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Notícia

A falta de vontade política em relação à questão indígena

 

Mas há ainda um outro capítulo referente aos retrocessos sociais no governo Dilma: o tratamento concedido à questão indígena, especialmente aos Kaiowá-Guarani, no Mato Grosso do Sul.

O embate envolvendo o agronegócio e os Kaiowá-Guarani foi tema da nossa análise de inícios de dezembro do ano passado, assim intitulada: Kaiowá Guarani: Um povo martirizado. ”Quando o boi vale mais que o índio”. A preocupação com o descaso que este povo vem sofrendo historicamente e a fim de recuperar elementos de sua cultura e modo de viver, originou também a edição n. 331, de 05 de maio de 2010, da Revista IHU On-Line – Os Guarani. Palavra e caminho.

O tema volta à baila sem que se possa vislumbrar sinais de que haja avanços ou uma solução mais satisfatória à vista. Pelo contrário, o que se percebe é uma passividade dos órgãos e poderes responsáveis, o que contribui para o acirramento do conflito. Há indícios suficientes para se crer que as coisas vão se arrastando pesarosamente na esperança – inútil, infundada e irresponsável – de que o conflito se resolva por conta. Entretanto, a história mostra que, em casos semelhantes, se houver alguma solução será a favor do mais forte. Neste caso, a sentença será – e está sendo – contra os kaiowá-guarani e a favor do agronegócio.

Nem mesmo no Executivo Federal, com Dilma Rousseff à frente, é possível identificar um interesse claro de que decisões políticas estejam sendo viabilizadas com a finalidade de dar uma solução justa à questão indígena. Pelo contrário, desde o próprio Executivo, passando pelo Judiciário e o Legislativo, há mais razões para se temer do que ter esperanças. Ou seja, há um clima generalizado de demora, passividade, apatia e omissão. E mais grave ainda, há tentativas legais que, caso se efetivem, podem representar retrocessos no tratamento dado à questão indígena em nosso país.

Descaso e passividade

A demora em se encontrar e nomear um novo presidente para a Fundação Nacional do Índio (Funai), por exemplo, é uma clara manifestação da falta de interesse envolvendo este órgão. Ainda em dezembro passado, o atual presidente, o antropólogo Márcio Meira, comunicou ao governo o seu desejo de se afastar do cargo e, desde então, reduziu seu tempo de trabalho na entidade. Quase três meses depois, a nomeação não saiu e o órgão governamental trabalha a meia bandeira. Ao contrário de outros órgãos e cargos públicos, este não desperta nenhuma cobiça.

Meira alega, para a sua saída, as constantes pressões que vinha recebendo da parte de indígenas e do agronegócio, insatisfeitos com a sua maneira de agir. Os indígenas reclamam maior respeito aos seus direitos e os deputados da bancada ruralista, atenção aos seus interesses expansionistas envolvendo a demarcação de terras indígenas.

A inoperância da Funai também é apontada pelo geógrafo Eduardo Luiz Damiani Goyos Carlini, que fez parte da Expedição Marcos Verón, que visitou, até o último dia 25 de janeiro, diversas aldeias do estado de Mato Grosso do Sul para registrar a situação de vida dos Guarani-kaiowá e as ameaças de morte às suas lideranças.

“Existe uma clara inoperância da Funai em dar andamento aos procedimentos necessários à demarcação, que leva ao aumento de conflitos entre os fazendeiros e os índios do Mato Grosso do Sul como um todo (tanto é que, segundo dados do relatório do CIMI, essa é a região onde os indígenas mais sofrem violência, assassinatos, etc., de todo o país)”, denuncia Eduardo Carlini.

E prossegue em sua análise: “Quando as ocupações são objeto de ação judicial de reintegração de posse, o Judiciário alega, muitas vezes, que a ausência de estudos e providências por parte da Funai para caracterizar a área como ‘terra tradicionalmente ocupada por índios’, faz com que prevaleça o direito de propriedade dos donos das terras ocupadas ou retomadas.”

Eduardo Carlini cita como demonstração da postura “mediadora” da Funai a recente declaração da encarregada do órgão no Mato Grosso do Sul, que afirmou que “o papel da Funai é mediar o conflito entre os fazendeiros e os indígenas”. “A encarregada da Funai não fez nada mais do que nos mostrar qual o interesse do governo sobre essa questão. Afinal, atender à demanda indígena é contrariar a política federal de incentivo ao agronegócio. Por isso que essa situação está sendo ‘mediada’, em vez de ser resolvida”, critica o geógrafo. Carlini lembra que a “Funai é o órgão federal responsável pelo estabelecimento e execução da política indigenista brasileira em cumprimento ao que determina a Constituição Federal Brasileira de 1988”.

A lentidão da Justiça brasileira para finalizar os processos relacionados às homologações de terras indígenas colabora para aumentar o clima de tensão e violência nas áreas de conflito, especialmente no estado do Mato Grosso do Sul.

Para a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo e uma das fundadoras da Associação de Juízes pela Democracia (AJD) Kenarik Baujikian, os processos de demarcação e homologação de terras indígenas não podem tramitar por anos nos tribunais sem que tenha uma definição. “A demora na solução acaba reforçando os problemas que existem de violência, tensões, seja dentro das comunidades indígenas, seja nas outras comunidades que estão em volta. O Judiciário tem cumprido um papel de reforçar [isso], na medida em que a questão da demarcação de vários processos está paralisada no Supremo Tribunal Federal”, argumentou.

Segundo a desembargadora, devido à lentidão do Poder Judiciário tanto índios quanto fazendeiros e produtores rurais partem para o conflito a fim de defender seus direitos. “A demora da Justiça contribui para a violência e não só para isso como também para a instabilidade geral em todos os sentidos, inclusive, econômico dos envolvidos. A pior coisa que pode acontecer é não se resolver esse problema logo, seja por meio das homologações, seja pelas questões que já estão no Judiciário”, acrescentou a desembargadora.

Kenarik Baujikian também responsabilizou o Poder Executivo pela dificuldade em solucionar os problemas indígenas. “Não é só o Judiciário. O Executivo [tem responsabilidade] também porque existem atribuições próprias do Executivo e isso não tem sido realizado. Estamos muito atrasados em relação a isso e o que só vem reforçar a questão de incerteza, tensão para todas as pessoas envolvidas.”

A demora e a cegueira da Justiça também são apontadas pelo geógrafo Eduardo Carlini. “Outra questão sobre a qual não podemos deixar de refletir é o momento em que a justiça se faz cega. Os crimes, quando julgados, são entendidos como crimes comuns. A real situação do conflito agrário no Brasil é abrandada com a ideia de justiça no momento da condenação dos pistoleiros e raramente de seus mandantes, os fazendeiros. Pontualmente retiram-se de cena alguns atores, ao tempo em que permanece no cotidiano do campo brasileiro o agrobanditismo, violentando os mais variados territórios não capitalistas”, diz ele.

Dessa maneira, o campo transforma-se num verdadeiro palco de guerra, cujas vítimas exclusivas são os indígenas, agricultores e/ou extrativistas. Segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 38 índios foram assassinados nos nove primeiros meses do ano passado, sendo 27 no Mato Grosso do Sul, cenário de tensas disputas por direitos territoriais. Esses números são engrossados por pelo menos oito assassinatos de agricultores familiares e/ou extrativistas em disputas com grileiros de terras, principalmente na região norte.

Em face do aumento da violência no campo, são as mulheres que se levantam para tomar a defesa dos seus direitos. No encontro da Jornada de Luta das mulheres camponesas e indígenas do Mato Grosso do Sul, que reuniu mulheres de todo o Estado do Mato Grosso do Sul neste começo de mês, elas externaram sua dura realidade: “Cansamos de esperar nossa terra, que para nós é sagrada, é nossa vida, onde a mata é nosso espírito… queremos nossa terra de volta. Chegou a hora das mulheres indígenas na luta, conseguirmos nossa vitória. Derramamos lágrimas pela terra. Lutamos pelos nossos direitos, sofremos pela nossa terra, olhamos para a frente, nossa terra sem males”.

Em documento entregue ao Ministério Público Federal, as mulheres indígenas e camponesas fazem graves denúncias de violação de seus direitos e das violências impetradas pelo sistema de concentração de terra, considerado um sistema de morte. “A urgente identificação e demarcação de nossas terras, como condição para diminuir a fome, a dependência e violência em nossas aldeias e acampamentos. Caso isso não aconteça vamos ajudar nossos guerreiros nas retomadas de nossos tekohá. Se o governo não cumprir os prazos vamos levar às instâncias internacionais como OEA e ONU”.

A violência contra a causa dos indígenas se reveste de diversas maneiras, como mostra outro acontecimento. No final do mês de fevereiro, em articulação com o movimento da Aty Guasu, uma equipe de reportagem canadense esteve em várias áreas Kaiowá Guarani documentando as violências e agressões que sofreram, principalmente a partir do final do ano passado. Quando iam concluir o trabalho junto à Funai de Dourados, foram surpreendidos com uma ordem de prisão e apreensão de toda a documentação realizada durante uma semana. Não foi levada em consideração a veemente argumentação das lideranças indígenas, de que eram eles, e não o governo, que decidiam quem eles queriam que os apoiassem. Depois horas e de alguns contatos com escalões superiores, do Palácio do Planalto e Embaixada, os repórteres canadenses, um dos quais trabalha no New York Times, foram liberados, e deixaram em seguida o país.

Em nota, o Conselho da Aty Guasu se manifestou dizendo que “apesar da existência de nosso direito a recuperar as nossas terras antigas, porém entendemos que até hoje não há ainda uma política clara do Governo Federal para efetivar a demarcação definitiva das nossas terras tradicionais, isto é, em nossa visão não existe uma posição e ação segura do Estado-Nação e da Justiça para efetivar a devolução da parte dos nossos territórios tradicionais reivindicados. Exemplo: a identificação e demarcação de nossos territórios Guarani-Kaiowá iniciadas pela Fundação Nacional dos Índios (FUNAI) ao longo das décadas de 1990 e 2000 encontram-se todas paralisadas nas Justiças.” (Nota do Conselho da Aty Guasu, 28-02-2012)

Após tecer considerações sobre as políticas de Educação e Saúde indígena, afirmam:  “Pensamos que seria necessário se construir uma política do Estado para a devolução/demarcação definitiva das partes de nossas terras tradicionalmente ocupadas por nós Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul”.

Na sua carta aberta, as lideranças da sociedade civil apontam também como exemplo de descaso com que questões sociais são tratadas, “o congelamento dos processos de reconhecimento de terras indígenas e quilombolas ao mesmo tempo em que os órgãos públicos aceleram o licenciamento de obras com claros problemas ambientais e sociais”. A bem da verdade, no caso dos licenciamentos, não se trata de inatividade do Estado; pelo contrário, de uma extrema eficiência atropeladora.

Aliás, essa sua eficiência atropeladora foi motivo de denúncia junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT). Um relatório da Comissão de Especialistas em Aplicação de Convenções e Recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), divulgado no começo de março, confirma que o governo brasileiro deveria ter realizado as oitivas indígenas nas aldeias impactadas por Belo Monte antes de qualquer intervenção que possa afetar seus bens e seus direitos. A nota técnica da OIT corrobora a posição do Ministério Público Federal (MPF) e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que já interpelaram o governo brasileiro sobre a não realização das oitivas.

De acordo com o documento da OIT, “a Comissão lembra que, em virtude do artigo 15 da Convenção, o governo está obrigado a consultar os povos indígenas antes de empreender ou autorizar qualquer programa de exploração dos recursos existentes em suas terras”, afirmando que Belo Monte poderá alterar a navegabilidade do Xingu, bem como a fauna, a flora e o clima da região. Estes impactos, afirma a OIT, “vão mais além da inundação das terras ou dos deslocamentos dos referidos povos”.

A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das “Notícias do Dia’ publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, com sede em Curitiba-PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.

(Ecodebate, 16/03/2012) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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2 thoughts on “A falta de vontade política em relação à questão indígena

  • Fica cada vez mais evidente que os poderes do Estado brasileiro, a nível federal, só defendem os interesses das empresas, tendo como meta o crescimento do produto interno bruto (PIB), e relegam ao abandono as camadas mais carentes da sociedade. Até a Constituição é esquecida quando não é favorável aos seus interesses. E eles (os poderes do Estado brasileiro) vivem dizendo que valorizam o estado de direito. Quando? Somente quando os favorece e quando contribui

  • Quando é que os poderes do Estado brasileiro – o exetutivo, o legislativo e o judiciário – valorizam o chamado estado de direito? Somente quando os favorece e quando contribui para o crescimento do PIB?
    Na questão indígena, a Constituição Fesderal de l988 tem sido, criteriosamente, jogada às favas. Mas, como o artigo deixou claro, já existe projeto de emenda constitucioanal (PEC) para melhor defender os interesses das empresas e do Estado.

    E o povo brasileiro tem que assistir a tudo isso, sem poder fazer nada.

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