Disputa pela Raposa Serra do Sol: privatização de lucros, socialização de mazelas, artigo de Rogério Almeida
[EcoDebate] Ao se lançar os olhos sobre as amazônias, as brasileiras ou não, pode-se construir um mapa de conflitos em disputa pela terra e os recursos nelas existentes. E terra nas amazônias do Brasil tem sido uma questão mais de morte do que de vida das populações consideradas originárias.
O colonizador, ao aportar por essas plagas, fez jorrar sangue de inúmeras populações indígenas, chegando a dizimar várias delas. E são elas as mais penalizadas ao longo da história da “conquista” da fronteira.
Indígenas ladeados de outras gentes que moldam a fauna social das amazônias, camponeses(as), ribeirinhos(as), pescadores(as), quebradeiras de coco, extrativistas, quilombolas e tantos(as) outros(as) são tratados(as) – aos olhos de quem cobiça as terras dessas paragens, não mais tão distante – como entraves ao avanço do capital.
O mesmo raciocínio rege a análise sobre o processo de licenciamento ambiental, deveras viciado e, na maioria das vezes, mero instrumento burocrático.
A peleja em torno da Raposa Serra do Sol – terra indígena dos povos Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana, localizada em Roraima, demarcada em 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso, e homologada em 2005, pelo governo de Lula – ilustra bem o cenário de tensão na região. Encontra-se em jogo entre indígenas, oito grandes arrozeiros e cerca de 50 famílias de agricultores(as) o poder sobre o controle da terra e dos recursos.
A peleja dos povos indígenas pelo reconhecimento vem de velha data, pelo menos 34 anos, como informou um nativo da região em entrevista à imprensa nacional. A delicada questão é marcada pelo dissenso entre diferentes esferas do poder público, empresários(as), políticos, pesquisadores(as), religiosos(as) e indígenas.
A não-manutenção da área contínua da reserva vai escancarar precedentes para o pedido de revisão em todo o país. O alerta vem de Dom Erwin Krâutler, bispo da Prelazia do Xingu. O missionário ameaçado de morte milita numa região onde se deseja implantar a hidroelétrica de Belo Monte. Ele é um profundo conhecedor sobre a temática indígena na Amazônia e um dos aliados em defesa da manutenção da demarcação da reserva.
A disputa que ora se arrasta na Suprema Corte do país já registrou capítulos de típicos filmes faroeste protagonizados pelo opositor mais fervoroso aos indígenas, o prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero, também arrozeiro. Um dos episódios se deu na comunidade de Surumu, com queima de pontes, bloqueio de estradas e ameaças de pistoleiros, em maio deste ano.
Em outro ataque, o grupo de Quartiero feriu 10 indígenas. Além dos episódios de violência, é sabido do processo de degradação ambiental que a produção dos arrozeiros impingiu à região. A ação contra a União que visa o esquartejamento da reserva Raposa Serra do Sol foi movida pelos senadores Augusto Afonso Botelho Neto (PT/RR) e Francisco Mazarildo de Melo Cavalcanti (PTB/RR), com o endosso do governador do estado, Ottomar Pinto (PSDB).
O que se encontra em jogo é a apropriação e o controle sobre o território. O voto do ministro Ayres Brito, na seção do dia 27 de agosto de 2008, pela manutenção da continuidade é sinal de respeito à Constituição de 1988 em seu capítulo que garante a defesa dos indígenas.
Mais que a vida dos povos Ingarikó, Makuxi, Patamona, Taurepang e Wapixana que povoam a Raposa Serra do Sol, se encontra em jogo o futuro de outras nações espraiadas em outros territórios das amazônias. É possível que interesses de indivíduos se sobreponham a interesses coletivos?
O histórico da conquista das fronteiras amazônicas pelo capital tem demonstrado que se capitalizam os lucros, enquanto as mazelas oriundas dos processos são socializadas pelas populações nativas empobrecidas, sejam indígenas ou não. A disputa sobre a manutenção da reserva Raposa Serra do Sol pode desvendar um enredo contrário?
Rogério Almeida – Colaborador da rede www.forumcarajas.org.br, articulista do Ibase e Ecodebate.
[Ecodebate, 01/09/20008]