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Artigo

Centro de Triagem de Animais Silvestres, artigo de Paulo G. C. Wagner

 

[EcoDebate] Em nosso país o hábito da população em manter animais silvestres como bichos de estimação remonta ainda ao período pré-colombiano, como pode ser facilmente verificado nas inúmeras peças de arte (pinturas, tapeçarias, etc.) que retratam a vida dos indígenas, logo no início da colonização do Brasil. Tal prática foi rápida e entusiasticamente absorvida pelos europeus e africanos que para cá vieram. Desde então, através dos séculos, a apropriação e o uso das espécies animais nativas continuaram a ser praticadas desregradamente, num contínuo retirar dos estoques naturais, em número de milhões/ano (fato ainda atual). No entanto, a partir de meados do século passado, a ascensão da mentalidade preservacionista impôs ao Estado Brasileiro a necessidade de publicar legislações que protegessem especificamente a Fauna Silvestre Brasileira ou Nativa, culminando na lei 5.197, de 13/01/1967, que estabelece, já no seu art. 1°: “… Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha.”

No entanto, mais de 30 anos se passaram até ser promulgado aquele que atualmente é o dispositivo legal que efetivamente rege a defesa da fauna brasileira, no caso, a lei 9.605, de 12/02/1998, também chamada Lei da Vida. Tais dispositivos legais, ao criminalizarem a posse ilegal de animais silvestres, trouxeram como conseqüência a obrigação estatal de recolher, receber, triar, tratar, reabilitar e destinar estes espécimes, num montante que hoje está na casa de centenas de milhares de indivíduos (e ainda assim sendo somente uma minúscula parte daqueles que são retirados ilegalmente todos os anos da Natureza, em número de milhões, como já dissemos). Este processo gerou a necessidade de criar estruturas de recebimento para os espécimes apreendidos, as quais começaram a ser edificadas no inicio da década de 90, nas unidades do IBAMA e em algumas Universidades. Tais ambientes chamam-se Centros de Triagem de Animais Silvestres – CETAS e Centros de Reabilitação de Animais Silvestres – CRAS.

Estes locais se constituem nos depositários oficiais de espécimes silvestres oriundos de apreensões efetuadas pelas Divisões de Fiscalização das Superintendências do IBAMA nos estados, do Batalhão Ambiental da Brigada Militar (no RS) e demais órgãos ambientais, de entregas voluntárias pela sociedade e do recolhimento de animais em áreas urbanas e rurais, residências e demais locais. Após um período de quarentena (variável de acordo com a espécie ) os animais têm sua destinação definida de acordo com seu bioma de origem, suas características físicas (estado clínico) e epidemiológicas (estado sanitário).

Como dito, no decorrer da década de 90 e nos primeiros anos de 2000 vários espaços foram sendo criados, especialmente após o advento da CPI do Tráfico de Animais Silvestres, que dentre outros resultados, resultou em uma emenda parlamentar federal destinando ao IBAMA recursos para a construção e reforma de CETAS em todas as suas Unidades Regionais, processo ainda em andamento. Aliado a isto, alguns estados, ONGs e Universidades também construíram seus espaços de recebimento e reabilitação de animais silvestres.

Com o crescente interesse da Medicina Veterinária pelas espécies silvestres, aliado ao aumento das pressões das entidades ambientalistas, e para fins de normatizar a situação, o IBAMA lançou em 20/02/2008 a Instrução Normativa 169 (IN 169), que entre outros tópicos, trata da questão dos locais de recepção e tratamento de animais silvestres.

Art. 1º Instituir e normatizar as categorias de uso e manejo da fauna silvestre em cativeiro em território brasileiro, visando atender às finalidades socioculturais, científica, de conservação, de exposição, de manutenção, de criação, de reprodução, de comercialização, de abate e de beneficiamento de produtos e subprodutos, constantes do Cadastro Técnico Federal (CTF) de Atividades Potencialmente Poluidoras ou utilizadoras de Recursos Naturais:

II-centro de triagem;
III-centro de reabilitação;

Mais adiante, no artigo 3°, esta IN 169 estabelece as definições para CRAS e CETAS, como sendo

VII – Centro de reabilitação de animais silvestres (CRAS): todo empreendimento autorizado pelo IBAMA, somente de pessoa jurídica, com finalidade de: receber, identificar, marcar, triar, avaliar, recuperar, criar, recriar, reproduzir, manter e reabilitar espécimes da fauna silvestre nativa para fins de programas de reintrodução no ambiente natural;

VIII – Centro de triagem de animais silvestres (CETAS): todo empreendimento autorizado pelo IBAMA, somente de pessoa jurídica, com finalidade de: receber, identificar, marcar, triar, avaliar, recuperar, reabilitar e destinar animais silvestres provenientes da ação da fiscalização, resgates ou entrega voluntária de particulares;

Estabelecido aquilo que será um CRAS ou CETAS, a mesma IN no seu capítulo II trata das autorizações de construção e funcionamento dos empreendimentos, através de autorização prévia (AP), de instalação (AI) e de manejo (AM). Quando destas definições, o IBAMA, através da IN, determinou que somente pessoas jurídicas fossem autorizadas a construírem Centros de Reabilitação ou de Triagem. Ainda de acordo com a IN, os CETAS dividem-se em três níveis, A, B e C, estabelecendo que o CETAS tipo C será uma estrutura exclusiva do IBAMA. A hierarquização dos níveis dos CETAS dependerá dos números de entradas anuais de espécimes e da capacidade técnica e de atendimento do estabelecimento, ou seja, o n° de veterinários, biólogos e tratadores contratados pelo empreendimento, possibilitando assim a ascensão de um CETAS B para o nível A, caso atenda aos quesitos apresentados. É importante frisar que ao final do texto da IN ressalta-se que os CETAS deverão fomentar e implantar termos de cooperação técnica ou convênios com instituições públicas ou privadas, em todo o território nacional, com o intuito de obter recursos financeiros e humanos para o pleno desenvolvimento de suas atividades.

Concomitante a IN 169, foi publicada a IN 179, que estabelece os critérios técnico-sanitários para que os espécimes mantidos dentro dos CRAS e CETAS possam ser enviados aos seus destinos. Tais critérios, entre outros, serão aferidos através da coleta de material biológico, para fins de realização de uma série de exames, tanto de ordem clínica e epidemiológica como genética. Estes exames devem ser realizados nos espécimes tão logo dêem entrada nos CETAS, bem como em parte das populações de vida livre que terão contato com aqueles que forem reconduzidos à Natureza, nas áreas de reintrodução ou revigoramento populacional, ou ainda quando irem para cativeiros legalizados (Criadores ou Zoológicos).

A reintrodução tem como principal preocupação o retorno de uma população a um ambiente original de sua espécie, de forma que ocorra um estabelecimento viável desta, que possivelmente, anteriormente foi extinta, ou está desaparecendo nesta área (IUCN/SSC). Entretanto, o principal problema das solturas de espécies sem critérios é que elas podem ameaçar os estoques selvagens remanescentes, pelos riscos de ruptura nas interações ecológicas e sociais já existentes na área, de degradação do hábitat devido à manutenção de populações artificialmente densas, de possíveis impactos na estrutura gênica das populações selvagens, além de poderem atuar como potenciais transmissores de patógenos. Semelhantemente, a colocação de novos espécimes em plantéis de cativeiro pode propiciar a disseminação de enfermidades nestes plantéis, dado o ambiente de concentração de espécimes em pequenos espaços e a facilidade de circulação de patógenos entre os animais, os recintos e tratadores.

Paralelamente, percebe-se certa dicotomia de emoções quanto às apreensões de Fauna Silvestre, bem como em sua manutenção por parte do Estado pela população.

Se, por um lado, a quase unanimidade das pessoas manifesta repugnância em relação ao tráfico de animais (afinal, ‘todo mundo odeia os traficantes’), por outro lado, quase ninguém admite que possuir animais silvestres em suas residências significa participar ativamente da cadeia do tráfico. Aliado a isto, infelizmente a maior parte dos CETAS, sejam estatais ou privados, tem profundas dificuldades de gestão, nas mais variadas formas, seja na insuficiência de pessoal especializado (veterinários, biólogos, zootecnistas em tempo integral), seja na capacidade de manter e dar destinação aos espécimes através de programas de reintrodução, já que capacidade da maioria dos Zoológicos e Criadores Legalizados está saturada, aliado ao fato que a maior parte das espécies não interessa a estes espaços, pois não possui ‘valor’ zootécnico ou de entretenimento que justifique seus custos de manutenção, notadamente em relação aos passeriformes. Grande parte dos CETAS não possui laboratórios especializados, necessitando assim de auxílio externo, e tanto os laboratórios universitários como os laboratórios oficiais (LARAs) não possuem capacidade para atender a demanda, realizando somente parte dos exames necessários, necessitando-se assim contatar (e contratar) laboratórios privados que já atuam em medicina de espécies silvestres, ou similarmente (espécies domésticas afins, tais como canídeos e felídeos).

Esta dificuldade na manutenção e na destinação dos espécimes, com episódios de denúncias ou fechamento de CETAS, provoca questionamentos sobre capacidade ou necessidade de apreender espécimes silvestres ilegalmente em cativeiro. Em nossa opinião, ocorre um desvio no foco da questão, pois está claro que a manutenção de animais silvestres irregularmente adquiridos contribui para um processo de retro-alimentação do tráfico. O que se deve estabelecer são meios concretos de garantir o fornecimento de insumos (materiais, humanos, etc.) e fortalecer a cadeia de relações já existente entre os CETAS e as Universidades, aliando isto a Programas de Educação Ambiental em andamento, procurando ao mesmo tempo minimizar a atividade do tráfico e, de outra parte, retornar ao habitat natural pelo menos parte dos espécimes que foram criminosamente desalojados, de onde nunca deveriam ter saído.

Paulo G. C. Wagner, médico veterinário, analista ambiental e chefe do Núcleo de Fauna do IBAMA/RS.

Colaboração de Maria Helena Firmbach Annes para o EcoDebate, 10/11/2011

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