Entrevista com Roberto Malvezzi (Gogó), integrante da Equipe da CPT do São Francisco, sobre a água
O integrante da Equipe da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do São Francisco, Roberto Malvezzi, concede entrevista exclusiva ao Jornal Santuário de Aparecida. Ele fala sobre a problemática relacionada à água e o trabalho desenvolvido pela Igreja no Brasil neste sentido.
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Jornal Santuário de Aparecida – Qual é o foco central do trabalho da Igreja no Brasil no que diz respeito à defesa da água?
Roberto Malvezzi – O foco central é o acesso das populações à água potável. Dessa forma, pastorais, paróquias e dioceses, por exemplo, estão muito envolvidas com a captação da água de chuva no Nordeste para beber e cozinhar através das cisternas.
Mas não é só isso. A Campanha da Fraternidade da Água em 2004 ressaltou a defesa da água como um direito humano, bem público, não sujeita a qualquer tipo de privatização. Esses princípios básicos ajudaram, e tem ajudado, toda sociedade brasileira a fazer um esforço pela defesa da água como um direito humano e patrimônio de todos os seres vivos.
Jornal Santuário de Aparecida – Percebe-se que a água, muitas vezes, é considerada sob uma abordagem destacadamente mercantilista. Como transformar essa visão e ressaltá-la como bem comum mundial?
Malvezzi – Esse é o “nó” da política mundial da água. Nas Pastorais e Movimentos Sociais, chamamos essa política de “hidronegócio”. Como na crise civilizacional que atravessamos existe uma crise da água, empresas do ramo viram aí uma grande oportunidade de negócio. Nenhum negócio pode ser melhor que o da água. Afinal, ninguém vive sem ela. Então, surgiu o que alguns especialistas chamam de Oligarquia Internacional da Água, ou seja, um grupo restrito de empresas, apoiadas por organismos multilaterais como o Banco Mundial e o FMI, mas também com apoio de governos locais, iniciando um processo mundial de privatização da água de diversas formas. Mas a reação mundial também foi à altura. A chamada guerra da água em Cochabamba, forçando a desprivatização do setor de abastecimento, tornou-se um símbolo da resistência a essa lógica mercantil insana.
Jornal Santuário de Aparecida – O Brasil está em uma fase de grande desenvolvimento e expansão e, para isso, é preciso também a produção de muita energia. Nesse contexto, como lidar com questões emblemáticas, como Belo Monte? Especialistas chegam a afirmar que se deve escolher entre Belo Monte ou Angra 3. A situação é assim tão extrema ou há alternativas?
Malvezzi – O Brasil tem um leque enorme de opções para gerar energia limpa. Agora, especialistas já falam que até 2100 o topo da energia estará vindo dos ventos, isto, a eólica. O Brasil tem um potencial eólico calculado entre dez a vinte vezes o que gera Itaipu. É a hora das eólicas, que estão se disseminando particularmente no Nordeste, mas num modelo social sujo, impactando comunidades e ambiente.
A segunda fonte que tem enorme potencial é a solar. Mas aqui o Brasil ainda patina. Energias sujas estarão em decadência, como petróleo, gás e carvão. O potencial hidráulico brasileiro está se esgotando. Só temos possibilidades na Amazônia, cada vez mais longe, cada vez mais cara. É aí que muitos acham que o Brasil deveria partir para as energias limpas desde já, com toda a força.
Belo Monte impacta rios, florestas e populações tradicionais, as grandes vítimas do modelo energético em questão. Estão tentando ainda ressuscitar a energia atômica. Uma loucura! Mas no Brasil, mesmo após Fukushima, existem loucos que querem implantar aqui essa matriz energética.
Jornal Santuário de Aparecida – Apesar de o governo ter uma grande parcela de responsabilidade nesse cenário, através da formulação de políticas públicas mais bem estruturadas, a sociedade civil também possui sua carga de trabalho. Quais seriam as principais ações que o cidadão comum pode fazer para tentar ajudar na amenização do problema?
Malvezzi – A luta por energias limpas no Brasil faz parte do calendário, da agenda dos movimentos sociais e ambientalistas, mas também das comunidades eclesiais que tem envolvimento sócio-ambiental. Agora, na Cúpula dos Povos, que acontecerá durante a Rio+20, no Rio de Janeiro, a questão das energias estará presente. Não é possível ter um clima planetário saudável sem considerar a matriz energética. A energia fóssil é a principal emissora de CO2 na atmosfera. Um cidadão isolado não é um cidadão. Faz parte da cidadania buscar locais, espaços, grupos que se solidarizam e se envolvem com os destinos da humanidade.
Jornal Santuário de Aparecida – O problema do Brasil não é tanto a disponibilidade de recursos hídricos, mas sim a desigualdade geográfica da distribuição desses. Como esse problema pode ser solucionado? Há projetos de sucesso que já existem e contam com o apoio da Igreja?
Malvezzi – É verdade que a distribuição da água no Brasil é desigual naturalmente, mas aí também existe uma “pegadinha” que precisa ser esclarecida. Mesmo a região mais pobre de água no Brasil, o sertão Pernambucano, tem uma média de água suficiente para abastecer toda a população da região com tranquilidade. O desafio é a distribuição dessa água para a população.
Hoje, com o Atlas Brasil de Águas, da Agência Nacional de Águas (ANA), podemos mapear região por região, município por município, de todo o Brasil, e averiguarmos a situação hídrica, o que precisa ser feito, o custo do que deve ser feito. É um trabalho fantástico, jamais feito no Brasil em outras épocas.
Agora é uma questão de decisão política. O governo brasileiro poderia ter optado pelas adutoras do Atlas do Nordeste para abastecer toda a população Nordestina urbana, mas preferiu fazer a Transposição do São Francisco, que tem finalidade econômica. Portanto, o acesso à água passa por uma dimensão política, de quem está no poder, de fazer o que é recomendado por estudiosos do assunto e pela experiência das populações locais. As soluções técnicas hoje estão em nossas mãos. Continua faltando decisão política.
Entrevista originalmente publicada pelo Jornal Santuário de Aparecida e reproduzida pelo EcoDebate, 28/03/2012
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É inquestionável que o foco central do problema hídrico é o acesso das populações à água potável.
Entretanto, não podemos nos esquecer de que a água é insumo para praticamente todas as atividades humanas. Ninguém planta sem água. Ninguém cria gado, cavalo, jegue, abelhas sem água. Ninguém produz derivados de petróleo sem um volume de água várias vezes superior ao volume de derivados produzido.
Diante disso, se é questão da água potável é o mais importante, não se pode esquecer de que a água para ser usada como insumo é também importante. Nesse ponto, é importante o trabalho maravilhoso feito pela ANA de mapear as regiões brasileiras ainda carentes de água potável (o que para mim é um verdadeiro absurdo ainda existir no Brasil cidades com população superior a 5.000 habitantes sem água potável), mas precisa ser complementado com a distribuição de água para as regiões que não a dispõem para suas mais rudimentares atividades econômicas. Não há razão para que o Brasil, que foi dotado do maior volume de água doce do planeta, possa passar carência de água para atividades econômicas como a produção de alimentos ou a criação de animais de pequeno porte.
O Gogó vai-me permitir uma observação. O estado de Pernambuco possui uma média de 1.320 metros cúbicos por habitante, inferior ao que a ONU como o mínimo indispensável para conforto da população, que é de 1.500 metros cúbicos por habitante. E nessa média, está sendo incluído o litoral, que não faz parte do semiárido…