Ensaio: Esperança em tempos de crises, por Philipp Blom
Ensaio
Esperança em tempos de crises.
Um novo iluminismo
Por Philipp Blom, ensaio da revista Groene Amsterdammer(1),
Ainda que pensemos que não, nós ainda acreditamos. Nossa religião se chama agora: o mercado. Apelo para uma reconsideração. E para contar histórias.
Nossa cultura ainda está saturada com a maneira cristã e teológica de pensar que desde a nossa infância é fixada em nossa mente e se tornaram padrões fixos de pensamento, reflexos da mente. Se pensarmos sobre o futuro, o vemos instintivamente em termos de paraíso e apocalipse. Com o fim das grandes ideologias, o primeiro saiu de moda, mas continuamos criando bastantes cenários apocalípticos enquanto ao mesmo tempo continuamos seguindo como antes. Se é a mudança climática ou Fukushima, a bomba iraniana ou a crise econômica – sabemos que iremos perecer.
Nos filmes de Hollywood, que é a forma dominante de contar histórias na nossa cultura, é visto como obsceno mostrar um corpo nu, pior ainda sexo explícito. Ao mesmo tempo, parece menos reprovável ver em detalhes intoleráveis a tortura de um corpo. Não seria a melhor ilustração da sobrevivência do ódio cristão contra o corpo sensual? Sofrimento: bom – prazer: mau.
O pensamento teológico impregna nossos debates sem que nos demos conta. Pesquisa de células-tronco e clonagem, manipulação genética e eutanásia – a ideia de que ‘não podemos brincar de Deus’ é geralmente utilizada, algumas vezes de maneira implícita.
O nosso mundo de consumo também está compenetrado por nossos condicionamentos cristãos. Nossos avós dobravam seus joelhos diante de ícones e imagens de santos cuja perfeição era inalcançável. Os santos os inspiravam a jejuar, castigar a si próprios e se tornar conscientes de suas próprias fraquezas. Nós excluímos os ícones religiosos de nossa vida cotidiana. Aparentemente, porque os ícones dos comerciais possuem quase o mesmo efeito sobre nós.
Dolorosamente, eles nos tornam conscientes de nossos defeitos – nós não somos ‘cool’ o suficiente, jovens o suficiente, magros o suficiente, ricos o suficiente – e eles nos inspiram a emagrecer, a nos diminuir, em vão, para atingir um mundo melhor, o céu do comercial. George Clooney como anjo do Nespresso é o ícone perfeito da transcendência do consumidor consciente de estilo.
Em nosso aparente mundo secularizado, as convicções religiosas continuam tendo privilégios sobre outros, como se as convicções dos cidadãos seculares fossem menos invioláveis. Quando a Benetton lançou sua mais recente campanha com o objetivo de escandalizar, Unhate, na qual se viam adversários políticos internacionalmente conhecidos que, em montagens fotográficas, se beijavam na boca, uma foto foi recolhida porque era ofensiva: a imagem do papa Bento XVI com o líder espiritual islamita Ahmed Mohamed el-Tayeb. Logicamente, Mahmoud Abbas e seus discípulos tinham menos direito de ficar irados com a imagem na qual ele faz beicinho para Benjamin Netanyahu, ou Barack Obama com Hugo Chávez.
Nós não abandonamos a teologia e continuamos acreditando. As igrejas estão vazias, os partidos políticos definham, as ideologias murcham, mas nossa religião está intacta. Ela só tem outro nome: mercado.
O mercado é algo potente. Ele tem vontade própria e nós precisamos obedecê-lo, seguir seu menor capricho. Em cada programa de notícias que é transmitido, ficamos sabendo de como andam as bolsas de valores; todo telespectador acha normal termos como FTSE e Dow Jones. De fato, essa informação é duplamente supérflua. Para os investidores é muito pouco, chega tarde demais e é muito genérica, o que a torna inútil. Para os demais, é irrelevante. Mas cria a ilusão de que essa é a realidade objetiva, de que isso determina nossas vidas, que faz com que nosso mundo continue se movendo, muito mais importante do que a política ou a democracia. O mercado tornou-se nossa divindade; nossa mídia é o seu evangelho, Wall Street é a catedral. As metáforas mudaram – nossas instituições religiosas estão cheias de vida. Esse é o primeiro paradoxo da razão e paixão: nossa admiração pela razão parece ser ditada por uma motivação que é estritamente irracional – um anseio à crença.
Se o nosso iluminismo depois de tanto tempo não é tão iluminado como talvez nós havíamos pensado, então isso pode ser exatamente a chave para o seu sucesso. Uma cultura que é impregnada com o pensamento religioso não precisa tentar intervir para mudar; ela precisa principalmente adaptar suas metáforas e expressões idiomáticas.
Assim não é nenhuma surpresa que a Revolução Francesa rapidamente se tornou a religião da razão (e tendo ironicamente, Rousseau como profeta). Ainda que superficialmente fossem contrários ao cristianismo, os defensores da revolução não conseguiram se libertar da teologia.
Mas antes da Revolução um outro iluminismo tentou repensar o mundo de uma maneira mais fundamental. Em Paris, reuniam-se no salão do barão Paul Thiry d’Holbach um grupo de filósofos e cientistas que formulavam uma alternativa para a adoração da razão, ainda que eles vissem a razão como algo crucial para a aspiração humana.
Holbach, seu amigo Diderot e outros em seus círculos iam contra os moderados do iluminismo e declaravam que nós não somos seres fundamentalmente racionais, cuja libertação está em sermos ainda mais racionais, mas que nós, primeiramente, somos apaixonados e depois racionais, e que nosso corpo desejoso não é algo que devemos combater, mas sim cultivar e educar.
Essa mudança, aparentemente insignificante, tem enormes implicações. Os iluminados radicais eram anti-cristãos e ateístas e não acreditavam na existência de um próximo mundo, uma outra realidade, superior. Em um universo desenvolvido e sem propósito não há lugar para criações divinas e intervenções. Além disso, quando partimos do princípio de que o céu é um espaço infinito, então nosso corpo apaixonado não é uma barreira para uma existência de uma alma pura, haja vista que a paixão não é pecaminosa e nem precisa estar sob pressão.
Na hora em que somos colocados em nosso lugar entre os animais e logo que nossa natureza apaixonada é reconhecida não como um entrave para a existência da mente mas como nossa real constituição, então a imagem muda totalmente. Contrária à ideia dos iluminados moderados da razão como alfa e ômega da felicidade humana, os radicais jouissance estabeleciam o sensual como suficiente. Nosso impulso erótico não é apenas energia fundamental, mas também, antecipando Darwin, o objetivo de nossa existência.
Se a lascívia não é censurável então as sociedades não serão baseadas na rejeição dela. E se não existem altas hierarquias impostas à sociedade, sem poderes superiores, então todos possuem direito de almejar a felicidade, como os founding fathers estadunidenses escreveram. Igualdade e liberdade universal se tornam fundamental.
É fácil compreender porque a burguesia do século 19 escolheu Kant e Voltaire ao invés de Diderot e Holbach para justificar o capitalismo laissez-faire que dava tudo a eles próprios e nada aos seus trabalhadores. Afinal de contas, a elite iluminada era composta daqueles com formação superior e os tutores da moral cristã. É da mesma forma claro porque ditadores, de Lenin a Pol Pot seguiram o exemplo de Robespierre e adoravam Rousseau, cujo pensamento social pressupõe que é necessário que um sábio legislador tem direito de usar a repressão para coagir toda a população a viver de acordo com a natureza de Deus.
Menos clara, mas muito mais importante é a compreensão de que nossa própria sociedade ainda não fugiu do chamariz dessa tradição e das ideias fundamentais dessa teologia, e que uma alternativa poderia desimpedir o caminho para uma sociedade mais justa e mais realizada individualmente.
Aqui meu entusiasmo é brecado por minha própria fonte de inspiração, Diderot acreditava que o iluminismo termina fora da cidade, onde as pessoas são ignorantes e trabalham arduamente para entender esse tipo de ideias; que eram fundamentalmente céticas sobre a desejável e certeza possível real democracia.
O problema subjacente, no qual o próprio Diderot se atracava, era uma luta filosófica que ele combatia como pensador moderno. Ele nasceu em uma família religiosa, se tornou um materialista e desgarrou-se da crença de seus pais, mas não perdeu a nostalgia da sua crença. Ele desejava a possibilidade da crença, do sentimento de pertencer a algo, da segurança de dar um sentido para o sofrimento sem sentido, mas que não podia mais aceitar o racional. “Meu coração quer ir numa direção, minha cabeça em outra”, suspirava ele – e escolheu seguir sua cabeça.
Diderot inverte o paradoxo: somente se a razão assume seu lugar como serva e contribuidora para uma vida de paixão é que podemos compreender a natureza humana e darmos forma à nossa vida através dela. O que nós poderíamos ganhar com isso é uma vida vivida completamente, uma sociedade com valores que são mais benéficos para a felicidade humana. Mas o preço disso é a crença no maior planejamento racional do mundo.
Se eu utilizo minhas próprias palavras para resumir o dilema de Diderot em um novo paradoxo, chegamos, na minha opinião, à questão de contar histórias e construir metáforas.
Como Diderot nós também queremos muito acreditar que existe um sentido objetivo no mundo, que o universo foi criado com uma intenção clara e objetivo definido e que nós precisamos cumprir com uma tarefa. Isso não é apenas uma ilusão. Muito provavelmente a nossa necessidade à significado, estrutura e objetivo é uma constante antropológica, na qual nossa mente é arraigada. Em grande parte, é o que nos torna humanos.
Tecnologia e ciência são possíveis porque nós conseguimos ver possibilidades de uso em objetos naturais e materiais, para projetar nosso próprio mundo, nossas necessidades e desejos, no mundo fora de nós, para descobrir que galho e pedra podem juntos se transformar em uma ferramenta. Mas a cultura também é provida dessa forma. Damos sentido a processos naturais aparentemente sem sentido através dos mitos, projetamos sentido no mundo por contar histórias a nós mesmos e sobre nosso lugar nele.
Os pensadores do iluminismo radical supõem que a paixão – a vontade de algo – era a força fundamental da vida e, portanto de nós próprios. Na linguagem dos mitos poderia soar dessa maneira: Eros nos domina. Ele nos atira ao mundo e nos permite desejar algo ou alguém. Mas como ele é um deusinho anarquista ele nos envia a desejos que, com frequência são inconvenientes ou fora do alcance. Ele deixa a ordem estabelecida confusa e semeia o caos e a perturbação – a inspiração de inúmeras comédias e tragédias.
A soberania de Eros poderia levar à jouissance de Diderot, mas levaria ainda mais à frustrações e mesmo tristeza. Por desejos, experienciamos nossas falhas e perdas. Gostamos de pessoas que não gostam da gente, queremos alcançar objetivos que continuam a deslizar, ficamos de luto por pessoas que gostamos quando elas nos deixam, ou nos são arrebatadas por causa de doenças e morte. A vida como nós conhecemos nos oferece poucas justificativas para otimismo, para olhar para frente, para esperança. Se formos libertos do jugo das ideias religiosas, da crença em uma vida após essa vida e na rejeição desse mundo ao nosso desejo de prosseguir, então ainda somos confrontados com nossa contínua impossibilidade de realizar nossos desejos. Chamemos isso de hedonismo trágico.
O antídoto contra o caos paralisante que frustra nossos desejos é tão antigo quanto a humanidade. Contar histórias nos permite projetar ordem e significado em nossa própria experiência do mundo. Em nossas histórias, o menino encontra uma menina e perde a menina, mas no final a encontra; intenções tornam-se realidades, virtude é recompensada e astúcia é punida. Nas histórias, em todo o caso, na sua forma mais basal, o mundo tem uma estrutura significativa que – quão frustrante – não tem uma realidade.
Por histórias, por nossa teimosa crença na possibilidade de felicidade, algumas de nossas intenções se tornam realidade. Seus desejos farão com que você se apaixone por um homem ou uma mulher, mesmo que seu cérebro racional diga a você que o amor traz frequentemente frustrações, que eles sempre terminam em dor e amargura, que um terço dos casamentos acabam em divórcio. Mas você não ouve a voz racional, não, você começa a contar histórias para você mesmo, histórias de amor, sobre felicidade eterna.
Todos nós possuímos instintos culturais e pessoais que levamos em nosso pensamento, coisas as quais nós gostaríamos muito que fossem realidade, mas que é muito importante tentar pesquisar na intensa luz da razão e estar preparado para abandoná-los – muito provavelmente contra nossos mais profundos desejos. Por fim, não é tudo o que nós queremos que o caso é realmente o caso. E a filosofia, finalmente, não se concentra apenas em fazer as perguntas certas (um primeiro e essencial passo) mas também em aprender a viver com a resposta à essas perguntas. Aqui as convicções políticas podem aprender alguma coisa.
Voltando à ideia de contar histórias, chegamos a uma conclusão que é ao mesmo tempo paradoxa e inevitável. Somos animais que contam histórias; não há outra escolha. O problema começa onde não se é mais possível diferenciar entre a situação e a história que nós mesmos nos contamos sobre o que aconteceu. A partir do momento que acreditamos nas nossas próprias histórias como a verdade literal, perdemos a ligação com o mundo.
O paradoxo está no fato que nós estamos presos a uma história para poder colher os frutos psicológicos dela, para suspender a descrença, como bem disse Coleridge. Se lemos Anna Karenina de Tolstói como um exercício de escrita formal não teremos acesso ao espírito da história. Só se considerarmos que Anna é real, que a sua dor e esperança são tão reais como as nossas, iremos experienciar da maneira como nós queremos e precisamos. Mas ao mesmo tempo, nenhum leitor adulto irá a um arquivo russo para procurar a data de nascimento, certidão de casamento ou o último endereço conhecido dela. Porque afinal de contas nós sabemos que é uma história inventada.
Esse é o paradoxo de contar histórias, e mesmo que pareça insolúvel, é resolvido literalmente por cada criança que, em um momento, decide que ele ou ela é o Homem Aranha ou uma princesa e, no momento seguinte, abandona essa forma de existir. Crianças sabem intuitivamente como eles devem se movimentar entre as histórias que eles se contam a si mesmos e o resto das suas vidas. Para todas as outras pessoas é algo que precisamos reaprender: contar histórias sem ficar preso a elas, usar a força delas sem tornar-se limitado por causa delas.
Histórias são sempre uma dramatização de nossos valores e nossas esperanças. Elas nos contam quem nós somos e nosso relacionamento com ele é necessariamente paradoxal, entre envolvimento e desprendimento, entre crença e descrença. Se acreditarmos pouco nos tornamos impotentes, se acreditamos muito nos tornamos prisioneiros. A história de nossa própria civilização contada através da mídia, filmes, romances e conversas cotidianas são o que gradualmente passamos a tratar como a Verdade. É a história do racionalismo, do iluminismo moderado que carrega ideias teológicas e cristãs e que tomam nova forma no vocabulário secular, uma história da razão, da transcendência, da separação entre corpo e alma, a valorização positiva da dor, o paraíso e o apocalipse, desconfiança contra o desejo, a crença em uma força objetiva histórica que antigamente chamávamos de Deus, mas que atualmente chamamos de ‘mercado’. Atualmente não temos mais lucro nisso.
Pensar no iluminismo radical vem de uma tradição onde paixão e solidariedade, empatia e simpatia levam a uma vida liberta que é avaliada por valores, uma vida baseada na ideia de que Eros, e não a razão, é a força condutora que existe por trás da nossa existência. Já está na hora de contarmos uma nova história para nós mesmos.
(1) Essa é uma versão editada do pronunciamento do historiador Philipp Blom, de 8 de dezembro de 2011 no seminário ‘Marchant’, organizado pela associação Hans van Mierlo, do partido holandês de centro-esquerda D66. Philipp Blom é autor de “A Wicked Company: The Forgotten Radicalism of the European Enlightenment”.
Colaboração de Gilvander Moreira, frei Carmelita, para o EcoDebate, 10/01/2012
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