Francisco já não possui vazões suficientes para atendimento das necessidades do projeto. O rio é detentor de uma vazão alocável (aquela permitida para usos consuntivos) de apenas 360 m³/s, dos quais 335 m³/s se encontram outorgados (já com direito de uso desses volumes), sendo efetivamente utilizados 91 m³/s. Portanto, o que resta no rio é um saldo de apenas 25 m³/s para ser utilizado em um projeto cuja demanda média é de 65 m³/s, podendo chegar a uma demanda máxima de 127 m³/s. As autoridades insistem em afirmar que a vazão de 25 m³/s é irrisória (cerca de 1%) se comparada ao volume regularizado do rio, de cerca de 1.850 m³/s em sua foz. Sobre essa questão, a SBPC sugere que os cálculos sejam efetuados utilizando-se os volumes alocáveis do rio (os 360 m³/s) e não os da sua vazão regularizada na foz (os 1.850 m³/s). Levando-se em consideração os volumes alocáveis e seus usos efetivos, teremos: 360 – 91= 269 m³/s, ou seja, os 65 m³/s médios do projeto representam cerca de 25% e, a demanda máxima, (os 127 m³/s), 47% dos volumes alocáveis, respectivamente.
A geração de energia
Em finais de 1999, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) já havia explorado praticamente todo o potencial gerador do Rio São Francisco. Naquela ocasião, a potência implantada na região era cerca de 10 mil MW, com poucas chances de ampliação desse potencial. Essa potência instalada gera anualmente cerca de 50 milhões de MW/h. Se considerarmos o crescimento atual do PIB nordestino entre 4 e 6% ao ano, isso significa que a sua demanda de energia elétrica está no patamar entre 6 a 8% ao ano (o crescimento da demanda elétrica se dá 2% acima do crescimento do PIB). Considerando esses aspectos, em 12 anos haveria necessidade de se dobrar a produção de energia do Nordeste para satisfazer a demanda de energia elétrica da região e, por conseguinte, assegurar o nosso desenvolvimento. Ao invés de 50 milhões de MW/h, teríamos que, necessariamente, estar gerando, no ano de 2011, cerca de 100 milhões de MW/h. A pergunta que não quer calar é a seguinte: como gerar essa energia, tendo em vista a impossibilidade de se ampliar o potencial gerador do São Francisco? Lembramos que para cada m³/s de água retirado do rio, anualmente deixam de ser gerados 22 milhões de KW/h. Essa energia que deixa de ser gerada em cada m³/s é suficiente para eletrificar uma cidade de 35 mil habitantes.
As questões da geração de energia no Nordeste são de deixar qualquer pessoa que tenha o mínimo de bom-senso em verdadeiro estado de pânico. Como se sabe, o rio São Francisco é responsável por cerca de 95% da energia que é gerada na região. Com relação a esse aspecto, criou-se uma situação inédita no país, que ainda não foi suficientemente dimensionada pela opinião pública nacional. Em tempos de paz, nenhum governo do mundo jamais colocou o seu país sob risco tão alto como o que se verificou no Brasil na época dos racionamentos de energia. Naquele período, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) fez previsões de acumulações volumétricas nos reservatórios das hidrelétricas no Nordeste, para o mês de novembro de 2001 (período mais crítico do racionamento de energia), de um percentual de apenas 10% preenchidos (naquele ano foi registrado para Sobradinho, um volume útil de apenas 5%). Naquela ocasião, afirmou a ONS, a normalização de todo o sistema de acumulação estaria na dependência de verdadeiros dilúvios bíblicos na bacia, fato pouco provável nas nascentes do São Francisco, nos meses de agosto, setembro e outubro. Do mês de julho até o início de agosto de 2001, operou-se com cerca de 18% do preenchimento dos reservatórios. Talvez as autoridades de então não soubessem do risco que esse fato poderia acarretar para o funcionamento do sistema gerador de energia do Nordeste pois, se os percentuais tivessem atingido os 10% dos volumes, conforme previstos pela ONS, teria acontecido um desastre de proporções incalculáveis. As turbinas instaladas no Brasil são programadas para gerar energia em 60 hertz, ou seja, com 60 ciclos por segundo, e só podem fazê-lo nessa freqüência, pois todas as máquinas, equipamentos e eletrodomésticos instalados no país estão ajustados a ela. Isso exige que as turbinas mantenham, com estabilidade, uma certa velocidade de rotação. Quando a coluna d’água diminui devido ao esvaziamento dos reservatórios, o peso da água também diminui e o fluxo se torna menos estável, exigindo que as turbinas façam mais esforço para manter a rotação programada. Se o esforço for excessivo, os sistemas de proteção entram em ação automaticamente, interrompendo a geração. Essas condições predispõem o sistema para os apagões, ou seja, ocorrem quedas súbitas e descontroladas de energia, que podem ser seqüenciais, por sobrecarga. Foi o que ocorreu em toda a região sudeste do País em princípios de 1999. Se o nível de 10% dos reservatórios tivesse sido atingido naquele ano, o sistema elétrico brasileiro, que já foi referência mundial, não teria mais confiabilidade operacional. Em vez de reconhecer a gravidade da crise e trabalhar para enfrentar o pior cenário, o governo federal, na época, resolveu apostar nas providências celestiais. São Pedro foi o primeiro a ser culpado pela crise energética que desestabilizou a vida de todos os brasileiros. Aos poucos, especialistas verificaram que, de fato, a baixa pluviometria havia se acentuado, mas comprovaram, também, que apenas a falta de chuvas, não podia ser responsabilizada pelo risco e pelo custo social e econômico do apagão. Em meio ao embate político e jurídico, rastreou-se também a culpa da queda dos investimentos na geração e nas linhas de transmissão de energia, no modelo de privatização das companhias geradoras, e da dependência da produção nacional de energia, na sua grande maioria, de fontes hidrelétricas (no Brasil, mais de 80% da energia elétrica gerada são provenientes de hidrelétricas). Em resumo, o que se presenciou naquela ocasião foi a ausência quase que completa de “planejamento” e de “gestão” do setor elétrico.
Uma vez resolvida a crise energética daquele ano, com a atuação exemplar do Ministério do Apagão, criado exclusivamente para solucionar os problemas existentes no setor elétrico, é importante destacar a lição que aquele momento difícil trouxe para o país: com planejamento, coordenação e envolvimento da opinião pública, é possível obter resultados expressivos em qualquer área do conhecimento. No caso em questão, foi definido um objetivo: a redução do consumo de energia. Depois, definiu-se uma meta: reduzir em 20% o consumo dos brasileiros e, posteriormente, definiram-se as ações, com cada consumidor recebendo a sua meta de consumo de energia. Os responsáveis por essas ações no Ministério, ao divulgarem semanalmente os resultados obtidos, ajudaram a criar o necessário envolvimento de toda a população, tornando possível, com a adoção desse plano, livrar o país dos chamados apagões.
E foi exatamente nesse cenário de seca no Nordeste e, conseqüentemente, de descompassos nos preenchimentos volumétricos das represas e da necessidade de se racionar energia, que o governo federal apostou todas as suas fichas no projeto de transposição do rio.
A água necessária
Como comentado, em agosto de 2004, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em parceria com o governo do Estado de Pernambuco, realizou um encontro internacional no Recife, para discutir transferência de águas entre grandes bacias hidrográficas. Nele, as vazões do rio São Francisco foram exaustivamente analisadas. Resultou dessa reunião, que contou com a participação de cerca de 40 expoentes da hidrologia nacional, a proposta de realização de uma infraestrutura hídrica no Nordeste, com vistas a serem utilizadas as águas interiores da região. Nesse sentido, houve consenso entre os técnicos presentes sobre a idéia de se começar a executar os projetos estruturais, partindo-se das bacias receptoras de jusante (estados receptores) para a bacia exportadora de montante (bacia do São Francisco), através do uso integrado do potencial hídrico existente em cada um dos estados envolvidos no projeto, da otimização das disponibilidades de água e da confirmação de demandas, de modo a assegurar que o projeto de transposição do São Francisco se constituísse numa alternativa complementar e não implicasse no abandono ou mesmo na subutilização de fontes locais de água, garantindo intervenções capilares de ponta, que propiciam efeitos benéficos nas bacias. Ficou claro, portanto, que é preciso, em primeiro lugar, se formar a infraestrutura hídrica necessária ao desenvolvimento das regiões receptoras, para, no futuro e dependendo das necessidades, se estabelecer um processo coerente de recebimento das águas do São Francisco.
Essa forma de enxergar o uso das águas do rio pelos hidrólogos participantes da reunião, bem traduz as deficiências volumétricas atualmente existentes na bacia do Velho Chico, para o atendimento das demandas previstas no projeto transpositório de suas águas.
Outra questão que tem que ser aqui evidenciada, é que não é proibida a utilização das águas do rio São Francisco para fins de abastecimento humano e dessedentação de animais, em regiões fora dos limitas de sua bacia hidrográfica (águas de transposição). O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), ao elaborar o Plano Decenal de uso de suas águas, assegurou essa utilização. No documento, apenas colocou como condicionante, a exigência da comprovação da escassez hídrica da região a ser beneficiada. Nesse sentido o projeto da transposição em curso, deveria está sendo realizado através de adução de suas águas para abastecimento (com uso de tubulações) e não através de sua condução em canais super dimensionados, os quais, sabemos, irão beneficiar única e tão somente o grande capital. É uma espécie de coronelismo hídrico, no qual as autoridades impõem “goela abaixo” um projeto, cujos benefícios serão auferidos pelos grandes irrigantes, criadores de camarão e industriais de uma maneira geral. A população carente nordestina, principalmente aquela residente de forma difusa na região semiárida, não terá acesso a uma gota sequer da água do Velho Chico. Para nós, é a perpetuação da indústria da seca.
Alternativas de solução
Diante desse quadro não muito confortável, como fazer para dar segmento ao planejamento de uso das águas interiores nordestinas? Inicialmente, poder-se-ia fazer cumprir o que determina o artigo 21 da Constituição de 1988, no seu inciso XIX, que estabelece a competência da União em instituir um sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso. Alguns estados vêm trabalhando muito nos últimos anos para incorporar esses princípios em suas legislações e políticas públicas, criando conselhos estaduais, comitês de bacias, grupos de usuários de água. Embora tenhamos uma lei federal que fixa os fundamentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei 9433, de 08/01/1997) e tendo sido criado pelo governo federal o CBHSF, o fato é que pouco se avançou na incorporação dos princípios que definem esse novo quadro institucional no país. A lei do Estado de São Paulo, de 1991, foi a primeira e serviu de base para a Lei das Águas, no âmbito federal, e de modelo a várias leis estaduais.
Como pode faltar água num país tropical de clima úmido que detém a maior descarga de água doce do mundo; que conta com um número enorme de rios perenes em quase todo seu território e com uma reserva de 12% de toda a água potável do planeta?
Existindo os instrumentos legais acima descritos (a instituição de um sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e a definição de critérios de outorga de direitos de seu uso, cuja implementação, infelizmente, até hoje engatinha), é necessária a realização do planejamento hidráulico da Bacia do Velho Chico, com a elaboração de um verdadeiro orçamento de suas águas, anualmente revisado em função da sua maior ou menor disponibilidade (que varia a cada ciclo hidrológico), para darmos resposta aos questionamentos de falta de água da região. Esse orçamento iria definir: X m³/s para uso humano e animal; Y m³/s para irrigação na bacia; Z m³/s para geração de energia elétrica; T m³/s para transposição para outras bacias; W m³/s para a indústria, etc. A Agência Nacional da Água – ANA (autarquia com autonomia administrativa e financeira, que se encontra vinculada ao Ministério do Meio Ambiente), poderá vir a ter um papel fundamental nessas ações, implementando a política nacional de recursos hídricos e gerenciando o sistema, atuando mais diretamente nas bacias federais, isto é, naquelas com rios interestaduais. Planejar é preciso.
Lacunas existentes
Na Bacia do São Francisco foram identificados, desde a década de 60, 3 milhões de hectares potencialmente irrigáveis, e seu aproveitamento tem sido feito de maneira muito lenta. Como explicar a existência de recursos expressivos para levar a água do São Francisco a centenas de quilômetros de distância, enquanto as terras próximas ao rio permanecem não beneficiadas?
As águas do Velho Chico transpostas para os Rios Jaguaribe, Apodi, Piranhas-Açu e Paraíba não irão resolver o problema da seca no Nordeste. Como elas chegarão aos nordestinos que vivem a alguns quilômetros das margens desses rios? Isso não está claro no projeto. O problema de falta d’água já existe próximo aos rios da Bacia do São Francisco e não é verdade que a transposição irá acabar com o fornecimento de água através de carros-pipa.
Considerando a vazão média de bombeamento da transposição de 65 m³/s (poderá haver bombeamentos de até 127 m³/s) e o preço da energia elétrica de R$ 35,00 por MWh, o custo total de energia a ser gerada mais os custos de bombeamento (já descontada a energia que seria gerada na futura usina do eixo norte, conforme indicado nos estudos de viabilidade da transposição) ultrapassa anualmente R$ 70 milhões.
Tais estudos de viabilidade informam que, no eixo norte, a água será elevada de uma cota mínima de 325,30 até 490,01, ou seja, uma diferença de nível de 164,71 metros, enquanto no eixo leste, a água será elevada de uma cota de 280,00 até 603,36, portanto, uma elevação de 304,36 metros. Haverá energia suficiente para os bombeamentos necessários, quando a região passa pela maior crise energética de sua história, a qual aflige todos os brasileiros?
Qual a efetiva destinação das águas transpostas com o projeto:
- Para consumo humano e animal?
- Para a irrigação?
- Quais as perdas por evaporação?
- Quais as perdas por infiltração?
- Quais os volumes de águas transpostas que chegarão ao mar?
- Qual o custo total do empreendimento?
- Que parcelas integrarão o preço a ser pago pelos usuários (amortização do investimento e operação, incluindo bombeamento e manutenção)?
- Quem irá gerenciar a água transposta?
- Quem irá construir, operar e manter o sistema?
- Quem irá fiscalizar o sistema para se evitar o furto da água?
- Quais as salvaguardas contra especuladores e grileiros?
- Quais as defesas previstas para evitar a expulsão de pequenos proprietários e posseiros nas áreas beneficiadas pela transposição?
Ações necessárias
A noção equivocada de abundância de água, entre nós brasileiros, foi o que nos levou ao falso entendimento da inesgotabilidade de nossas reservas hídricas, principalmente as existentes aqui no Nordeste.
Primeiramente, é importante observar que a transposição não pode ser vista como a única alternativa viável para se resolver, de vez, os problemas hídricos da região. Não podemos e não devemos colocar em um plano secundário os investimentos já realizados em outros setores como, por exemplo, o de geração de energia e o de irrigação. Seria cobrir um santo e descobrir outro. Sendo assim, ações estruturadoras precisam continuar recebendo a atenção necessária por parte das autoridades competentes.
Inicialmente, é de vital importância a revitalização do rio, através do reflorestamento das regiões acometidas pelos desmatamentos indiscriminados. A responsabilidade por essa incômoda situação cabe ao desrespeito e descuido das pessoas para com as leis e a lógica da natureza. São os agressivos e silenciosos desmatamentos que impedem a água, oriunda das precipitações naturais, de se infiltrar na terra. Os reflorestamentos são ações necessárias para impedir, tanto o processo erosivo do solo como o da exaustão de nascentes, já observados em várias localidades da Bacia do Rio São Francisco. Atenção especial deverá ser dada às matas ciliares, como forma de conter os desbarranqueamentos das suas margens, os quais são vetores dos processos de assoreamentos existentes em seu leito que impedem ou dificultam a navegação.
O tratamento dos esgotos, oriundos das indústrias e dos municípios existentes na sua bacia, é fundamental para possibilitar a utilização das águas do Velho Chico sem riscos para a saúde das pessoas que habitam a região.
É, também, fundamental que se comece a pensar na viabilidade de se transpor águas de outras bacias hidrográficas para o São Francisco. Sobre essa questão, a transposição de águas do Tocantins é, sem dúvida, um caminho a ser percorrido. Contudo, alguns esclarecimentos precisam ser feitos: primeiramente, é preciso observar que a Bacia do Tocantins está localizada em uma cota 333 metros abaixo da cota do divisor de águas da Bacia do São Francisco. Isso significa dizer que há necessidade de bombeamentos para a transposição de suas águas, o que implica em custos elevados na realização do projeto. Existem estudos que comprovam a necessidade de haver, pelo menos, quatro estações elevatórias, a um custo estimado em mais de 1 bilhão de dólares.
Outro aspecto a ser considerado é o destino dado às águas procedentes do Tocantins. Se forem destinadas ao aumento da capacidade de geração de energia elétrica do São Francisco, se torna muito mais viável, economicamente, ampliar o potencial gerador da usina de Tucuruí, localizada no Rio Tocantins, e transportar parte dessa energia para o Nordeste, através de linhas normais de transmissão.
Seria prudente observar, também, as limitações de vazão dos rios que compõem a Bacia do Tocantins. No caso em questão, as águas seriam bombeadas, para o São Francisco, através do Rio do Sono (afluente do Tocantins) o qual, nas proximidades de sua nascente, segundo informações precisas de técnicos da Chesf, dispõe de um potencial de transferência volumétrica da ordem de 50 m³/s, não mais do que isso.
Outra possibilidade está no aproveitamento das águas de duas lagoas (Jalapão e Varedão) existentes no divisor de águas entre as Bacias do Tocantins e do São Francisco, localizadas nas proximidades do município de Formosa do Rio Preto, no Noroeste baiano. Segundo Caio Lóssio Botelho, professor da Universidade Estadual do Ceará, já há uma transposição natural, de cerca de 110 m³/s, da Lagoa de Varedão para o São Francisco. Botelho afirma que, com um aprofundamento da referida lagoa, haveria um incremento significativo de vazão para o Velho Chico, em até 260 m³/s, sem comprometer o sistema Tocantins.
No entanto, a alternativa mais viável de todas, e sem dúvida a mais barata, seria a de transportar as águas do Rio Grande para o São Francisco, na altura da Represa de Furnas, no Sul do Estado de Minas Gerais. Nessa represa, também construída em um divisor de águas (Grande/São Francisco), bastaria a construção de uma comporta, em um dos seus diques, para as águas caírem naturalmente no riacho denominado Pium-i e, por gravidade, chegarem ao São Francisco. O problema existente nessa alternativa é que o Rio Grande é afluente do Rio Paraná, o qual, por sua vez, é um rio de águas internacionais. A esse respeito, existe legislação específica que torna difícil a realização da obra. Ademais, ainda não se sabe a reação do governo de Minas Gerais a essa proposta.
Outras questões também são merecedoras de apoio, como forma de se tentar minimizar os problemas de abastecimento das populações sedentas nordestinas, principalmente aquelas residentes de forma difusa na região.
É preciso que se dê continuidade ao processo de construção de grandes represas na região, fazendo-se, sempre que possível, a interligação de suas bacias, como forma de uma melhor utilização de suas águas. A perfuração de poços em regiões sedimentárias é outra alternativa importante, a qual deve ser apoiada conjuntamente com a ampliação do programa de construção de cisternas no meio rural e das tecnologias de convívio com as secas, as quais vêm sendo oportunamente conduzidas pela Articulação do Semiárido – ASA Brasil, principalmente para o atendimento das comunidades carentes.
O pressuposto que o Nordeste brasileiro possui muita água, que seus mananciais têm garantias hídricas para o abastecimento das populações e que seu acesso é mais barato, foi confirmado pelo próprio governo, ao publicar, por intermédio da Agência Nacional de Águas – ANA, o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água. Nele, é possível se proceder à análise hídrica de demandas e de ofertas da região (superficiais e subterrâneas), bem como traçar alguns diagnósticos e prognósticos dos sistemas existentes, incluindo, ainda, análises de criticidade, propostas de soluções técnicas e necessidades de investimentos para a realização das obras de infra-estrutura, visando o abastecimento das populações.
Nesse trabalho da ANA, há citação de escassez hídrica nas regiões agrestes dos estados da Paraíba e de Pernambuco, conforme aqui mencionado, com possibilidade de solução através da adução de águas do rio São Francisco.
Análises comparativas dos benefícios a serem alcançados pelo projeto da Transposição do rio São Francisco e pelo trabalho da ANA já foram realizadas, chegando-se à conclusão que, com a metade dos recursos financeiros previstos no projeto de transposição, é possível beneficiar, pela proposta da ANA, em termos de abastecimento das populações, um número quase três vezes maior de pessoas (a transposição prevê o benefício de 12 milhões, enquanto o Atlas prevê o benefício de 34 milhões de pessoas). A ANA, de forma criteriosa, elaborou esse trabalho, indicando a maneira alternativa para solucionar o problema hídrico de 1.112 municípios, com população de até 5 mil pessoas, em toda a região semiárida, além de ter sido a primeira instituição governamental a declarar, publicamente, as intenções do governo de utilizar as águas da transposição para o agronegócio.
Além do mais, a água do rio São Francisco irá chegar na ponta do projeto a um custo muito elevado. O Relatório de Impactos Ambientais do Projeto (EIA/RIMA) estabelece um valor de cerca de UR$ 0,13 (treze centavos de real) o metro cúbico bombeado, valor muito acima daquele cobrado atualmente pela Codevasf, aos seus colonos, de cerca de R$ 0,02 (dois centavos de real). Mesmo com essa discrepância de valores, existe um percentual significativo de colonos, na bacia do rio, que não consegue pagar a sua água consumida a um custo de R$ 0,02. A pergunta que não quer calar: que colonos paraibanos, norte riograndenses ou mesmo cearenses, terão condições de pagar por uma água, na ponta do projeto, custando seis vezes mais cara? As análises das insuficiências volumétricas do rio São Francisco, no atendimento às demandas da irrigação no Setentrional, bem como a inviabilização do uso da água na agricultura, pelo seu elevado custo na ponta do projeto, foram muito bem analisadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no estudo 1573 – Impactos do Projeto da Transposição do Rio São Francisco na Agricultura Irrigada no Nordeste Setentrional, de janeiro de 2011.
A disputa foi por dinheiro
O projeto da transposição do São Francisco, em curso, gerou um fato no mínimo curioso: diante dos argumentos contraditórios entre a utilização das águas do Velho Chico para fins de agronegócio ou para o abastecimento das populações carentes, com as águas interiores existentes em cada estado da região, optou-se pela primeira alternativa. Tanto é assim que no Plano de Aceleração do Crescimento do nosso País (PAC) o projeto privilegiado foi o da transposição e não o do Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano, no entanto, a segunda opção seria a mais sensata: a priorização da vida! E existe uma razão muito simples para a escolha: a disputa foi por recursos financeiros. Foi escolhido o projeto mais caro.
Nunca na história desse País, se ouviu falar em um montante de recursos tão expressivo, como aquele que está sendo alocado no projeto em curso da transposição. A cifra de 8,3 bilhões de reais, numa primeira fase das obras, elegeu um presidente da república e, de quebra, deu-lhe munição para fazer o seu sucessor. Nos parece que foi exatamente isso que ocorreu no Brasil! E nossas preocupações tendem a aumentar, na medida em que o projeto é de longo prazo (de 25 a 30 anos de execução), com seu orçamento final atingindo, facilmente, a faixa dos 20 bilhões de reais.
Diante de todo esse relato, entendemos que a vontade política não pode estar acima das possibilidades técnicas de se promover o desenvolvimento do nosso país, sob pena de continuarmos seguindo firmes na rota da escuridão.
20/09/2011
Capítulo do livro “Conservação da Natureza: E eu com isso?”, organizado e publicado pela Fundação Brasil Cidadão – Fortaleza (CE), 09/2012, no prelo.
João Suassuna é Eng° Agrônomo e pesquisador Titular da Fundação Joaquim Nabuco
EcoDebate, 21/09/2012
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O Eng. João Suassuna é, inquestionavelmente, um estudioso do clima semiárido. Sua análise técnica sobre os baixos quantitativos hídricos da região é digna de aplausos. Segundo seu trabalho, o Nordeste, com uma população que não para de crescer, possui baixo potencial hídrico na região sobre o escudo cristalino, existindo grandes municípios com escassez crônica de água.
O leitor terá a impressão de que ele faz essa introdução para justificar a transposição de águas do Rio São Francisco, caso não conheça sua opinião a esse respeito. No entanto, ele vai ao sentido inverso, combatendo esse projeto. Acontece que, diferentemente da introdução, os argumentos apresentados nem sempre correspondem aos fatos.
É o caso, por exemplo, da distribuição da água da transposição. Segundo ele, a região do Seridó, no Rio Grande do Norte, não teria sido contemplada no projeto. Na realidade, a regularização desse curso de água está prevista somente depois que for concluído o eixo de integração do Seridó, que receberá água da represa de Oiticica, em construção, aproveitando o potencial hídrico do Rio Piranhas-Açu, a ser reforçado com as águas da transposição. Carece de fundamento, portanto, a assertiva de que o Seridó norte-rio-grandense não foi contemplado com uma gota sequer das águas do Velho Chico.
Com relação à qualidade das águas do Rio São Francisco, ele afirma que a grande Belo Horizonte despeja seus esgotos domésticos e industriais nos rios Velhas e Paraopeba, afluentes do São Francisco, constituindo-se no que ele chama de um problema de saúde pública.
A qualidade da água não é obstáculo à transposição, pois, se for usada para consumo humano, terá que ser tratada. Se for usada para irrigação, sequer precisa de tratamento, que não é feito em toda a região irrigada da bacia. Ademais, trata-se de um equívoco dizer que os esgotos domésticos e industriais da grande Belo Horizonte são despejados diretamente nos cursos de água, pois os municípios da região metropolitana de Belo Horizonte possuem estações de tratamento de esgoto. Em Belo Horizonte, existem duas estações, uma na bacia do Arrudas e outra na bacia do Onça.
Com relação à indisponibilidade de água para a transposição, o autor utiliza dados bastante ultrapassados. Em um trabalho realizado em 2004, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência constatou que 335 m3/s dos 360 m3/s alocáveis na bacia do São Francisco estariam comprometidos. Acontece que esse comprometimento foi feito antes que o comitê da bacia taxasse as vazões alocáveis, que eram inteiramente gratuitas e, por isso mesmo, exageradas em sua grande maioria. Com a taxação, houve inúmeras desistências e a realidade hoje é totalmente outra, muito diversa da que sugere o autor.
Por outro lado, a justificativa de que o Rio São Francisco não poderia ceder água porque os ribeirinhos necessitariam de 0,5 L/s.ha para irrigação seria um verdadeiro desperdício de água, desperdício este que a taxação feita pelo comitê da bacia aos poucos vai solucionando.
Finalmente, gostaria de comentar sobre o Atlas Nordeste feito pela ANA, em que, segundo o autor, foi constatada a escassez hídrica nas regiões agrestes dos estados da Paraíba e de Pernambuco, com possibilidade de solução através da adução de águas do rio São Francisco. Não obstante essa constatação, o autor afirma que o atlas prevê a solução de abastecimento de água de todos os municípios com população até 5 mil habitantes com a metade do custo da transposição.
Há aí um engano. A ANA fez dois atlas para o Nordeste e, em nenhum deles, propõe a solução de todos os problemas hídricos dos municípios. Os atlas se limitam a propor alternativas para solução do abastecimento de água nas sedes urbanas. O primeiro atlas, a que o autor se refere, trata das sedes urbanas com população superior a 5 mil habitantes. Parece incrível que ainda haja sedes urbanas com mais de 5 mil habitantes que sequer tenham abastecimento de água. A ANA constatou, à época, que o custo total para solucionar esses problemas de abastecimento ficaria em 3,6 bilhões de reais. No segundo atlas, a ANA contemplou as sedes municipais com populações inferiores a 5 mil habitantes e chegou a um custo total superior a 9 bilhões de reais.
Destaque-se que, tanto em um como em outro estudo, não estão contempladas as áreas rurais, mas tão somente as sedes urbanas.