‘Precisamos de energia, mas a forma de implementação destes projetos deve ser alterada’. Entrevista com Augusto Santiago e Carolina Bellinger
“O Plano Setorial para Agricultura, componente da Política Nacional de Mudanças Climáticas, destina milhões para o agronegócio e poucos recursos para iniciativas realmente sustentáveis como a agroecologia”, assinala o agrônomo.
Confira a entrevista.
As mudanças climáticas tendem a acirrar as fragilidades dos biomas brasileiros, e os povos tradicionais e ribeirinhos serão os principais atingidos, “principalmente em função da falta de informação sobre o tema”, diz Augusto Santiago à IHU On-Line, após participar do semiário Mudanças Climáticas e Desastres – analisando riscos e preparando alternativas locais, com representantes dos cinco biomas brasileiros. Em entrevista concedida por e-mail, ele destaca que, entre os impactos previstos para os próximos anos, está a “diminuição das chuvas no bioma caatinga, ampliando a escassez desse recurso no Nordeste. Para a zona costeira, o principal risco é o do aumento do nível médio dos mares. Com a mudança nos ciclos das chuvas o cenário para Amazônia é de savanização, ou seja, a área de cerrado deve ampliar”. E reitera: “Tais mudanças vão deixar ainda mais frágeis as populações mais pobres, especialmente se não estiverem preparadas para as mudanças, sem informação e técnicas adequadas, bem como sem recursos necessários para seu enfrentamento”.
Como alternativa para alertar os povos tradicionais acerca dos efeitos das mudanças climáticas, a Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE, e a Comissão Pró-Índio de São Paulo – CPI-SP, em parceria com os guarani, elaboraram uma cartilha educativa e explicativa sobre o tema. “Consideramos importante produzir um material didático nas duas línguas e em linguagem simples para que os professores pudessem utilizar o material em sala de aula, e que também fosse utilizado para as lideranças”, avalia Carolina Bellinger.
Na entrevista a seguir, Augusto Santiago também comenta a política ambiental brasileira. Na avaliação dele, o Brasil tem um discurso favorável à energia limpa, mas as “iniciativas são implementadas, como no passado, por decisões centralizadas e sem levar em conta as populações locais ou as leis que as protegem, como a Convenção 169”. A Rio+20, que acontece em junho no Rio de Janeiro, assegura, é um espaço importante para “expor as contradições brasileiras”. E dispara: “Enquanto o governo brasileiro, de um lado, implementa uma ação voluntária, criando a Política Nacional das Mudanças Climáticas – PNMC, por outro lado, diminui áreas de conservação e o legislativo brasileiro ataca o Código Florestal para garantir a ampliação do Plantation, e de uma legislação que garanta o direito à terra das comunidades tradicionais – quilombolas”.
Augusto Santiago é agrônomo e trabalha com povos indígenas do cerrado desde 1993. Já atuou no Ministério do Meio Ambiente, onde coordenou o Núcleo do Bioma Cerrado, em 2004. Desde 2007 trabalha na Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE.
Carolina Bellinger é advogada e assistente de coordenação da Comissão Pró Índio de São Paulo (CPI-SP).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais foram os principais temas discutidos no seminário Mudanças Climáticas e Desastres – analisando riscos e preparando alternativas locais? Quais os apontamentos dos participantes em relação aos impactos das mudanças climáticas em suas respectivas regiões?
Augusto Santiago– O seminário foi uma introdução ao assunto para alguns participantes e a continuidade de um processo de formação para outros. A metodologia apresentada está dividida em módulos que foram apresentados de modo intercalado com exercícios práticos, apresentações e debates teóricos sobre mudanças climáticas, políticas públicas nacionais, discussões sobre desastres – focado no caso de Pernambuco, justiça climática e advocacy.
Foi interessante refletir sobre o tema a partir de seus possíveis impactos sobre territórios de comunidades tradicionais e de agricultores, bem como sobre a vulnerabilidade dessas populações aos riscos do clima para, ao final, sugerir ações para sua mitigação ou adaptação. Os participantes de vários biomas vieram em duplas de lideranças comunitárias e técnicos de organizações de apoio. Nossa meta é promover a aplicação da metodologia nas comunidades dos participantes até maio e fazer um novo encontro para sistematização dos aprendizados e discussão de propostas de adequação. Isso tudo durante os dias 22 e 23 maio deste ano.
As percepções dos participantes que vieram dos estados do Ceará, Pernambuco, Maranhão, Bahia, São Paulo, Pará, Espírito Santo e Piauí apontam para a mudança nos padrões locais do clima, especialmente das chuvas, de sua quantidade e distribuição ao longo do ano. Apontam também para a perda de sementes e de diversidade, bem como dos conhecimentos associados a tais espécies. Em relação ao semiárido, destacaram a intensificação da seca por períodos mais longos. No que diz respeito à Mata Atlântica e à Amazônia, mencionaram a alternância de grandes secas com períodos de chuvas acima do normal. A influência da monocultura e os problemas fundiários também são identificados como responsáveis pelo acirramento dos problemas.
IHU On-Line – De que maneira os efeitos do clima estão prejudicando ou poderão afetar os povos tradicionais? O que muda na prática agrícola dos guarani, ribeirinhos e agricultores rurais considerando os efeitos das mudanças climáticas?
Augusto Santiago – Os impactos sobre povos tradicionais e comunidades podem ser ampliados principalmente em função da falta de informação sobre o tema. Eles desconhecem que as mudanças que estão observando são importantes e globais, ou que devem analisar seus riscos e impactos, ou ainda ignoram que existem políticas públicas disponíveis para seu enfrentamento. Por outro lado, a sociedade desconhece as contribuições dessas comunidades para mitigação do problema.
Na prática pretendemos deixar claro por que hoje, por exemplo, as terras disponíveis para preservação – criação de parques – em geral são de posse de comunidades tradicionais. Simplesmente porque seus modos de vida não degradam ou implicam em grandes impactos nos ambientes em que vivem. Elas estão em conflito, seja com os promotores das monoculturas, seja com os gestores interessados na criação de unidades de conservação. Seus direitos constitucionais – existentes apenas no caso de índios e quilombolas – não são respeitados.
Uma vez informados e formados neste tema, as comunidades podem analisar riscos e se prepararem para possíveis impactos, por exemplo, relativos à diminuição de áreas aptas para plantios de algumas culturas, aperfeiçoar estratégias para preservação de sementes, ampliar o uso de práticas conservacionistas de solo, especialmente se preparando para períodos de chuvas e estiagens mais intensos. Mas a demanda dos comunitários não se encerra na roça; eles precisam se preparar para garantir que as políticas desenhadas contemplem seus anseios – o que não tem acontecido no momento. O Plano Setorial para Agricultura, componente da Política Nacional de Mudanças Climáticas – PNMC, destina milhões para o agronegócio e poucos recursos para iniciativas realmente sustentáveis como a agroecologia.
IHU On-Line – Qual dos biomas (Amazônia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica e Zona Costeira) está mais prejudicado por conta das mudanças climáticas? De que maneira os efeitos do clima têm prejudicado cada bioma?
Augusto Santiago – Os impactos das mudanças climáticas tendem a acirrar características ou fragilidades dos biomas brasileiros. Por exemplo, os cenários para o Brasil apontam para a diminuição das chuvas no bioma caatinga, ampliando a escassez deste recurso no Nordeste. Para a zona costeira, o principal risco é o do aumento do nível médio dos mares. Com a mudança nos ciclos das chuvas, o cenário para Amazônia é de savanização, ou seja, a área de cerrado deve ampliar. Tais mudanças vão deixar ainda mais frágeis as populações mais pobres, especialmente se não estiverem preparadas, sem informação e técnicas adequadas, bem como sem recursos necessários para seu enfrentamento.
IHU On-Line – Um dos temas centrais da Rio+20 é a economia verde como alternativa para atingir o desenvolvimento sustentável e acabar com a pobreza. Como você avalia esse conceito de economia verde e de que maneira ele repercute entre os povos tradicionais? Ele é compatível com o modo de vida desses povos?
Augusto Santiago – A economia verde vê nas mudanças climáticas uma grande oportunidade de negócios, e não uma oportunidade para mudanças em nossos padrões de vida, especialmente em relação ao consumo – da obsolescência de tudo o que consumimos. Entre as comunidades tradicionais na América do sul, apenas os povos indígenas detêm 20 milhões de hectares de terras florestadas. E elas são florestadas em função de seus modos de vida de baixo impacto. Mecanismos como o mercado de carbono propõem que os emissores possam dar seguimento às suas emissões e manutenção dos seus padrões de consumo pela compra de créditos de carbono (plantio de florestas pelo Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL) ou por evitar desmatamentos pelo Redução de Emissões de Desmatamento e Degradação Florestal – REDD. Em contrapartida, as comunidades deveriam estancar o uso que fazem desses ecossistemas.
Acreditamos que, para promover mudanças, todos devemos nos envolver, sejamos empresários, comunidades, moradores das grandes cidades. Deve se levar em conta que, sem diminuir nossas taxas de crescimento e sem uma sociedade mais justa de verdade, não evitaremos as mudanças no clima. Precisamos todos contribuir para prevenir ou mitigar as mudanças, principalmente os principais responsáveis por elas: EUA, China e Europa. Nós aqui no sul também vamos colaborar – assim como o Brasil que, apesar de não ser obrigado (como os demais países do anexo B do Protocolo de Kyoto), está implementando a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC. Precisamos cobrar esta atitude dos demais países.
IHU On-Line – Que temas seriam mais urgentes na Rio+20?
Augusto Santiago – Considerando as incertezas quanto à participação dos chefes de estado e os muitos debates e propostas entre os movimentos sociais, a Rio+20 pode despontar como um momento de destaque para as soluções empresariais. Por exemplo, o Brasil desponta como promotor de energias limpas, suas principais vertentes são: hidroelétricas, pequenas centrais hidroelétricas, etanol e eólicas. Essas iniciativas são implementadas, como no passado, por decisões centralizadas e sem levar em conta as populações locais ou as leis que as protegem, como a Convenção 169, de forma que os impactos das alternativas são muito grandes especialmente sobre territórios de comunidades tradicionais. Precisamos de energia, mas a forma de implementação destes projetos deve ser alterada.
Seria importante expor as contradições brasileiras. Enquanto o governo brasileiro, de um lado, implementa uma ação voluntária, criando a PNMC, por outro lado, diminui áreas de conservação e o legislativo brasileiro ataca o Código Florestal para garantir a ampliação do Plantation, e de uma legislação que garanta o direito à terra das comunidades tradicionais – quilombolas.
Se as negociações internacionais não parecem auspiciosas, gostaríamos de garantir a participação das organizações que buscam garantir direitos.
IHU On-Line – Quais são as alternativas de enfrentamento às mudanças climáticas apresentadas no evento?
Augusto Santiago – Os módulos permitem a aproximação com o tema, estimula o levantamento de percepções sobre seus riscos e impactos, bem como o levantamento de iniciativas ou práticas que mitigam ou ajudam a adaptação ao novo contexto. Então, nosso foco não está em apresentar soluções, mas promover o debate para que as comunidades avaliem suas práticas, verificando suas possibilidades de redução de emissões. Além disso, pretendemos, ao fim do processo – repasse metodológico, aplicação em campo e sistematização –, levantar as contribuições já em andamento para que possam ser usadas como exemplo de alternativa. O principal destaque no grupo até o momento é a agroecologia.
IHU On-Line – Em que consiste a Metodologia de Avaliação de Riscos Climáticos? Ela será aplicada nos respectivos biomas pelas comunidades?
Augusto Santiago – A metodologia é voltada para uso em comunidades, especialmente as rurais, e busca fornecer informações básicas sobre as mudanças no clima. Cada comunidade avalia os possíveis riscos dessas mudanças, como, por exemplo, a ampliação da escassez de chuvas sobre seus recursos naturais e de subsistência e, por fim, propõe alternativas para mitigação das emissões e adaptação aos efeitos incontroláveis.
IHU On-Line – Como os guarani, ribeirinhos e trabalhadores rurais participarão da Rio+20? Que espaço eles irão dispor na Conferência?
Augusto Santiago – O programa Direito à Terra, à Água e ao Território – DTAT pretende garantir a participação de organizações comunitárias e de organizações de apoio na Rio+20. Nosso objetivo é incidir nesse fórum e dar visibilidade às contradições da economia verde e do modelo atual de desenvolvimento brasileiro, ao mesmo tempo em que buscamos esclarecer para a sociedade de que forma as comunidades e os povos tradicionais contribuem, e muito, para atingir as metas do Brasil referentes às mudanças climáticas.
IHU On-Line – Em que consiste a Cartilha Mudanças Climáticas e o Povo Guarani? Qual é seu objetivo?
Carolina Bellinger – O trabalho com os guarani nesse tema se iniciou em 2010, quando o
programa Direito à Terra, à Água e ao Território – DTAT, apoiado pela Agência ICCO,
convidou seus integrantes e representantes da base para conversar sobre mudanças climáticas.
A Comissão Pró-Índio de São Paulo indicou uma liderança guarani do Paraná e dois representantes da aldeia Tenondé Porã, de São Paulo, o atual cacique e um professor, para participarem do debate. Ao término, percebemos o quanto esse tema fazia sentido para os guarani. O tema dialoga diretamente com a visão de mundo deles. Por isso fizemos uma oficina com 18 lideranças guarani dos estados do Sul e do Sudeste.
Ao final, os participantes fizeram uma avaliação positiva da oficina, pediram para dar continuidade às capacitações em mudanças climáticas e reafirmaram a importância de levar essa discussão para as bases, principalmente para jovens e crianças. Viram também, no tema, uma boa oportunidade de valorizar a cultura guarani e reforçar o diálogo entre os jovens e os mais velhos.
Assim, quando planejamos nossas atividades de 2011, vimos que não poderíamos deixar fora o tema de mudanças climáticas. Portanto, consideramos importante produzir um material didático nas duas línguas e em linguagem simples, para que os professores pudessem utilizar o material em sala de aula, mas que também fosse utilizado para as lideranças.
Fizemos o convite aos professores da aldeia Tenondé Porã, localizada na Zona Sul de São Paulo, que atenderam prontamente e produziram esse material. Começamos o trabalho em junho, mas a cartilha foi lançada somente em 15 de dezembro de 2011. Estamos muito satisfeitos com o resultado, porque conseguimos lançar uma provocação para as bases, um início para discussão do tema nas aldeias.
Para 2012, a ideia é visitar aldeias do litoral e conversar com lideranças e jovens sobre o material produzido.
(Ecodebate, 16/03/2012) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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