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Artigo

Uma polêmica sobre o preço forjado da energia da hidrelétrica de Belo Monte, artigo de Marcos Vinícius Miranda

 

[Jornal da Ciência] No dia 12 de janeiro de 2012, o Jornal da Ciência divulgou o artigo de minha autoria intitulado ‘Hidrelétrica Belo Monte: a sistemática econômica do governo federal‘. Nele, argumento que o baixo preço de venda da energia da hidrelétrica Belo Monte foi alcançado a partir da utilização de uma sistemática econômica que é composta pelo uso de baixa taxa de desconto; pela adoção de Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST) irreal, particularmente para o caso da transmissão da energia para além do ponto de conexão com a rede do sistema interligado; pelo mecanismo dos leilões reversos, nos quais os vencedores são aqueles que fazem os lances mais baixos para a energia dos empreendimentos licitados; e pelas vantagens econômicas e financeiras proporcionadas pelo governo federal aos empreendedores dessa usina, além do suporte do contrato de concessão e da resignação das empresas estatais em aceitar baixa taxa de remuneração para o capital que será investido na construção de Belo Monte.

Essa hipótese é parte de uma ideia mais ampla em desenvolvimento que sustenta que apenas o fator economia de escala não será suficiente para reduzir significativamente os custos da energia de algumas grandes usinas hidrelétricas que estão em construção ou que foram planejadas para a Amazônia, devido às características dessa região e ao posicionamento geográfico dos grandes centros consumidores de energia do País em relação a ela. Dessa forma, o governo federal irá atuar para reduzir esses custos, forjando o preço de venda da energia desses empreendimentos energéticos, para viabilizá-los.

No dia 20 de janeiro de 2012, a organização não governamental Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (ILUMINA) divulgou uma análise intitulada ‘Teria o governo federal forjado o preço da energia de Belo Monte?‘, com a finalidade de refutar algumas informações contidas no meu artigo. Porém, essa análise apresenta erros de interpretação, divulga algumas informações pouco consistentes e mostra em alguns momentos um elevado grau de ingenuidade e imediatismo, o que compromete sua tentativa de refutação.

Em primeiro lugar, quero deixar bem claro que a análise econômica que forneceu os dados para a elaboração do artigo Hidrelétrica Belo Monte: a sistemática econômica do governo federal foi baseada em informações divulgadas pelo governo e em premissas assumidas pelo autor do referido artigo. Ora, tanto as informações governamentais como as premissas utilizadas podem ser modificadas ao longo do tempo, pois elas não estão finalizadas, até porque a construção de Belo Monte ainda está em andamento. Dessa forma, as afirmações contidas no meu artigo não são verdades absolutas, elas apenas procuram demonstrar como o preço da energia hidrelétrica Belo Monte alcançou um valor baixo, estando essa demonstração sujeita a refutações. Afinal, a ciência precisa das refutações para avançar.

A Ilumina comete o primeiro erro de interpretação quando não atenta para o título do meu artigo e toma como ponto de partida a frase “sob a lógica do mercado brasileiro” nele contida. Assim, ela distorce o foco desse artigo, afirmando que o mesmo vê a energia apenas como “uma simples mercadoria sujeita aos humores do mercado”.

Em nenhum momento eu afirmo algo dessa natureza. O custo de produção da energia de R$ 166,30 por MWh, calculado no meu artigo, está baseado em uma taxa de desconto de 10% ao ano, que, embora seja utilizada no mercado elétrico brasileiro, é considerada ainda baixa pela iniciativa privada. Por outro lado, não sou favorável ao uso de taxas desconto muito baixas, como a que provavelmente foi usada em Belo Monte, porque entendo que o capital investido precisa ser justamente remunerado para garantir a continuidade da oferta de energia no futuro. Lembro-me agora da utilização das tarifas de energia elétrica como mecanismo de contenção da inflação pelo governo militar no final da década de 1970, que foi bom para o consumidor como medida imediatista, mas que quase destruiu o sistema elétrico brasileiro no longo prazo, cujas consequencias são sentidas até hoje. É lamentável que uma organização que se autointitula de desenvolvimento estratégico do setor energético não tenha essa visão de longo prazo.

A argumentação que a energia não é uma mercadoria infelizmente não se aplica ao atual contexto do setor elétrico brasileiro, pois o sistema de distribuição está praticamente dominado por empresas privadas. A Eletrobras possui ações na bolsa de valores e necessita da participação dos acionistas para cumprir seus planos de investimento. O governo federal precisa da iniciativa privada para expandir a oferta de energia, porque ele por si só é incapaz de desempenhar essa função sem aumentar ainda mais a carga tributária no país, os leilões promovidos pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) fomentam a competição acirrada no segmento de produção de energia elétrica. Assim, qualquer hipótese que esteja baseada nessa argumentação apresentará um elevado grau de ingenuidade.

A Ilumina parece confundir os conceitos de custo de produção de energia e preço de venda da energia, o que é um erro grave, pois o custo de produção é apenas um componente do preço de venda da energia. Os meus cálculos fazem referência a um custo de produção para a energia da hidrelétrica Belo Monte de R$ 43,49 por MWh. Assim, considerando o câmbio de US$ 1 para R$ 1,80, o custo de produção dessa usina é de apenas US$ 24,16 por MWh, que é baixo inclusive para o padrão nacional. O valor de R$ 90,58 (US$ 50,32) por MWh refere-se ao preço de venda estimado para a energia dessa usina quando se considera a comercialização para os mercados regulado e livre, bem como para os autoprodutores. Portanto, ele inclui não apenas o custo de produção da energia, mas também a Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (TUST), a compensação financeira pelo uso dos recursos hídricos (CFURH), outros encargos e impostos.

Baseada no valor de R$ 90,58 (US$ 50,32) por MWh, a Ilumina afirma que ele não é “baixo para a energia de origem hidráulica” (sic). Então vejamos! Os resultados dos leilões promovidos pela CCEE para a energia de novas hidrelétricas apontam para um preço médio de venda de R$ 117,97 por MWh (valor atualizado para agosto de 2011). Se os preços de venda das hidrelétricas Belo Monte, Santo Antônio, Jirau e Teles Pires forem excluídos, o preço médio das novas usinas hidrelétricas licitadas no país passa para R$ 141,89 por MWh (valor atualizado para agosto de 2011). Portanto, a conclusão óbvia é que a energia da hidrelétrica Belo Monte apresenta um preço baixo, mesmo levando em conta a comercialização da energia para os autoprodutores e para o mercado livre. Por isso, sugiro que a Ilumina consulte os resultados dos referidos leilões e faça a comparação.

No final de sua análise, a Ilumina volta a fazer confusão entre custo de produção e preço de venda da energia, quando questiona o preço de venda de R$ 166,30 por MWh calculado para a hidrelétrica Belo Monte, sugerindo que ele é muito elevado. Em relação a esse preço de venda, considerado muito alto pela Ilumina, ressalta-se que levando em conta um câmbio de USS 1 para R$ 1,80, ele seria equivalente a US$ 92,39 por MWh. No Annual Energy Outlook 2011, a U.S. Energy Information Administration (EIA) mostra que apenas o custo médio nivelado de produção de energia de usinas hidrelétricas – com fator de capacidade médio de 0,53, com previsão para entrada em operação em 2016 no território americano – é de US$ 88,70 por MWh (valores de 2009). Embora o Brasil e os Estados Unidos apresentem peculiaridades específicas, o seguinte questionamento é pertinente: o preço de venda de R$ 166,30 por MWh calculado para Belo Monte está muito alto?

Em sua análise, a Ilumina sugere que o meu artigo coloca a transmissão a longas distâncias como um problema técnico. Baseada nesse erro de interpretação, ela afirma “A propósito, ‘a transmissão em corrente alternada a longas distâncias’ não constitui nenhum problema para a experiência brasileira nesse mister”.

Quanto eu me refiro à transmissão de energia a longas distâncias em corrente alternada em 500 kV, não a vejo como um problema técnico que precisa ser transposto, mas como um fator que tende a elevar o custo da energia, inclusive porque as perdas de energia são maiores nesse tipo de transmissão.

Informações de uma apresentação de Michael Bahrman da ABB, na Power Systems Conference & Exposition (2006), promovida pelo Institute of Electrical and Electronic Engineers (IEEE), deixam evidente essa questão. Segundo esse autor, a perda na transmissão de 3000 MW em corrente alternada em 500 kV, considerando uma distância de 1.500 milhas (cerca de 2.400 km), chega a 6,93%, enquanto em 765 kV, considerando os mesmos parâmetros, ela é de 4,62%. Reduzindo a distância para 750 milhas (cerca de 1.200 km), o referido autor mostra que a perda de energia na transmissão de 3.000 MW em corrente alternada em 500 kV é de 6,93%, enquanto a transmissão dessa potência em corrente contínua em ± 800 kV apresenta perda de 3,43%. Para esses dois últimos casos, o autor mostra que o custo em corrente alternada é de US$ 13,97 (valor de 2006) por MWh, enquanto em corrente contínua, de US$ 9,37 (valor de 2006) por MWh.

Como se pode perceber, a combinação da distância, da tensão e do tipo de corrente implica em perdas maiores ou menores, bem como em custos mais baixos ou mais altos. Por outro lado, não é necessário ter uma carga de 6000 MW para transmitir energia elétrica em corrente contínua a um custo mais baixo, considerando distâncias superiores a 2000 km, com menores perdas, como sugere a Ilumina. Os dados de Michael Bahrman levantam inclusive uma questão importante para o planejamento do sistema de transmissão brasileiro, pois longas linhas de transmissão em corrente alternada em 500 kV são irracionais sob o ponto de vista da economia da energia.

A Ilumina tem razão quando afirma que meu artigo não mostra os encargos e impostos considerados, bem como seus percentuais. Isso foi feito para evitar que o mesmo ficasse muito extenso. Como eu mencionei anteriormente, a minha análise está baseada em informações governamentais e em premissas por mim adotadas. Na publicação Plano Nacional de Energia 2030: Geração Hidrelétrica, do Ministério de Minas e Energia (MME), em colaboração com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), os seguintes encargos e impostos que compõe a tarifa de equilíbrio das usinas hidrelétricas são considerados: encargos setoriais (TUST), compensação financeira pelo uso dos recursos hídricos, taxa de fiscalização da Aneel (0,5% da receita), investimento em pesquisa e desenvolvimento (1%); impostos sobre a receita [PIS (1,65%), CONFINS (7,60%), também é apresentada a CPMF (0,38%), excluída no meu artigo] e impostos sobre os resultados [imposto de renda (25%) e contribuição social sobre o lucro líquido (9%)].

Essa publicação também mostra como esses encargos e impostos compõem a tarifa de equilíbrio das usinas hidrelétricas. Baseado nessas informações, eu realizei um exercício semelhante para a hidrelétrica Belo Monte. Se os percentuais desses encargos e impostos e a forma com que o governo os usa para compor as tarifas de equilíbrio das usinas hidrelétricas na referida publicação estão equivocados e superestimam essas tarifas, então, a Ilumina está correta ao afirmar que o custo de produção seria maior que R$ 43,49 por MWh, o que elevaria a taxa de desconto. Entretanto, é necessário que isso seja demonstrado, afinal esse é um tema de interesse da sociedade brasileira, pois envolve a arrecadação de impostos e tributos. Infelizmente, as informações sobre a composição do preço teto da energia de Belo Monte não foram disponibilizadas para a sociedade, o que aumenta o grau de incerteza em qualquer análise.

Eu não postulo que os consórcios privados estão certos por adotarem preços mais elevados para as usinas hidrelétricas na Amazônia, como afirma a Ilumina. Eu apenas não concordo com distorções, porque elas mascaram a tomada de decisão sobre os empreendimentos energéticos e geram uma falsa impressão de viabilidade econômica. Assim, alternativas de oferta de energia que não destroem a biodiversidade amazônica e os modos de vida de comunidades tradicionais acabam sendo inviabilizadas.

A Ilumina parece sofrer de dislexia, pois tem uma enorme dificuldade para interpretar informações e outra maior ainda para inventar situações. Em nenhum momento eu afirmei que o contrato de concessão que impede qualquer pleito sobre o preço de venda da energia motivado pela comprovação de erros nos estudos de viabilidade é exclusivo à hidrelétrica Belo Monte. Agora, que essa ferramenta é uma peça chave para manter o preço da energia baixo, não existe dúvida sobre isso. E digo mais, o governo está fazendo a parte dele nessa questão, o problema é de quem assume esse risco, e aí surge uma questão delicada, porque as empresas estatais estão assumindo um risco muito elevado. Por outro lado, eu não afirmei que a energia produzida em Belo Monte será totalmente transmitida para o Sudeste do País. Quando eu uso a linha de transmissão de 2.400 km é para mostrar que o custo de transmissão nessa situação é maior que a TUST de Belo Monte. Em outras palavras, eu uso para mostrar que a TUST só cobre o custo da transmissão até o ponto de conexão com a rede interligada, portanto é como se a transmissão desse ponto até os locais de consumo para além do mesmo tivesse um custo zero. Se distorções fecham a conta do sistema de transmissão, essa é outra questão.

A ignorância é um câncer na era da sociedade da informação. Quando a Ilumina diz que a minha afirmação que considera os leilões reversos como um dos mecanismos da sistemática econômica do governo federal (que contribuiu para baixar o preço de venda da energia de Belo Monte) é acaciana, “tendo em vista que desde que o atual modelo está em vigor no setor elétrico todas as novas usinas foram sujeitas a este mesmo processo”, ela ignora a existência de um conjunto de ações governamentais ordenadas que está sendo implementado em maior ou menor grau para tentar manter os preços de venda da energia das novas usinas mais baixos desde o estabelecimento do Modelo Institucional do Setor Elétrico. É esse conjunto de ações que eu chamo de sistemática econômica do governo federal e que no caso da hidrelétrica Belo Monte foi aplicado em grau elevado como aponta minha análise. Porém, mesmo em empreendimentos energéticos que estão sendo conduzidos exclusivamente pela iniciativa privada, é possível observar elementos dessa sistemática, evidentemente que em menor grau, como a adoção de TUST irreais, pois não cobrem os custos de transmissão de energia para além dos pontos de conexão com a rede interligada. Como exemplo, cita-se a hidrelétrica Estreito. Por outro lado, qualquer empresa estatal está submetida a determinações do governo, pois ele é o seu maior acionista. Tal obviedade precisa ser comprovada?

O simples fato de o governo conceder a redução de 75% sobre o imposto de renda por uma década aos empreendedores da hidrelétrica Belo Monte revela por si só que o preço de venda da energia dessa usina foi forjado, uma vez que esse imposto é um componente da tarifa de equilíbrio. Outra evidência está no fato de o Consórcio Norte Energia cobrar um preço de R$ 100 por MWh para empresas que fazem parte do próprio consórcio (autoprodutores), enquanto o preço de venda para o mercado regulado é de R$ 77,97 por MWh. Em relação à possível subestimação do investimento para construir essa hidrelétrica, que puxou o preço teto de Belo Monte para baixo, ela só será comprovada quando o consórcio Norte Energia tiver investido mais de R$ 19 bilhões na construção dessa hidrelétrica. O futuro virá e com ele virão outros fatos.

Agradecimentos:

Ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), ao projeto “Grandes hidrelétricas e o desenvolvimento no estado do Pará: um modelo de diretrizes”, do qual fazem parte algumas informações divulgadas neste artigo.

Marcos Vinicius Miranda da Silva é pesquisador do Núcleo de Pesquisa Aplicada ao Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado do Pará.

Artigo socializado pelo Jornal da Ciência, SBPC, JC e-mail 4428

EcoDebate, 02/02/2012

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