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Artigo

Oferta e estresse hídrico na região Metropolitana de São Paulo, artigo de Wagner Costa Ribeiro

 

RESUMO

Este texto visa analisar a oferta e o estresse hídricos na Região Metropolitana de São Paulo. Para tal, com base em dados secundários, analisa documentos à luz da literatura para discutir a oferta e o uso dos recursos hídricos. Como conclusão, indica a necessidade de aumentar o debate em torno do uso da água e instalar novos foros de gestão da água que envolvam atores para além da escala metropolitana.

Palavras-chaves: São Paulo, Oferta hídrica, Estresse hídrico, Governança da água, Recursos hídricos.

 


ABSTRACT

This text aims to analyze supply and water stress in the Metropolitan Region of São Paulo. To this end, based on secondary data, analyze documents in the light of literature to discuss the offer and use of water resources. The conclusions indicate the need to raise the debate on water use and install new water management forums involving actors beyond the metropolitan scale.

Keywords: São Paulo, Supply water, Water stress, Water governance, Water resources.


 

 

Analisar a oferta hídrica em São Paulo é um exercício necessário e permanente. A dinâmica social que ocorre na principal metrópole brasileira impõe situações novas numa velocidade intensa que apresenta desafios

a gestores, tomadores de decisão e à sociedade civil. Muito menos que um quadro estático, verifica-se uma ampliação e renovação do tecido urbano que é acompanhada por intensa verticalização, que necessita da água para a produção da cidade e sua infraestrutura, o que amplia ainda mais o uso da água para serviços urbanos, como a limpeza pública.

Além disso, os cerca de dez milhões de habitantes do município necessitam de água para higiene pessoal, ingestão e preparo de alimentos, e uma parcela menor, mas não desprezível, a usa ainda para o lazer. Entretanto, é fundamental lembrar desde logo que, no município de São Paulo, parte expressiva do uso da água é destinada ao uso industrial.

Tal conjunto de atividades gera um quadro complexo de disputa pela água. Outra variável relevante é que o abastecimento foi planejado de modo integrado e em uma escala que ultrapassa os limites municipais. Por isso é preciso analisar a oferta e a demanda hídricas na escala da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Parte da água utilizada é captada em municípios que estão em outro Estado da federação, o que obriga levar a análise à escala federal, ampliando a complexidade da resolução do abastecimento hídrico no maior aglomerado urbano do Brasil.

Este texto apresenta uma reflexão sobre a situação do abastecimento hídrico em São Paulo, com base em dados secundários gerados por relatórios técnicos que são combinados à literatura acadêmica. Inicialmente, expõe-se como a integração da distribuição da água em São Paulo exige que sejam pensadas alternativas que transcendam os limites municipais. Ao integrar a Região Metropolitana de São Paulo, o município precisa administrar necessidades de várias ordens, ainda que seja o principal usuário de água para abastecimento humano. A água tem outros usos, como o industrial, o agrícola e a geração de energia, o que impõe o diálogo para resolver tensões que as diferentes visões sobre os recursos hídricos engendram. Também é preciso contextualizar a maior região metropolitana e sua relação com a vizinhança, pois as alternativas de captação de água envolvem diretamente sua oferta e uso pelos vizinhos. Depois, discutem-se oferta hídrica e o uso da água na RMSP. Por fim, apresentam-se as conclusões.

 

Dimensionando o problema

Algumas informações são importantes para vislumbrar a dimensão do problema, que deve ser avaliado em diversas escalas, cada qual impondo desafios que necessitam ser abordados de modo convergente pelas diferentes esferas de poder político.

O Estado de São Paulo chegou, segundo dados preliminares do Censo de 2010 do IBGE,1 a 41.252.160 habitantes. O município de São Paulo tinha naquele mesmo ano 11.244.369 de habitantes. A população da RMSP era estimada em cerca de 20 milhões e a população brasileira chegava a 190.732.694 (IBGE, 2010). A população da RMSP está distribuída por uma área de cerca de 8.051 km²,2 o que é cerca de 0,1% do território brasileiro, mas concentra-se em uma mancha urbana de cerca de 2.209 km². Aqui está o primeiro desafio a ser enfrentado: conseguir água de qualidade para mais de 10% dos habitantes do Brasil que estão concentrados em menos de 0,1% do território do país!

A Tabela 1 permite uma visão do problema em outras escalas. Ela agrega informações das regiões metropolitanas paulistas e permite posicioná-las em relação ao Brasil e ao Estado de São Paulo.

 

 

Os dados indicavam que, em 2006, as três regiões metropolitanas paulistas ocupavam cerca de 5,7% da área do Estado, mas concentravam 58,5% de sua população! Em relação ao Brasil, as três regiões metropolitanas chegavam a 0,16% em área do país, mas alcançavam 12,9% da população brasileira. Tal concentração foi chamada de macrometrópole pelos governos do Estado de São Paulo, conforme o Mapa 1.

 

 

O mapa expressa uma série de manchas urbanas que têm o município de São Paulo como núcleo principal e catalisador. Também permite averiguar a proximidade entre as regiões metropolitanas. A distância por estradas de Campinas a Santos, passando por São Paulo, chega a aproximadamente 171 km, que poderiam ser percorridos em pouco mais de duas horas e meia de caminhão.3

Na Região Metropolitana de Campinas, encontra-se a Universidade Estadual de Campinas, uma importante universidade estadual que funciona como atração de empresas de alta tecnologia, como as que integram o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD), instalado em 1976 pela Telebrás, na época uma estatal que monopolizava os serviços de telecomunicações no Brasil, no qual foram desenvolvidos importantes produtos tecnológicos, como os cartões de telefonia pública utilizados ainda hoje. Com a privatização da Telebrás, em 1998, o CPqD tornou-se uma fundação privada para desenvolvimento tecnológico na área de comunicações e mantém sua vocação de desenvolver novas tecnologias. Porém, além de setores que dependem de infraestrutura de pesquisa, a região abriga indústrias do setor automotivo e um importante polo de produção têxtil, que congrega vários municípios dos quais Americana é o mais relevante, que é um consumidor intensivo de água.

A Região Metropolitana de Santos, por sua vez, além da abrigar o polo petroquímico de Cubatão (outro segmento intensivo no consumo da água), atrai turistas paulistanos, o que demanda muita água sazonalmente (não são raras as situações em que condomínios de alto padrão em praias do Guarujá, por exemplo, ficam sem água em feriados prolongados e férias escolares – o mesmo se verifica em praias mais populares, com uma frequência ainda maior). A presença do Porto de Santos na região é fundamental. É por meio dele que a produção das regiões metropolitanas de Campinas e de São Paulo é exportada. A ele chegam também insumos importados para a produção industrial naquelas localidades. O Porto de Santos é o principal do Brasil em volume e valor de material transportado e tem função estratégica para o país.

Já a Região Metropolitana de São Paulo possui uma diversificada atividade econômica. Ao mesmo tempo que os serviços predominam na economia do município de São Paulo, a atividade industrial é fundamental em municípios como Diadema, Guarulhos, Santo André, São Caetano e São Bernardo do Campo. Em municípios como Mogi das Cruzes, apesar de a presença industrial ser relevante, também se destaca a produção agrícola que abastece a metrópole paulistana. Por isso a Região Metropolitana de São Paulo é mais complexa que as anteriores, pois apresenta uma elevada gama de atividades econômicas que usam a água em níveis muito diferentes, o que gera disputas pelo uso da água em seu interior.

Não bastasse a vizinhança de duas regiões metropolitanas densas como as citadas, a Região Metropolitana de São Paulo tem em seu entorno outras duas áreas muito dinâmicas do ponto de vista econômico, que resulta em um acelerado processo de urbanização. A partir do Mapa 1, observa-se, à direita da metrópole paulistana, o Vale do Paraíba, no qual se encontra em desenvolvimento uma extensa mancha urbana que parte de São Paulo em direção ao Rio de Janeiro. Nessa porção do território paulista, também se encontram indústrias, em especial no município de São José dos Campos que, como Campinas, reúne tanto indústrias intensivas no consumo de água como as do setor petroquímico e de montagem de carros, quanto indústrias de base tecnológica, como as do Parque Industrial Armamentista que cresceu junto ao Centro Tecnológico da Aeronáutica, criado ao longo da segunda metade do século XX por meio de uma série de ações governamentais que resultou em empresas voltadas à produção de aeronaves para uso civil e militar, outras voltadas para a produção de armas e para a geração de sistemas de comunicações. Tomando o mapa como referência, à esquerda da Região Metropolitana de São Paulo, encontra-se outra área dinâmica que tem como base o desenvolvimento industrial a partir de Sorocaba, onde são produzidas para exportação hélices destinadas a sistemas de geração de energia eólica. A presença de novas unidades de Ensino Superior na região, como a Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba, indica que em breve teremos mais indústrias de base tecnológica nessa porção do território paulista.

Definir uma macrometrópole para situar a grande concentração urbana no Estado de São Paulo foi um acerto dos técnicos do Estado, pois trata-se de uma área que possui características que se articulam. Mas isso é insuficiente! É necessário articular esforços para introduzir uma nova visão que permita que o planejamento organize as atividades para evitar grandes demandas de água, de energia e gerar muito lixo. Em outras palavras, é fundamental definir novas maneiras de governança da água,4 pois os problemas transcendem limites físicos, como os da Bacia do Alto Tietê, e políticos, como as divisões municipais e até estaduais, dada a captação de água em Minas Gerais. As dificuldades devem ser pensadas antes que as novas atividades se instalem e agravem tensões pelo uso da água no interior da maior concentração urbana do Brasil.

A seguir, veremos como o uso atual da água na Região Metropolitana de São Paulo já aponta problemas para o abastecimento hídrico.

 

Oferta hídrica e uso da água na Região Metropolitana de São Paulo

Qualquer que seja a unidade territorial (município, Estado, país ou mesmo Região Metropolitana – que não é uma unidade política), é preciso estar atento a duas premissas quando se discute a geografia política da água: o uso dos recursos hídricos e a oferta hídrica (Ribeiro, 2008).

O uso da água é muito diversificado e pode gerar maior ou menor necessidade hídrica. Ele também deve ser discutido à luz da melhor técnica empregada, que nem sempre é a de maior produtividade. Em tempos de pegada hídrica,5 a quantidade de água usada para a produção de um determinado produto é um diferencial que deverá ser considerado em breve pelos consumidores. Em outras palavras, não está longe o tempo em que na embalagem de uma mercadoria (agrícola ou industrial) teremos anotado o total de água necessário para que o produto fosse produzido e o consumidor possa assim escolher aquele que menos água usou. Isso não é um simples apelo à eficiência ecológica, mas uma necessidade que se impõe diante dos limites da oferta hídrica em muitas localidades.

Para tratar da oferta hídrica, é preciso lembrar alguns conceitos. Primeiro, a água renovada, que é quantificada a partir da pluviosidade, que deve ser subtraída da água que evapora, mais a necessária para os serviços ecossistêmicos (manutenção dos sistemas naturais, como a água usada por outros seres vivos para viverem e reproduzirem-se, o que amplia a conservação da biodiversidade). Essa é a quantidade de água que vai entrar no sistema sazonalmente, que pode ser aferida por meio de cálculos estatísticos para estabelecer o volume com maior precisão a partir de séries históricas de medição das chuvas em uma localidade territorial, desde que se conheça também o volume de água para manter a dinâmica natural necessária à preservação dos sistemas naturais que ocorrem naquela área.

A água renovada é somada à vazão média de corpos d’água superficiais ou subterrâneos. No caso das águas superficiais, é preciso medir a vazão dos rios principais e ponderá-las com as séries históricas das chuvas. Já as águas subterrâneas são mais difíceis de avaliar, pois os aquíferos brasileiros são pouco conhecidos. Não existem muitos estudos sobre a hidrogeologia dos sistemas aquíferos brasileiros, o que dificulta dimensionar com maior precisão o volume de água que ele oferece e, especialmente, sua capacidade e pontos de recarga.

 

 

A oferta hídrica é a quantidade de água disponível por habitante em uma unidade territorial. Ela pode ser obtida pela soma da água renovada com o estoque hídrico (vazão média dos rios ou volume conhecido nos aquíferos), cujo resultado deve ser dividido pela população da unidade territorial. Existem duas formas aceitas na literatura que procuram avaliar a oferta hídrica: a escassez hídrica e o estresse hídrico (ibidem, 2008).

A primeira pode ser física, quando o volume de água é insuficiente para abastecer a população e decorre, em geral, da baixos índices de pluviosidade ou do uso muito acima da oferta hídrica. A segunda ocorre quando não há recursos financeiros para captar e trazer água de outros pontos até o local de consumo. O estresse hídrico é “resultado da relação entre o total de água utilizado anualmente e a diferença entre a pluviosidade e a evaporação (a água renovada) que ocorrem em uma unidade territorial” (ibidem, 2008).

Os dados de chuva apontaram a seguinte situação para a RMSP, sintetizados na Tabela 2.

 

 

Em média, as chuvas atingem 1.400 mm anuais na RMSP (Comitê…, 2002). Entretanto, as chuvas não ocorrem de modo uniforme e chegam a 3.000 mm junto à Serra do Mar (Fusp, 2009). A Tabela 2 indica que as áreas das sub-bacias da Billings e da Guarapiranga são as que apresentam maiores incidências de chuvas (média de 2.500 e 1.528 mm/ano, respectivamente). Por meio desse indicador, não é possível afirmar que São Paulo está em regime de escassez hídrica.

Não basta chover. É preciso ter condições de armazenamento da água para depois tratá-la e distribuí-la. Na Região Metropolitana de São Paulo, as chuvas intensas do verão acabam se transformando em ameaças, pois agravam situações de risco que geram escorregamentos de terra e enchentes. Não existe capacidade para armazenar toda a água que cai na superfície.6 Os “piscinões”, um sistema de armazenamento de águas pluviais construído sob áreas mais sujeitas a alagamentos, não são suficientes para captar a água e a contaminam, pois sua limpeza não é realizada com regularidade. A água que passa pela metrópole de São Paulo acarreta problemas a municípios a jusante, como alagamentos, nos períodos de fortes chuvas, ou contaminação da água que é usada para abastecimento.

Mesmo que as águas pluviais do período chuvoso fossem retidas e tratadas, elas não seriam suficientes para alterar o quadro do abastecimento hídrico na RMSP (Ribeiro, 2004). De acordo com o Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê:

O consumo total de água da bacia excede, em muito, sua própria produção hídrica. A produção de água para abastecimento público está hoje em 67,7 m3/s, dos quais 31 m3/s são importados da Bacia do rio Piracicaba, localizada ao norte da Bacia do Alto Tietê, 2,0 m3/s de outras reversões menores dos rios Capivari e Guaratuba. Este volume atende 99% da população da Bacia. A Bacia consome ainda 2,6 m3/s para irrigação e a demanda industrial é parcialmente atendida pela rede pública (15% do total distribuído) e parte por abastecimento próprio através de captações e extração de água subterrânea. (Fusp, 2009, p.58)

A linguagem técnica leva o leitor a imaginar algo que realmente não ocorre na natureza. Não existe produção de água, como afirma a passagem citada. Os técnicos referem-se à capacidade de uma bacia reter água em condições de uso. A água, como substância, não é produzida. Mesmo na dessalinização ela não é produzida, mas sim separada dos demais elementos químicos por meio do aquecimento, o que emprega muita energia. Outros criticam o uso dessa linguagem por acreditarem que ela associa o fornecimento à venda da água, uma das premissas da privatização dos serviços de água aplicados em vários lugares do mundo desde a década de 1990 como uma diretriz do Banco Mundial. Para os defensores dessa forma de oferecer água, seu tratamento, com a agregação de elementos químicos como flúor, por exemplo, seria suficiente para conferir um “processamento industrial” à água e, portanto, lhe agregar valor. Isso é muito diferente de ponderar os custos, que não são poucos, de coleta, tratamento e distribuição da água, que devem ser financiados pelo Estado por se tratar de uma substância vital à vida que não pode ser transformada em uma fonte de lucro.

Também é digno de nota a informação de que a produção industrial capta 15% do total distribuído e o resto do abastecimento industrial é “próprio através de captações e extração de água subterrânea”. Cabem as perguntas: Quanto dessa água captada para fins industriais é identificado pelo Estado? Quanto foi outorgado? E se a captação for legal, existe fiscalização para aferir o quanto é retirado? Aqui está um tema que deve ser analisado com mais cautela.

A retirada de água subterrânea sem controle pode resultar em dificuldades de abastecimento no curto e médio prazos.7 O rebaixamento natural do lençol freático no período de menor precipitação pode ser ainda maior em razão da explotação da água, o que pode trazer consequências de duas ordens: diminuir a capacidade de reposição natural da água do lençol, e necessidade de aprofundar os poços em funcionamento para atingir a água em níveis cada vez mais profundos. Sem a regulação do Estado, a retirada da água pode ser excessiva e levar ao abandono precoce do poço, além de possibilitar o surgimento de conflitos entre usuários que podem vir a ter redução do volume de água subterrânea captado. Em geral, os empresários tomam a iniciativa de perfurar novos poços, mais uma vez sem estudar as condições naturais da área, o fluxo e a dinâmica das águas subterrâneas, o que pode resultar em uso intensivo e incorreto dos recursos hídricos subterrâneos de maneira cíclica. A presença do órgão fiscalizador é, portanto, fundamental, apesar das dificuldades em se controlar esse tipo de captação de água. Os usuários sabem que é difícil identificar cada perfuração e, especialmente, controlar o volume retirado e abusam dessa situação.

Por isso, as principais fontes de abastecimento são as águas superficiais. A Tabela 3 indica como estava a capacidade de fornecimento de água por sistema produtor, na expressão usada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).

 

 

Observa-se que a Sabesp consegue disponibilizar 67,7 m3/s para a RMSP, porém a distribuição desse volume é desigual. O Sistema Cantareira é responsável por cerca de metade do total. Para garantir o fornecimento desse volume, esse sistema recebe água de outras bacias, como a do Rio Piracicaba, que também é usado como uma das principais fontes hídricas da Região Metropolitana de Campinas (RMC) e do Estado de Minas Gerais. Por isso, o abastecimento hídrico em São Paulo tem dimensão federal e contou com mediação da Agência Nacional da Água (ANA). Os sistemas Guarapiranga e Alto Tietê são os dois fornecedores que vêm depois do Cantareira, e somados disponibilizam cerca de um terço do total de água na RMSP. O primeiro tem uma peculiaridade, pois foi organizado com uma premissa muito importante: o uso múltiplo da água. Por isso, suas represas funcionam como reservatório de água para abastecimento, mas também para gerar energia e para regular cheias. Tudo perfeito, não fosse a instalação de um polo industrial às margens das represas Billings e Guarapiranga, com maior concentração na primeira, que resultou no lançamento de efluentes industriais e na sua contaminação, o que reduz muito a capacidade do reservatório em oferecer água de qualidade à população da RMSP e aumenta o risco de contaminação.8 Destaque-se a polêmica que envolveu o aproveitamento do braço Taquacetuba, da Billings, que foi apresentado como contaminado por ambientalistas, mas que, mesmo com as denúncias, foi incorporado para fornecer água, em 2000.9 O Alto Tietê, por sua vez, integra os reservatórios Ponte Nova, Paraitinga, Biritiba, Jundiaí e Taiaçupeba. As águas do Ponte Nova e do Paraitinga chegam ao leito do Rio Tietê onde são recalcadas para o reservatório Biritiba. Desse ponto, seguem por gravidade, passando pelo Jundiaí até chegarem ao Taiaçupeba.

O uso da água é bastante desigual na RMSP, como indica o Gráfico 1.

 

 

Embora predomine o abastecimento público, com 58% das outorgas de água, o uso industrial ainda é muito importante, com 39% das outorgas. É preciso lembrar que os 58% são usados para cerca de 20 milhões de habitantes, enquanto o uso industrial é concentrado em unidades industriais intensivas no uso da água.

Como exemplo de situações que devem ser revistas, são citadas a Petroquímica União, a Suzano Papel e Celulose e a Clariant, que estão às margens do Rio Tietê, a montante do município de São Paulo, e são citadas no Plano de Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, que somadas possuem uma outorga maior, em volume, que a concedida para o município de Mogi das Cruzes. É fundamental rever a presença de atividade industrial intensiva no uso da água na RMSP. Será que o total de empregos e de impostos que elas geram justificaria mantê-las? Ou seria mais vantajoso para a população remanejá-las e ampliar a oferta hídrica?

A distribuição das outorgas para captação de água apontavam 0% para geração de energia, o que não deixa de ser curioso. Parte expressiva da água acumulada na Billings, por exemplo, tem como destino a geração de energia na usina Henri Borden, em Cubatão, que está na Região Metropolitana de Santos, na macrometrópole paulista. Também é relevante apontar a intenção da Empresa Metropolitana de Água e Energia S. A (Emae),10 de retomar a geração de energia na usina Edgar de Souza em razão da falta de energia que assola a RMSP atualmente.

Em relação às outorgas de lançamento no Alto Tietê, observa-se, a partir do Gráfico 2, que as indústrias têm mais outorgas, 52%, seguidas pelo uso sanitário, 41%. Essa situação espelha um descompasso entre captação e lançamento. Seria desejável que o setor sanitário correspondesse ao maior volume captado, mas isso não ocorre em razão da ausência de coleta de esgoto em parte da rede. Por sua vez, o maior lançamento que captação pelas indústrias confirma que elas usam fontes alternativas e próprias para captação de água, como a água subterrânea, por isso lançam mais que captam.

 

 

Considerações finais

Não resta dúvida de que a oferta hídrica na RMSP é pequena, a considerar-se o volume oferecido em razão do contingente populacional. Além disso, a captação envolve Estados vizinhos e dividir água com outras metrópoles no entorno, o que exige que se busquem alternativas que contemplem interesses muito diferentes e até antagônicos. Outro aspecto a ponderar é a presença, tanto a leste quanto a oeste, de dois polos de desenvolvimento industrial e urbano que também demandam muita água, o que dificulta discutir alternativas como a captação de água nesses locais.

Ressalte-se a importante iniciativa do governo do Estado de São Paulo em definir uma macrometrópole no Estado. Realmente existem atividades complementares entre as três regiões metropolitanas que permitem associar tais áreas, que devem ser analisadas em conjunto. Elas somam mais de 58% da população do Estado, concentradas em uma área de cerca de 6% na qual estão as atividades mais expressivas do ponto de vista econômico, financeiro e de serviços do Estado. Em relação ao Brasil, representam cerca de 12% da população do país!

É fundamental definir uma forma de ação política que confira à macrometrópole capacidade de gestão articulada. Caso isso não ocorra, o importante exercício de regionalização se tornará apenas um rascunho de uma política pública. Avançar nessa direção é um imperativo, e para tal seguem sugestões:

  • Constituir um Conselho Político para cada Região Metropolitana com representantes dos setores organizados da sociedade (trabalhadores, industriais, comércio, universidades, ambientalistas e políticos) para avaliar as tendências de médio e longo prazos do desenvolvimento econômico, que deve pautar a diminuição das desigualdades sociais;
  • Constituir um Conselho Político da Macrometrópole, envolvendo os mesmos setores citados no caso acima, com representação das três regiões metropolitanas;
  • Estabelecer gestão junto a prefeitos para que definam, a partir de indicações dos Conselhos Políticos acima, políticas públicas articuladas que possam garantir o acesso à água de qualidade aos habitantes da macrometrópole.

Outro aspecto que não pode deixar de ser comentado é o uso da água na RMSP. Embora majoritariamente ele se destine ao setor do abastecimento público, é insuficiente e pode entrar em colapso em curto prazo, a manterem-se os níveis de crescimento do consumo da água. Por isso, é fundamental iniciar a discussão do que se quer fazer com a água na maior metrópole brasileira. Seria conveniente manter indústrias intensivas no uso da água diante do cenário de estresse hídrico atual? É justo permitir a captação por meios próprios de água subterrânea para fins industriais em um cenário de estresse hídrico?

Para esses aspectos, apresentam-se as seguintes sugestões:

  • Definir parâmetros claros, com discussão entre os diversos setores, para captação de água subterrânea para fins industriais.
  • Avaliar a pertinência em manter indústrias intensivas no uso da água na RMSP.
  • Estimular o reúso da água.
  • Aumentar o tratamento de esgoto, que ao fim libera água para usos secundários, como o industrial.

O quadro é desconfortável, pois é iminente a falta de água de qualidade. As chuvas intensas permitem a reposição parcial da oferta hídrica, o que não leva a Região Metropolitana de São Paulo a uma situação de escassez hídrica, mas sim de estresse hídrico, dada a dificuldade em conseguir água de qualidade para abastecimento público. Por isso, é necessário e urgente discutir os rumos do uso da água para evitar constrangimentos e acirramentos de tensões. Para tal, já existem formas de comunicação e de exercício democrático do poder que, contudo, têm sido insuficientes para organizar a oferta hídrica na macrometrópole paulista. Apostar na governança, no envolvimento dos diversos segmentos interessados no tema, é a alternativa mais viável, ainda que lenta, de resolução de conflitos pelo acesso à água de qualidade.

 

Notas

1 Dados obtidos em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/primeiros_dados_divulgados/index.php>. Acesso em: jan. 2011.

2 Dados obtidos em: <http://www.emplasa.sp.gov.br/portalemplasa/infometropolitana/rmsp/rmsp_dados.asp>. Acesso em: jan. 2011.

3 Dados obtidos em: <http://www1.dnit.gov.br/rodovias/distancias/distancias.asp>. Acesso em: jan. 2011.

4 Já existem análises sobre a governança da água no Estado de São Paulo, como as de Ribeiro (2009), Jacobi (2010) e Fracalanza et al. (2010).

5 Para mais informações, ver Hoekstra et al. (2011).

6 Pereira Filho et al. (2007) analisaram as condições atmosféricas nas situações em que ocorreram alagamentos de grande magnitude em São Paulo e apontaram dois aspectos relevantes: aumento em cerca de 395 mm das chuvas e da temperatura em cerca de 2,1 graus Celcius. Eles associaram essas condições à ilha de calor (áreas mais aquecidas no interior da metrópole, analisadas também por Lombardo (1985)) e ao processo de urbanização.

7 Para uma análise das consequências socioambientais da retirada de água subterrânea, ver Villar & Ribeiro (2009).

8 Para uma análise do conceito de risco no mundo atual, ver Zanirato et al. (2008).

9 A tese de doutorado de Mayla Matsuzaki (2007, p.119), defendida na Faculdade de Saúde Pública da USP, apresentou em suas conclusões que “A transposição das águas do braço Taquacetuba pode estar influenciando a qualidade das águas da Represa Guarapiranga, especialmente em relação às concentrações de nutrientes e densidades de cianobactérias potencialmente tóxicas”. Além disso, ao analisar as águas da Guarapiranga e da Billings, a autora encontrou elementos químicos e cianobactérias em níveis superiores aos admitidos na legislação.

10 Antiga The São Paulo Railway, Light and Power Company Limited, que foi estatizada em 1981 como Eletropaulo e que, em 1998, foi desmembrada em quatro empresas independentes: Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A., Eletropaulo Metropolitana – Eletricidade de São Paulo S.A., Empresa Bandeirante de Energia S.A (EBE) e Empresa Paulista de Transmissão de Energia Elétrica S.A. (Epte).

 

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Wagner Costa Ribeiro é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). @ – wribeiro@usp.br

Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142011000100009 

EcoDebate, 14/02/2012

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