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Hidrelétrica Belo Monte: a sistemática econômica do governo federal, artigo de Marcos Vinicius Miranda

 

[Jornal da Ciência] Em 20 de abril de 2010, a hidrelétrica Belo Monte foi licitada, tendo sua energia alcançado um preço de venda de R$ 77,97 por MWh. Esse valor está entre os mais baixos já contratados nos leilões de novos empreendimentos energéticos promovidos pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Porém, ressalta-se que a energia dessa usina alcançará um valor mais elevado, porque, segundo informações obtidas no blog do consórcio Norte Energia, 10% da produção total de eletricidade de Belo Monte serão destinados a empresas participantes desse consórcio (autoprodutores) por um preço de R$ 100 por MWh e 20% serão comercializados no mercado livre por um preço de R$ 130 por MWh.

Dessa forma, estima-se que o preço efetivo de venda da energia da hidrelétrica Belo Monte ficará em R$ 90,58 por MWh, sendo ele composto aproximadamente pelas seguintes parcelas: custo de produção da energia (R$ 43,49 por MWh), Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão – TUST (R$ 15,51 por MWh), Compensação Financeira pelo Uso dos Recursos Hídricos (R$ 4,36 por MWh – valor de 2010) e outros encargos e impostos (R$ 27,22 por MWh), incluindo a redução de 75% sobre o imposto de renda ao longo de uma década que foi concedida pelo governo federal.

O preço de R$ 90,58 por MWh para a energia da hidrelétrica Belo Monte ainda é baixo. Isso surpreende porque alguns fatores tenderão a elevar o custo da energia dessa usina, destacando-se: a falta de boa infraestrutura; os obstáculos naturais, como a densa floresta, a existência de rios largos e caudalosos; a complexidade socioambiental da Amazônia; a transmissão de energia em corrente alternada a longas distâncias e a elevada perda de eletricidade inerente a esse tipo de transmissão.

A impressão que se tem ao analisar os resultados dos leilões de algumas hidrelétricas licitadas na Amazônia é que houve uma inversão na lógica econômica, pois os preços da energia da maior parte desses empreendimentos energéticos são geralmente bem mais baixos que os de outras hidrelétricas que estão sendo construídas em regiões onde se localizam os grandes centros consumidores do País.

Além de Belo Monte (11.233,1 MW), as usinas Santo Antônio (3.150 MW), Jirau (3.750 MW), Ferreira Gomes (252 MW), Santo Antônio do Jari (373,5 MW) e Teles Pires (1.820 MW) enquadram-se nesse contexto, pois elas apresentam preços de venda da energia abaixo ou bem próximo de R$ 100 por MWh. Por outro lado, a exceção fica por conta das hidrelétricas Estreito (1.087 MW), São Salvador (243 MW) e Luís Eduardo Magalhães (902,5 MW), antiga Lajeado, que apresentam preços de venda da energia acima de R$ 140 por MWh, quando os valores são atualizados para agosto de 2011 pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

No primeiro grupo de hidrelétricas, excetuando-se as usinas Ferreira Gomes e Santo Antônio do Jari, a participação das empresas do grupo Eletrobras nos consórcios vencedores dos leilões é significativa, enquanto a construção das usinas do segundo grupo está sendo conduzida por consórcios formados exclusivamente por empresas privadas. Esse é um aspecto importante que não pode ser desconsiderado quando se tenta explicar os baixos preços de venda da energia de algumas hidrelétricas na Amazônia, particularmente aquelas com potências em torno ou superiores a 1.000 MW.

Como foi mencionado anteriormente, o custo de produção para a energia da hidrelétrica Belo Monte ficará em R$ 43,49 por MWh. Levando em conta as características físicas dessa usina, um período de seis anos para o aporte de recursos em sua construção, um investimento de R$ 19 bilhões e um prazo de trinta anos para garantir o retorno remunerado do capital investido, o custo de produção mencionado só poderá ser alcançado a partir de uma taxa de desconto em torno de 6,2% ao ano, portanto, abaixo do rendimento da caderneta de poupança quando se inclui o juro e a atualização deste investimento. No entanto, se o investimento for de R$ 25,9 bilhões, o custo de produção da energia de R$ 43,49 por MWh só será alcançado a partir de uma taxa de desconto em torno de 4% ao ano.

Uma taxa de desconto de 4% ou de 6,2% ao ano é inviável sob a lógica do mercado brasileiro, isso confirma a justificativa de falta de condições econômicas apresentada pelas construtoras Camargo Corrêa e Norberto Odebrecht para desistirem do leilão da hidrelétrica Belo Monte. Essa baixa taxa de desconto é um elemento fundamental da sistemática econômica do governo federal que foi usada para viabilizar a construção desse empreendimento energético, tendo sido fundamental para reduzir o preço da energia dessa usina.

O contrato de concessão de Uso do Bem Público para a Geração de Energia Elétrica da hidrelétrica Belo Monte também desempenha um papel chave na redução do preço da energia dessa usina, pois a cláusula quinta, subcláusula quarta, do mesmo diz: “Não serão considerados pela ANEEL quaisquer pleitos, reclamações ou demandas motivadas por inadequação ou inexatidão de Estudos de Viabilidade e/ou Ambientais (…)”. Isso significa que o consórcio Norte Energia não poderá, por exemplo, solicitar a revisão do preço da energia dessa usina, mesmo que a subestimação do investimento total estabelecido pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) seja comprovada. Portanto, essa subcláusula impedirá o aumento do preço da energia dessa hidrelétrica. Nesse contexto, quanto maior for a diferença entre o investimento real para construir a hidrelétrica Belo Monte e o investimento estabelecido pela EPE, menor será a taxa de remuneração sobre o capital investido.

A adoção de uma baixa Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão – TUST também é um aspecto relevante para explicar o baixo preço de venda da energia da hidrelétrica Belo Monte. Segundo a Resolução Homologatória n° 953, de 18 de março de 2010, da Aneel, a TUST da casa de força principal dessa hidrelétrica variará de R$ 4,923 a R$ 4,549 por kW por mês, sendo que o último valor vigorará de 01 de julho de 2017 a 30 de junho de 2024. A TUST de R$ 4,549 por kW por mês é equivalente a um valor de R$ 15,51 por MWh. Essa TUST não cobre o custo de transmissão, por exemplo, para a região Sudeste do País.

Uma apresentação de Michael Bahrman, diretor de marketing da ABB Inc, realizada em 1 de novembro de 2006, em Atlanta, na Power Systems Conference & Exposition, promovida pelo Institute of Electrical and Electronic Engineers (IEEE), mostra que o custo de transmissão de uma rede com extensão de 1.500 milhas (cerca de 2.400 km), de 500 kV em corrente alternada, é de US$ 16,82 por MWh, ou de R$ 31,78 por MWh, quando aquele valor convertido e atualizado para agosto de 2011.

Conforme reportagem do Valor Econômico, de 22 de março de 2010, o governo federal argumenta que o custo de transmissão da hidrelétrica Belo Monte é baixo, porque não será necessário construir uma longa rede de transmissão até os centros consumidores, pois ela já existe. Ora, a energia dessa usina não será consumida na área do ponto de conexão com a rede do sistema interligado, portanto há um custo de transmissão desse ponto até os centros consumidores que não foi considerado na TUST de Belo Monte. Assim, o uso de uma TUST irreal também é um elemento importante da referida sistemática.

O mecanismo dos leilões promovidos pela CCEE também contribuiu para a redução do preço da energia da hidrelétrica Belo Monte, pois o consórcio vencedor foi aquele que ofereceu o lance mais baixo para a energia dessa usina. No caso de Belo Monte, embora o preço teto de R$ 83 por MWh tenha sido definido pelo Ministério de Minas e Energia (MME) a partir de um investimento provavelmente subestimado, bem como pela utilização de uma baixa taxa de desconto e de uma TUST com valor irreal, o preço de venda da energia alcançou um valor de R$ 77,97 por MWh, portanto, 6,1% abaixo do preço teto.

O penúltimo aspecto a ser ressaltado sobre a questão do baixo preço da energia da hidrelétrica Belo Monte diz respeito aos benefícios financeiros proporcionados pelo governo federal, destacando-se: condições favoráveis de financiamento e redução de imposto. Particularmente em relação à redução de 75% sobre o imposto de renda por uma década concedida pelo governo federal ao consórcio Norte Energia, calcula-se que esse benefício evitou uma diminuição de quase 1 ponto percentual sobre a taxa de desconto utilizada, pois, se ele não tivesse sido concedido, o custo de produção da energia dessa usina ficaria em R$ 39,07 por MWh.

Na prática, a redução do imposto de renda proporcionará um ganho para os empreendedores de R$ 4,42 por MWh, pois ela elevou o custo de produção da energia de Belo Monte para R$ 43,49 por MWh. Coincidência ou não, a diferença entre esses custos de produção aproxima-se do valor da Compensação Financeira pelo Uso dos Recursos Hídricos de 2010, R$ 4,36 por MWh. Em outras palavras, o efeito do desconto sobre o imposto de renda é semelhante ao não pagamento da Compensação Financeira pelo Uso dos Recursos Hídricos por parte dos empreendedores da hidrelétrica Belo Monte.

A sistemática econômica utilizada pelo governo federal para baixar o preço da energia de algumas hidrelétricas na Amazônia não teria sucesso sem a resignação das concessionárias do grupo Eletrobras em aceitar baixas taxas de remuneração para o capital investido. Alguém menos atento poderia dizer que essa afirmação não procede, pois o consórcio Norte Energia não é formado apenas pelas concessionárias estatais, perfeito! Porém, é preciso lembrar que os autoprodutores receberão uma energia por R$ 100 por MWh, que é um excelente negócio para eles, e que 20% serão comercializados no mercado livre por um preço de R$ 130 por MWh, que poderá garantir uma remuneração mais adequada para as outras empresas privadas que fazem parte desse consórcio. Portanto, não se tem qualquer dúvida que as empresas estatais e os fundos de pensão terão a menor rentabilidade pelo capital que será investido na construção da hidrelétrica Belo Monte.

As informações apresentadas neste artigo apenas corroboram a sinceridade quase visceral do presidente da EPE, Maurício Tolmasquim, que afirmou, em reportagem da Reuters, de 27 de julho de 2010, que a hidrelétrica Belo Monte só saiu do papel porque o governo federal assumiu quase metade da usina.

Se o preço de venda da energia de Belo Monte está baixo, então qual seria o preço da energia produzida por essa usina e fornecida para a região Sudeste do país na lógica do mercado brasileiro? Para responder a essa questão, levam-se em conta as características físicas de Belo Monte, um investimento em torno de R$ 25,9 bilhões, a adoção de uma taxa de desconto de 10% ao ano, um prazo de 30 anos para a recuperação remunerada do capital investido, o custo de transmissão de R$ 31,78 por MWh para uma rede de 2.400 km, em corrente alternada de 500 kV, como é o caso da rede de transmissão dessa usina, bem como o valor da Compensação Financeira pelo Uso dos Recursos Hídricos de 2010 e encargos e impostos. Assim, calcula-se que o preço da energia de Belo Monte ficaria em R$ 166,30 por MWh, sendo ele composto da seguinte forma: custo de produção de energia (R$ 89,92 por MWh), custo de transmissão (R$ 31,78 por MWh), Compensação Financeira pelo Uso dos Recursos Hídricos (R$ 4,36 por MWh), encargos e impostos (R$ 40,24 por MWh).

À primeira vista, o preço de R$ 166,30 por MWh calculado para Belo Monte pode parecer muito elevado, porém ele está muito próximo do preço de venda da energia da hidrelétrica Estreito, estimado em R$ 174,75 por MWh, quando se atualiza para agosto de 2011 o preço da energia dessa usina alcançado no quinto leilão de energia nova e quando se substitui sua TUST de R$ 11,19 por MWh, que é um valor baixo, pelo custo de transmissão de R$ 31,78 por MWh.

Como a hidrelétrica Estreito está sendo construída pelo consórcio Estreito Energia, formado pelas empresas GDF Suez, Vale, Alcoa e Camargo Corrêa Energia, portanto não contando com a participação das empresas do grupo Eletrobras, entende-se que os preços das hidrelétricas na Amazônia, particularmente aquelas com potências em torno ou superiores a 1.000 MW, tenderiam a ficar próximos aos valores acima estimados sob a lógica do mercado brasileiro.

A sistemática econômica utilizada pelo governo federal para reduzir o preço da energia da usina Belo Monte é constituída, portanto, pelos seguintes elementos: uso de baixa taxa de desconto; redução da TUST; utilização do mecanismo dos leilões reversos; condições favoráveis de financiamento; diminuição de imposto; adoção de cláusula contratual que impede a correção do preço de venda da energia; uso das empresas estatais e dos fundos estatais de pensão, que estão resignados a aceitar baixas taxas de remuneração sobre o capital que será investido na construção dessa hidrelétrica.

O preço baixo da energia da hidrelétrica Belo Monte poderá reduzir as tarifas de energia no mercado regulado, contribuindo para a modicidade tarifária, porém isso só será efetivado se as concessionárias de distribuição repassarem aos consumidores o benefício da compra de energia barata.

É difícil prever quais serão as conseqüências negativas para a expansão futura do sistema elétrico brasileiro da sistemática econômica utilizada pelo governo federal para viabilizar a construção de hidrelétricas na Amazônia, porém a adoção de baixas taxas de desconto e de TUST irreais poderá ocasionar a perda da capacidade de investimento nos segmentos de produção e transmissão de energia das concessionárias estatais, o que poderá comprometer o fornecimento de energia elétrica. Como fato concreto relacionado a essa sistemática, cita-se a perda de arrecadação da União via imposto de renda, devido ao desconto concedido pelo governo ao consórcio Norte Energia.

Para finalizar, as informações contidas neste artigo mostram que o preço da energia de R$ 77,97 por MWh da hidrelétrica Belo Monte foi forjado pelo governo federal. Sendo assim, qualquer estudo comparativo que utilize esse preço para demonstrar a viabilidade econômica dessa usina em relação a outras alternativas de oferta de energia não apresentará consistência.

* Agradecimentos – Ao Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo financiamento, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), ao projeto Grandes hidrelétricas e o desenvolvimento no estado do Pará: um modelo de diretrizes, do qual fazem parte as informações divulgadas neste artigo.

Marcos Vinicius Miranda da Silva é pesquisador do Núcleo de Pesquisa Aplicada ao Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado do Pará

Artigo originalmente publicado no Jornal da Ciência/SBPC, JC e-mail 4415

EcoDebate, 12/01/2012

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One thought on “Hidrelétrica Belo Monte: a sistemática econômica do governo federal, artigo de Marcos Vinicius Miranda

  • Excelente o artigo do pesquisador Marcos Vinicius. Trata-se de um enfoque econômico raramente visto nos debates sobre Belo Monte.
    Caso a produção média de energia de Belo Monte seja aumentada, o custo médio de produção do kWh ficará reduzido e a taxa de retorno do investimento será aumentada. Isso reforça a ideia de que é preciso corrigir a disparidade entre a potência instalada superior a 11 mil MW e termos uma produção média de energia inferior a 4,5 mil MW.
    Precisamos urgentemente estudar formas de aumentar a potência média de Belo Monte!
    Como disse o autor, Belo Monte se situa em uma região com rios largos e caudalosos. Eu acrescento: é a região mais úmida do planeta. Não se concebe que a capacidade média de geração de energia da usina seja tão baixa devido a falta de água nos meses secos!
    Entende-se que o reservatório tenha sido diminuído para evitar maior devastação da floresta, mas há meios econômicos de se levar água à usina durante o período seco sem afetar o meio ambiente.
    Infelizmente, esse assunto não tem feito parte da agenda de discussões sobre Belo Monte.

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