A passividade diante da crise institucional, artigo de Washington Novaes
[O Estado de S.Paulo] São inquietadores, preocupantes, muitos sinais que vêm da área institucional brasileira, aí compreendidos Legislativo, Executivo e Judiciário. Que mostram a fragilidade do quadro legal em que estamos inseridos – e que pode, a qualquer momento, levar a rupturas indesejáveis, por cansaço, inconformidade, revolta da sociedade.
Pode-se começar pelo mais recente, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de convalidar medida provisória do Executivo, de 2007, que condenara na véspera, por não haver passado, antes do plenário no Congresso, por comissão mista de deputados e senadores, como exige a legislação. Advertido no dia seguinte pela Advocacia-Geral da União, o STF voltou atrás e disse que a obediência somente será obrigatória daqui por diante – pois corria o risco de invalidar 460 medidas provisórias, 16 mudanças na Constituição, 12 projetos de lei complementar, 198 projetos de lei e 252 decretos legislativos em vigor e que contrariam aquela exigência (Estado, 11/3).
Imagine-se a confusão! Para remendar a ferida decidiu-se que a exigência legal só será cobrada daqui para a frente – se ninguém contestar o arranjo. Mas será que ninguém no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário tinha visto isso antes?
Panorama semelhante já fora exposto na votação, no mesmo tribunal, do projeto de Lei da Ficha Limpa. Discutiu-se muito a partir de quando valeria, quem atingiria. Só não se discutiu a validade da aprovação no Congresso, já que um conluio ali, entre o relator e senadores, permitira trocar a expressão “os que tenham sido condenados” por “os que forem condenados”. Isso exigiria a volta à Câmara dos Deputados para nova apreciação, uma vez que o texto fora modificado – o que não foi feito, sem que ninguém protestasse, no Legislativo ou no Judiciário, ou acusasse a irregularidade. E o Executivo, tranquilamente, sancionou a lei. E se alguém agora exigir uma revisão, à véspera das eleições deste ano?
Não foi o pulo único do gato. Pouco antes, o mesmo Senado, com o mesmo relator, aprovou outro arreglo que suprimiu do projeto da Política Nacional de Resíduos Sólidos o dispositivo, que já passara pela Câmara, após 19 anos de discussão, que só admitiria a incineração de lixo (processo caro e com riscos) depois de esgotadas as possibilidades que enumerava – não geração de lixo, reutilização, reciclagem, tratamento com disposição final ambiental (aterro). Para alegria das grandes empreiteiras – que têm, quase todas, incineradoras -, o projeto enviado pelo Senado foi sancionado na Presidência da República – sem nenhum protesto das áreas institucionais.
Talvez, entretanto, a situação mais indecorosa tenha sido a entrevista concedida há uns cinco anos pelo então ministro Nelson Jobim, na qual, de livre e espontânea vontade, confessou ao jornal Folha de S.Paulo haver participado de uma “articulação” para incluir na Constituição de 1988 – da qual ele fora sub-relator – dois artigos que não haviam sido examinados e aprovados pelo plenário. Ilegalidade que ele só revelará quais são “em livro”. Que artigos serão esses que a sociedade brasileira vem acatando, cumprindo? Por que nenhum membro do Legislativo ou do Judiciário interpelou, contestou, tomou providências? Que consequências isso terá provocado, prejudicando a quem?
E assim fomos, e vamos, reduzindo por medida provisória áreas de preservação permanente na Floresta Amazônica, estabelecendo metas de redução (quase 40% para 2020) de emissões de poluentes que contribuem para mudanças climáticas (sem saber de quanto serão as emissões no final desta década e agora emitindo mais, com menos álcool e mais gasolina) e tantas outras coisas. E ainda com um enorme abacaxi a descascar pela frente: o julgamento do “mensalão” no STF, que não se sabe se será realizado antes das próximas eleições (e com que consequências) ou se vai ser empurrado para a frente até prescrever. E também sem entrar no terreno dos dramas levantados no Poder Judiciário pela ministra corregedora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ou no das irregularidades cometidas por pessoas nomeadas para altos postos da República (com a sucessão de escândalos e demissões). Ou na situação constrangedora de membros do Legislativo, no exercício das suas funções, acusados de tantas barbaridades – não há espaço que chegue nos jornais.
Na verdade, tudo ou quase tudo acaba sendo “empurrado com a barriga”, como diz o povão. Mas os riscos são muito altos e não podem ser admitidos. Ninguém sabe como nem quando começa exatamente uma crise institucional. Mas todo mundo sabe hoje do descrédito que permeia a área política. Talvez seja essa a questão principal a ser enfrentada pelos partidos e seus candidatos na campanha que se avizinha, em quase todos os lugares. Como confiar neste ou naquele candidato? Que pensam eles de todas essas questões?
Não bastasse isso, são raríssimas as informações sobre o que pretendem também no terreno concreto das políticas públicas. Nossas grandes cidades estão mergulhadas – e cada vez mais – em problemas gigantescos, mas sem políticas adequadas para enfrentá-las, só com medidas pontuais prometidas.
Não estranha, assim, que proliferem candidaturas tendentes a ridicularizar a corporação política, o mundo da administração. Nem que ganhem corpo as atitudes de protesto contra uma carga tributária que se considera excessiva e desperdiçada.
Todo o cuidado é pouco. O sentimento de inermidade, de desproteção, da maior parte da sociedade cresce aos olhos de quem quer ver. Trata-se de um terreno e de um momento perigosos, pois não há como prever o desfecho de uma crise em que a sociedade se limite a sacudir os ombros. É indispensável, por isso, que as instituições responsáveis descruzem os braços e se lancem à tarefa de criar alternativas em que os cidadãos possam confiar. E resta muito pouco tempo até outubro.
Washington Novaes, jornalista. E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
EcoDebate, 26/03/2012
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