Os perigos de um mundo descartável
Quando seu aspirador de pó quebrou, a italiana Giovanna Micconi se revoltou ao saber que a peça de reposição sairia quase o preço de um novo. Valia mais a pena comprar outro, escutou do atendente, apesar dos poucos anos de uso do aparelho. “Algo de muito errado está acontecendo com a nossa sociedade”, postou aos amigos no Facebook. Doutoranda em literatura africana pela Universidade de Harvard e residente há alguns anos nos Estados Unidos, ela compartilha um sentimento universal – o de que o tempo de duração das coisas, assim como a percepção do nosso tempo, também parece acabar de forma bem mais rápida.
A reportagem é de Bettina Barros e publicada pelo jornal Valor, 20-01-2012.
Geladeiras que duravam 40 anos e hoje são trocadas em menos de 10, TVs ultrapassadas de uma hora para outra por novas funções, liquidificadores que pifam a um impacto mais forte, computadores que envelhecem assim que saem da caixa. Não importa se esses produtos são comercializados em Boston ou São Paulo. Os bens de consumo duráveis nunca foram tão descartáveis.
Apanhados pelo ritmo estonteante da evolução tecnológica e por uma acessibilidade sem parâmetros às novas gerações de produtos, os consumidores pós-modernos sofrem de males pós-modernos. Por um lado, vivem dias de exuberância material. Por outro, a angústia de estar preso em uma espécie de “corrida armamentista de consumo” e na tormenta da constatação da obsolescência acelerada e inexorável das coisas.
Dados da indústria mostram que a velocidade das substituições, medida pelo número de lançamentos no mercado, só acelera. Tomem-se como exemplo os últimos três anos do setor de eletrônicos e eletrodomésticos – no qual a efemeridade seja talvez mais notável – e o que se vê é praticamente a duplicação de novos produtos em algumas categorias. Em 2009 foram lançados no país 163 modelos de televisores de tela plana. O que já parecia alto subiu ainda mais em 2011, com o auge de 256 novos modelos apresentados em um único ano (de janeiro a novembro). Nesse mesmo período, a oferta de novos celulares saltou de 116 para 175 e a de computadores de mesa, de 476 para 835. Isso foi somente no Brasil, desconsiderando mercados maduros de alta renda, onde os volumes são ainda mais expressivos, segundo a consultoria GfK, que compilou as informações a pedido do Valor.
A entrada no mercado de uma classe média mundial gigantesca e sedenta por novidades, que vê nas aquisições desses objetos uma forma de acesso à cidadania, fez o modelo de consumo adotado e dominado pelos Estados Unidos no século XX – o “american way of life” – replicar em uma escala asiática. De olho nos novos nichos de consumo, grupos que atuam em um segmento da economia passaram a abraçar outras áreas, caso das coreanas LG e Samsung, tradicionalmente de celulares, que avançam rapidamente sobre produtos da chamada linha branca. Em 2005, quando estreou aqui, a LG tinha quatro modelos de sua primeira linha de fornos micro-ondas. Hoje, apresenta 120 novos eletrodomésticos ao ano. A rival Samsung passou de 10 para 200 novos produtos ao ano.
A taxa de obsolescência encurtou à medida que a inovação acelerou e o processo de produção ficou mais barato. Fred Seixas, gerente de vendas da área de eletrodomésticos da LG, afirma que o tempo das coisas está, de fato, menor. “A gente observa que o intervalo de troca de refrigeradores e lavadoras de roupa, que era de dez anos na década de 90, hoje está em cinco ou seis anos”, diz.
Muitas vezes, porém, o salto tecnológico não existe. O poder de transformar a relação das pessoas com o mundo – propiciado por um smartphone, por exemplo – é visto em uma parte mínima dos lançamentos. E não se pode explicar essa tendência somente sob a ótica dos ganhos de eficiência dos equipamentos, com o consumo menor de energia e a produção com materiais menos danosos ao ambiente. “Isso só é relevante em mercados desenvolvidos”, diz Seixas. Pesquisas mostram que o primeiro ponto determinante para a troca de um bem de consumo é o que está por fora: design.
“A gente não faz inovação para trazer tecnologia, mas a partir de aspirações do consumidor”, confirma Rogério Martins, vice-presidente de desenvolvimento de produtos da Whirlpool, dona das marcas Brastemp, Consul e KitchAid, que põe quatro novos produtos por semana no mercado.
Em prol dessa inovação, tecnológica ou plástica, o mundo ficou mais carregado de objetos que logo se tornam inúteis e são descartados na gaveta. E, para alguns economistas, esse é o real problema. Para Eduardo Giannetti da Fonseca, professor do Insper de São Paulo, não há nada de errado se o consumidor escolhe um produto mais caro e de maior durabilidade ou um mais barato e de menor durabilidade. “Num ambiente de mudança tecnológica, faz todo o sentido preferir uma coisa que não vá durar tanto tempo, mas que não perca tanto valor ao ser vendido”, diz. “O maior problema é que o ambiente não está nessa conta. E o ambiente não aceita desaforos.” Giannetti engrossa o coro de economistas que afirmam que não só o modelo de produção se tornou insustentável, mas o cálculo da saúde econômica dos países tornou-se cego aos problemas ambientais que afetam a vida das sociedades hoje.
O impacto ambiental da insustentabilidade já é medido de algumas formas. Um estudo da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) mostra que a produção de lixo no Brasil cresce a um ritmo maior do que o da população – 6,9% em 2010, provavelmente superando o da economia nacional neste ano. Os resíduos de Nova York já são capturados por satélites no espaço. São Paulo esconde seus restos sob uma montanha de 130 metros de lixo compactado coberto por grama, à altura dos maiores arranha-céus da cidade. O embarque de resíduos com destino aos quintais da África não cessa.
Mas o que dita essa toada? Quando passou a fazer sentido comprar um aspirador novo e jogar o seminovo fora? Perdemos algo no caminho? Parte das respostas está na própria cultura capitalista, cumulativa por natureza, na inovação e nas mudanças profundas na estrutura familiar da sociedade contemporânea. Parte no que a economia batizou como obsolescência programada – ou a morte prematura dos produtos.
Marca do mercado de consumo no pós-Segunda Guerra, a obsolescência programada é um conceito segundo o qual a indústria de bens prepara desgastes artificialmente curtos para obrigar o consumidor a uma reposição mais rápida do produto. “A lógica era simples: se não há novos consumidores suficientes para cada produto, então é preciso fazer que os mesmos consumidores comprem o seu produto outra vez”, diz Carlota Perez, pesquisadora venezuelana da Universidade de Cambridge especializada nos impactos sociais e econômicos provocados pelas mudanças na tecnologia. “A princípio isso ocorreu através de mudanças técnicas, depois através da aparência dos produtos e dos modismos e, finalmente, reduzindo a sua durabilidade”.
Em um primeiro momento, isso parecia necessário para atender à emergência, a partir dos anos 1950, de uma sociedade capitalista afluente e uma classe operária bem remunerada, que impunham novos desafios à indústria de bens. Nos anos dourados americanos, a pergunta que passou a ser feita foi: como consumir novamente o que já se tem? Não se tratava mais de vender a primeira geladeira, mas a segunda. O mundo se deslocava de um padrão extensivo para um intensivo de consumo. A pujança econômica dessa época colocou as empresas em outro estágio de desenvolvimento. Após a revolução permitida com a massificação de produtos, criada com o lançamento em série do Ford-T, um ícone automobilístico, era preciso então se diferenciar da concorrência. Henry Ford dizia que qualquer consumidor poderia comprar um automóvel Modelo T, desde que fosse preto. Seu filho, Edsel Ford, colocou a questão em nova perspectiva: “Mas são as cores que dão lucro”. A previsão estava correta.
Para vender a segunda geladeira ela deveria não só durar menos, mas conter algo diverso do que estava disponível no mercado. Fosse por mudanças radicais ou plásticas, a diferenciação resultaria no sobrelucro embutido na competitividade capitalista. A inovação, explica o economista João Batista Pamplona, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), seria uma alavanca poderosa como estratégia de concorrência industrial para conseguir o monopólio.
Philip Kotler, um dos gurus do marketing, lembra que “muito da chamada obsolescência programada é o trabalho das forças competitivas e tecnológicas em uma sociedade livre, que levam a uma melhora progressiva dos bens e dos serviços”.
“Se não tivesse a intervenção da indústria, a obsolescência aconteceria naturalmente em função do próprio consumidor”, concorda a filósofa Carla Rodrigues, da PUC-Rio.
Ávido por novidades, o consumidor contemporâneo – com muito mais acesso ao crédito – passou a ter mais facilidade para obter o aparelho dos sonhos, que já não precisava durar tanto, mas apresentar design arrojado e reunir várias funções.
Com isso, a obsolescência do produto migrou para a dos serviços. Assim, ao comprar uma cafeteira, fabricada por uma multinacional, será informado de que ela só funcionará com os sachês de café da própria empresa. “Você compra um celular simples. A operadora oferece então um pacote gratuito de envio de fotos para outros celulares. Você compra um outro celular para aproveitar essa função e um novo aparelho permite acesso à internet, o que o leva a assinar o serviço de banda larga que oferece uma ampla possibilidade de recursos caso tenha um smartphone. Depois vem a videoconferência, o 3D e o ciclo nunca se encerra”, escreveu recentemente em artigo o consultor ambiental Tasso Azevedo. “A cada passo que você dá, o aparelho anterior fica obsoleto.”
Ao mesmo tempo que a tecnologia empurrava de lado o velho em nome do novo, a globalização puxava outra régua para cima. A descartabilidade também está ligada ao fato de muitos bens de consumo terem se tornado baratos hoje, a ponto de a peça de reposição de um aspirador equivaler a mais da metade do preço de um aparelho novo, como relatou a italiana Giovanna Micconi.
Isso é particularmente consolidado nas economias desenvolvidas, onde a mão de obra qualificada é tão cara que impossibilita a troca de peças. No Japão, montanhas de eletrônicos, geladeiras e bicicletas descartados nas ruas espantam os desavisados. Cenas como essas chocam pelo desperdício, pela desigualdade de renda, pela exaustão que impõem ao planeta. E também pela corrida desenfreada pelo consumo, já que os japoneses, como se sabe, estão entre as populações mais demandantes de novas tecnologias de ponta no mundo.
Essa obsessão, intrínseca ao ser humano, nunca pode ser desprezada – e, diga-se, desde que o mundo é mundo é assim. Já na Roma antiga há relatos da necessidade de se sobressair em relação ao outro. Em uma passagem do “Satiricon“, do escritor Petrônio, um milionário admite durante uma festa: “Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los”. Bem mais tarde, o escritor francês André Malraux cravou que o desejo do homem é ocupar um lugar de honra na mente dos seus semelhantes.
O desejo do novo, daquilo que é visto como uma catapulta para a ascensão social e nos torna supostamente superiores, é um valor arcaico, que não só empurra os produtos para o fundo da gaveta – ou para o lixo, elevando o passivo ambiental já monumental – como pressiona a indústria por mais tecnologia. A efemeridade material é, portanto, fruto também desse consumidor inserido no que Giannetti, do Insper, chama de “corrida armamentista de consumo”.
“É do nosso passado remoto a competição por status que leve a alguma proeminência. O valor de um produto não é o que me traz diretamente a felicidade, mas deriva do fato de que os demais estão excluídos do acesso a ele. A posse desses chamados bens posicionais – BMWs, TVs planas, casas em bairros chiques – é o que passa a dominar o jogo interpessoal. Aí você entra na corrida armamentista de consumo”, diz o economista. “Uma corrida armamentista, stricto sensu, é uma situação em que dois ou mais países investem em armamento e, ao final, se percebem mais inseguros do que no início. Porque ao mesmo tempo em que um mobiliza recursos para se defender, o outro faz o mesmo. É um paradoxo. E a indústria está sempre renovando os bens posicionais. É o tênis de marca, o carrão. Quem não tem está fora”.
Nas empresas, lucra mais quem entende essa condição humana. “Ninguém melhor do que Steve Jobs compreendeu o conceito de fetichismo de Marx“, segundo o qual as relações sociais são mediatizadas pelos objetos, diz Carla Rodrigues. “Ele captou o algo a mais [fetiche] que os iPhones explicitam tão bem.” O fundador da Apple talvez nunca tenha lido Petrônio ou Malraux, mas respondeu aos anseios da sociedade contemporânea. Desde a primeira geração de iPhones, há cinco anos, a empresa comemora vendas recordes consecutivas, movimento seguido pela avalanche de seus primos-irmãos (os iPads) e celulares e tablets da concorrência.
É claro que, nesse processo, a publicidade tem desempenhado um papel auxiliar importante, ao estimular a compra de “novos” produtos, que se diferenciam dos anteriores basicamente no aspecto externo ou em um ou outro acessório supervalorizado.
Em seu livro “A Cultura do Novo Capitalismo“, o sociólogo americano Richard Sennett joga luz sobre o fato de que os consumidores comuns compram equipamentos com possibilidades que jamais utilizarão. “Discos de memória capazes de guardar 400 livros, embora a maioria das pessoas chegue a arquivar na melhor das hipóteses centenas de páginas, ou programas de informática que nunca são acessados no computador”, relaciona Sennett.
Tome-se o exemplo do iPod. Em tese, esse cobiçado aparelho – fininho, de design inovador, que transformou a indústria fonográfica – é capaz de arquivar e reproduzir dez mil músicas digitais de três minutos. Mas seria alguém capaz de se lembrar de todas as dez mil canções gravadas? Não acabamos ouvindo sempre as favoritas? “E, no entanto, o fenomenal atrativo comercial do iPod consiste precisamente em dispor de mais do que uma pessoa jamais seria capaz de usar. O apelo está, em parte, na ligação entre a potência material e a aptidão potencial da própria pessoa”, diz Sennett, professor da London School of Economics (LSE) e do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Falado de outra forma, ele representa a potência daquilo que podemos comprar.
A lista dos sonhos de consumo potencial foi inflada também porque o grupo de referência dos consumidores mudou. O universo antes restrito aos vizinhos do bairro, escola e familiares, foi escancarado pela comunicação de massa. A explosão de informação permitiu que pessoas de baixa renda sonhassem com a vida dos habitantes da grande cidade, seus equipamentos eletrônicos de última geração e viagens internacionais, intensificando a “corrida armamentista do consumo”.
O problema desse movimento, diz Giannetti, é que ele não tem fim. Para o economista, à medida que a sociedade prospera, as pessoas começam a competir pelos bens posicionais. É aquele estágio em que as necessidades mais básicas do ser humano, seus apetites universais, já foram satisfeitos e passam a abrir espaço para o furor de se distinguir em relação às pessoas comuns. É quando o foco da sociedade volta-se para “ocupar um lugar de honra na mente dos seus semelhantes”, como afirmava o escritor francês. “E, quanto mais se avança sobre os bens posicionais, mais as pessoas sentem que falta algo. Não tem solução econômica para isso. Mas a conta recairá sobre o meio ambiente, que não aceita desaforos.”
(Ecodebate, 25/01/2012) publicado pela IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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Não sei se essa questão de alta rotatividade de equipamentos eletrônicos é ruim, visto que isso viabiliza uma continuidade de empregos e renda criada, porém, na ótica ambiental, essas empresas deveriam se empenhar e muito tanto na logística reversa quanto no reaproveitamento quase que total desse material retornado.