As Áreas Úmidas e o novo Código Florestal, artigo de Wolfgang J. Junk, Paulo Teixeira de Sousa Jr e Catia Nunes da Cunha
[Jornal da Ciência] A discussão sobre o novo código florestal (CF) já se arrasta por vários anos, esperando-se para breve o desfecho dos debates sobre o tema no Senado Federal. Entretanto, uma questão de grande magnitude não vem recebendo o tratamento adequado: os ecossistemas de áreas úmidas (AUs). Estima-se que as AUs brasileiras perfaçam aproximadamente 20% do território nacional. Elas prestam serviços importantes para o meio ambiente e os seres humanos, tais como armazenamento e purificação de água, retenção de sedimentos, recarga do nível de água do solo, regulação do clima local e regional e a manutenção de uma grande biodiversidade. Além disso, alguns destes ecossistemas abrigam populações humanas com traços culturais únicos, que tem sua fonte de alimentação e de renda dependente dos estoques pesqueiros, da agricultura de subsistência, da pecuária extensiva e da extração de madeira. Atividades que podem ser realizadas de maneira sustentável, com baixo impacto ambiental.
Grande parte das AUs brasileiras, devido ao regime de chuvas sazonais, é submetida a níveis de água variáveis, produzindo um sistema pulsante com períodos de seca e cheia bastante pronunciados. Ao longo de rios pequenos, as AUs cobrem faixas com largura de dezenas de metros; ao longo de rios grandes, faixas de muitos quilômetros. Até 90% dessas AUs secam durante o período de baixa precipitação pluviométrica.
Na velha e na nova versão proposta para o CF, as AUs não são especificamente mencionadas. Já o CF em vigor protege faixas de floresta ao longo dos córregos e rios de acordo com a largura do rio, sendo considerado o nível mais alto, isto é, o nível alcançado por ocasião da cheia sazonal do curso d’água perene ou intermitente como definido pela resolução CONAMA de 2002.
Esta formulação dá proteção à orla das AUs. O novo CF considera Área de Preservação Permanente (APP) desde a borda da calha do leito regular, sendo esta definida na proposta para o novo CF como: a calha por onde correm regularmente as águas do curso d’água durante o ano. Esta proposição colocaria a maioria das AUs sem proteção legal, afetando a integridade das AUs restantes, impactando negativamente nos serviços proporcionados aos seres humanos e ao meio ambiente.
Exemplificando: as AUs do rio Amazonas, próximo à Manaus e dos seus afluentes principais se estendem por dezenas de quilômetros. Estas áreas são protegidas pela legislação atual, que as considera propriedade da União (Constituição, Art 20) enquanto pertencem ao leito dos rios, entendido (há mais de cem anos) como a calha compreendida entre as margens altas.
Estas são definidas como a linha média das margens das vinte maiores cheias registradas. No novo projeto de CF (PLC 30), o Art 4 considera como APPs: “as faixas marginais de qualquer curso d’água natural, desde a borda da calha ao leito regular”… definindo depois as suas larguras mínimas de acordo com esse leito. Se esta definição de leito de rio prevalecer, não apenas o patrimônio da União ficará subtraído de centenas de milhares de km2 como também as APPs recuarão drasticamente.
De acordo com artigo 225, da Constituição Federal parágrafo 4, o Pantanal Mato-Grossense é declarado Área de Patrimônio Nacional e o uso de seus recursos tem que seguir as leis para garantir a proteção do ambiente. No entanto, apesar de ser um ecossistema com condições ambientais específicas, o Pantanal está sujeito às mesmas regras e regulamentos aplicado a todas as outras regiões brasileiras. A atual lei estadual do pantanal (lei N 8.830 de 2008) tem várias carências, destacando-se o fato de considerar como o referencial para definir as faixas marginais de preservação ambiental, o nível mais alto do rio, efetuado durante o período sazonal da seca. Isso é um contra senso!
O período seco no Pantanal pode significar leitos de rios completamente secos. Isso é muito grave e o novo CF coloca ao estado esta responsabilidade que é nacional. Desta forma, AUs como as savanas inundáveis do Guaporé, do Araguaia e as de Roraima, além de passarem desapercebidas como ecossistemas de grande importância no CF em vigor não são contempladas no novo CF, pois somente a planície pantaneira está contemplada como área de uso restrito no Capítulo III do novo CF.
Em 1993, o Brasil ratificou a Convenção de Ramsar, que exige dos estados signatários não somente o delineamento e a proteção específica das AUs de importância internacional, mas também um inventário destas, a descrição das suas estruturas e funções e a elaboração de planos para o seu uso sustentável. Apesar do compromisso assumido, até o momento o Brasil encontra-se muito aquém do cumprimento dessas metas. Já é hora destes ecossistemas serem incluídos claramente na legislação brasileira, para posteriormente serem alvo de delimitação, definição e classificação para subsidiarem uma política nacional de AUs e assim atendermos ao nosso compromisso internacional de assegurar a saúde destes ecossistemas.
O desmatamento da floresta tropical e a conversão do cerrado brasileiro em monoculturas já vêm causando impactos dramáticos sobre o ciclo hidrológico. Muitos rios e córregos que antes fluíam o ano inteiro no cinturão agro-industrial localizado na região centro-sul da floresta amazônica já estão secando durante a estação seca. As previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) indicam para o futuro, sobre grandes áreas do Brasil, estações chuvosas e secas mais pronunciadas, caracterizadas por eventos com intensa precipitação e ondas de calor. Alem disso, o prognóstico para a região do cerrado é que haja uma redução da precipitação anual de até 25%. Por isso, a disponibilidade e a distribuição das águas serão fatores limitantes para o desenvolvimento agrícola e o bem-estar das populações rurais e urbanas. As AUs intactas irão desempenhar um papel crucial na manutenção da água na paisagem, tamponando extremos no ciclo hidrológico e fornecendo água limpa.
Na forma em que está, o novo CF vai favorecer a destruição desses recursos vitais, que em poucas décadas serão de importância econômica inestimável para o meio ambiente, a economia e a sociedade brasileiras. Considerando o fato que importantes AUs brasileiras são transfronteiricas, a mudança do CF poderá ter impactos negativos também para países vizinhos, com potencial para a geração de conflitos.
Wolfgang J. Junk é coordenador científico do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (INCT-INAU), Cuiabá, MT. Paulo Teixeira de Sousa Jr é coordenador do Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP), Cuiabá, MT e Catia Nunes da Cunha da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Artigo publicado no Jornal da Ciência / SBPC, JC e-mail 4362.
EcoDebate, 14/10/2011
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