A apatia paralisante (desde o velho Braga), artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] Será que o julgamento do “mensalão” vai mesmo tirar o País da apatia, como têm escrito e dito tantas vozes respeitáveis e ilustres? Terá o julgamento o condão de nos retirar da “retórica da indignação”, sem organização social e projetos políticos transformadores, como se tem escrito neste espaço? Sempre vem a tentação de recorrer ao velho e incomparável Rubem Braga: “Que fizeram nesse país? De onde vem esse mormaço – do bocejo de tédio dos poderosos ou da parda indiferença do povo? (…) Faz mormaço na alma. Faz mormaço na Câmara. Os ventos estão desmoralizados e já sopram sem fé” (crônica Mormaço, em A Borboleta Amarela, 1951).
Será de indiferença a atitude geral diante do fato de que já pagamos, no primeiro semestre, R$ 508,5 bilhões em impostos federais e pagaremos um total de mais de R$ 1 trilhão ao longo do ano – uns 36% do produto interno bruto (PIB), se excluído o equivalente a 16,8%, ou quase R$ 700 bilhões, da “economia subterrânea”? E que, ainda assim, nossa dívida pública federal está em quase R$ 2 trilhões – e mesmo com a taxa atual de juros significou até há pouco mais de R$ 200 bilhões anuais, umas cinco vezes o gasto com o Bolsa-Família, que beneficia 14 milhões de pessoas e, com suas famílias, uns 40 milhões? Não importará a ninguém que os juros em nossos cartões de crédito estejam acima de 320% ao ano, na média 7,6 vezes mais que nos países vizinhos (55% no Peru, por exemplo)?
Também nada quer dizer que, embora nossas ruas caminhem para a paralisação com uma frota gigantesca de veículos, que se calcula chegará a 50 milhões em poucos anos, continuemos a dar incentivos fiscais para esse tipo de produção, sem nenhuma contrapartida, como foram os R$ 28 bilhões recentes (ao custo de R$ 1 milhão por posto de trabalho gerado ou assegurado)? Não importa, aparentemente, que já tenhamos no trânsito uma taxa de 20 mortos por 100 mil habitantes e que o custo médio por acidente seja de R$ 176 mil. Vamos tocando. Ainda que o nível de poluição do ar na Grande São Paulo tenha aumentado 9% de 2010 para o ano passado, com 265 dias no ano apresentando saturação de ozônio no ar.
O custo dessa poluição para o sistema de saúde é brutal, mesmo com o Brasil se situando abaixo da média mundial nos gastos nessa área: 5,9% do orçamento público, ante 14,3% (Estado, 21/5). Luxemburgo, por exemplo, aplica aí quase 25 vezes mais por habitante do que o Brasil. Nosso investimento médio por habitante em saúde é de US$ 320, ante US$ 549 no mundo. Com apenas 3,77% do PIB investido nesse setor, ficamos abaixo dos países do Caribe, por exemplo.
Vamos continuar permitindo que seja assim, enquanto desperdiçamos bilhões em obras superfaturadas, inúteis ou paralisadas? Por que não conseguimos aplicar o desperdício dotando de abastecimento doméstico de água quase 10% da população ainda carente? Ou de coleta domiciliar de esgotos quase 50% da população? Poderíamos até ter mais recursos se tivéssemos sistemas eficientes para reduzir as perdas de água nas redes públicas – 37,2% do total (o Japão perde 3%). Em São Paulo, segundo a Sabesp, a redução de 3,9% nas perdas (reduzidas para 25,6%) significou 83 bilhões de litros, suficientes para abastecer uma cidade de 745 mil habitantes. Quanto se economiza deixando, com isso, de construir novas represas, novas adutoras, novas estações de tratamento? As grandes empreiteiras não gostariam, é certo. Mas… paciência. Elas também não gostariam que se adotasse onde possível o sistema de coleta de esgotos por ramais condominiais, que economizam pelo menos 30% do custo das obras. Mas o sistema transformou Brasília numa cidade com 100% de esgotos coletados.
Se conseguirmos transformar a mera “retórica da indignação” em projetos políticos – e exigirmos a sua adoção -, poderemos, por exemplo, transformar nossas políticas de limpeza urbana (ou a falta delas) em projetos eficazes. Deixaremos de desperdiçar quase 100 mil toneladas diárias de resíduos orgânicos e poderemos transformá-los em fertilizantes. E ainda reciclar grande parte do restante, economizando aterros, reduzindo as despesas com empresas coletoras/transportadoras, que, todos sabem, são hoje algumas das maiores financiadoras de campanhas eleitorais (em troca de políticas – ou falta delas – que as beneficiem). Também poderemos enfrentar a calamitosa situação em mais de metade dos municípios brasileiros que mandam para lixões todos os seus resíduos.
Se mudarmos nossas posturas será possível, com mais recursos não desperdiçados, avançar na área social, na qual ainda temos pelo menos 16 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Só no Estado de São Paulo, 1,1 milhão de pessoas com rendimento (?) abaixo de R$ 70 mensais, 36,8% das quais em domicílios urbanos, mais de 50% rurais. No levantamento feito pelo governo paulista, diz este jornal (23/5), 700 mil famílias no nível de pobreza estavam “invisíveis”. Mesmo com todas essas carências, este ano o governo federal tem R$ 59 bilhões para investimentos públicos que não pode gastar, “empenhados, mas não liquidados”, imobilizados na rubrica “restos a pagar”. O que não daria para fazer com eles em matéria de habitação, saúde pública, educação em tempo integral, transporte eficiente, saneamento básico, etc.? Mas para isso é preciso superar a apatia, organizar a sociedade, discutir, mobilizar aliados como Ministério Público, Procon, etc.
Não há como não relembrar o “velho” Braga: “Somos todos amanuenses de um país de mormaço, não atingimos o tédio, ficamos na chateação difusa (…) deixar a vida para amanhã”.
Será que o “mensalão” terá o condão de nos sacudir do torpor e nos restituir a cidadania plena?
Washington Novaes é jornalista.
Artigo originalmente publicada em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 06/08/2012
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