Os desafios que a Alemanha enfrentará para cortar a energia nuclear do país
Merkel está totalmente confiante, mas a indústria energética tem dúvidas sobre uma aposta tão grande. Como a Alemanha, a maior potência econômica europeia, deu as costas à energia atômica?
Mais diretamente, a decisão coube à chanceler Angela Merkel. Diferentemente de outros líderes mundiais, ela é cientista, com PhD em física.
Ela chegou à decisão importante de cortar a energia nuclear até 2022 após discutir o assunto certa noite tomando vinho tinto com o marido, Joachim Sauer, físico e professor universitário, em seu apartamento no centro de Berlim, de acordo com pessoas que passaram muitas horas debatendo a questão com ela, mas falaram apenas sob condição de anonimato. Reportagem de Judy Dempsey, no International Herald Tribune.
A decisão de tirar a tomada da indústria de energia nuclear tem sido amplamente retratada como uma reviravolta súbita de Merkel. Após o desastre nuclear no Japão em março, o público alemão, que há muito se opunha à energia nuclear, pediu a mudança, e sua chanceler, conhecida por agir de acordo com os ventos políticos, acatou a ideia.
Mas os que conhecem Merkel descreveram sua mudança de opinião como algo mais próximo a um despertar. Interesses industriais e energéticos poderosos lutaram contra a medida, mas Merkel, segundo seus aliados, está pronta a levar a Alemanha para uma nova era, na qual a energia eólica e solar, além de um aumento em eficiência, podem ser desenvolvidas com rapidez suficiente para substituir a energia perdida com o fechamento das usinas nucleares.
A cientista da Alemanha oriental que chegou à política apenas após a queda do Muro de Berlim em 1989 pareceu ecoar parte do fervor daqueles tempos: apesar de a Alemanha não ser famosa por seus tsunamis, ou fortes terremotos, ela disse que os riscos de um acidente nuclear eram simplesmente enormes demais para serem controlados por humanos. Um desastre como o do Japão poderia voltar a acontecer em qualquer lugar. A segurança é mais importante.
Em contraste ao seu cuidado excessivo no resgate passo a passo da zona do euro, ela não mostrou hesitação alguma ao reverter sua decisão original de pouco tempo antes, no outono, de prolongar a vida das usinas nucleares da Alemanha.
Agora, ela comprometeu a maior economia da Europa, uma grande exportadora que precisa manter sua indústria competitiva, a fechar a fonte de quase um quarto de sua energia elétrica.
Na opinião de defensores da medida, como R. Andreas Kraemer, diretor do Instituto Ecológico, organização de pesquisa independente em Berlim, esta decisão “será histórica”.
Isso só se saberá daqui a anos. Mas realmente faz pensar nos grandes saltos que a Alemanha tende a dar, muitas vezes surpreendendo seus parceiros americanos e europeus.
Desde sua quase total destruição em 1945, a Alemanha conseguiu gerar o Wirtschaftswunder, ou milagre econômico, dos anos 50, aguentou protestos e terrorismo nos anos 60 e 70 enquanto deu à luz ao que hoje é conhecido como o mais poderoso Partido Verde da Europa e, nos anos 80, testemunhou novos protestos civis – desta vez na Alemanha Oriental – que derrubaram o Muro de Berlim.
Nos anos 90, a Alemanha suportou os enormes custos financeiros e psicológicos da reunificação, calmamente reconstruiu sua capital em Berlim e aparelhou sua política externa não apenas para dar garantias aos aliados do Ocidente sobre a reunificação, mas também para apoiar os antigos países comunistas do leste em seu esforço para se unir à União Europeia.
A decisão de pôr fim à energia nuclear faz parte dessa narrativa.
Norbert Roettgen, ministro de Meio Ambiente, disse recentemente que, se o país, com seus 80 milhões de habitantes, puder dar o salto para uma economia livre de energia atômica, então a Alemanha se tornará a primeira grande nação industrial a fazer a transição para a energia renovável e eficiente.
Ao admitir que existem desafios, ele insiste que as metas são alcançáveis e que a nova tecnologia vai dar à Alemanha novos mercados de exportação por décadas e torná-la um lugar ainda mais atraente para se fazer negócios.
A inovação, as tecnologias avançadas, o senso comum e as medidas eficientes em custo são o foco do que Roettgen chamou de política “ambientalmente sólida, amigável ao clima e em linha com princípios de mercado e de competição”.
“Na melhor tradição da engenharia alemã serão gerados novos produtos e tecnologias, novas oportunidades de exportação e, portanto, de emprego e crescimento”, disse ele.
Kramer, diretor do Instituto Ecológico, disse: “Acreditamos que podemos fazer isso. Nós dominamos a tecnologia e sabemos o que temos que fazer”.
Contra esse otimismo estão os quatro grandes fornecedores de energia da Alemanha, uma série de analistas e economistas que dizem que o governo não calculou os custos da medida. Em um país que sempre teve uma forte oposição à energia nuclear e agora tem um partido verde forte, Merkel talvez consiga apoio político, “mas não levou em conta os custos políticos e econômicos mais amplos”, disse Matthew Hulbert, especialista em energia em Clingendael do Instituto Holandês de Relações Internacionais.
O ministro da Economia, Philipp Roesler, diz que desligar a energia nuclear vai aumentar o custo de um kilowatt-hora de eletricidade em apenas 0,01 euro. Roettgen calcula o custo por casa durante a transição como mais ou menos uma xícara de café latte -2,5 a 3 euros (em torno de R$ 6 a 7)- por mês.
Mas a indústria nuclear, liderada pela E.On, Vattenfall, RWE e EnBW, diz que será o setor privado, particularmente as empresas de energia, que terá que pagar pela mudança para fontes renováveis e outras, como gás natural e até uma dúzia de usinas de carvão. “Não estamos falando de bagatela, mas de centenas de bilhões de euros”, disse Jürgen Grossmann, diretor executivo da RWE.
Do outro lado da equação, o governo vai deixar de pagar por subsídios nucleares que, de acordo com o Greenpeace, totalizaram cerca de 200 bilhões de euros (em torno de R$ 480 bilhões), desde que a Alemanha Ocidental começou a pesquisar e desenvolver a energia nuclear nos anos 50. Os subsídios do ano passado foram de 4,1 bilhões de euros, de acordo com um estudo recente por uma organização de pesquisa ambiental independente, a Orçamento Verde da Alemanha (Forum Oekologisch-Soziale Marktwirtschaft).
Outro fator é a possibilidade de a Alemanha, que já recebe mais de um terço de seu gás natural da Rússia, ficar ainda mais dependente. Merkel, contudo, rebateu esse ponto quando se encontrou com o presidente Dmitri A. Medvedev e outras autoridades russas em julho. Quando o vice-primeiro-ministro russo, Viktor A. Zubkov, que também é diretor da Gazprom, estatal que monopoliza a exportação de gás natural, abertamente apreciou a perspectiva de vender mais para a Alemanha, a chanceler respondeu friamente: “Vamos esperar e ver”.
Claramente, algo grande terá que mudar. A Alemanha importa quase 60% de sua energia, de acordo com a Agência de Energia Internacional.
Fontes renováveis como vento e energia solar atualmente perfazem apenas 17% da matriz elétrica alemã. O governo prevê que essa quantia praticamente dobre até 2020, chegando a 80% em 2050.
Também estão nos planos uma ampla expansão da rede nacional para transmitir a eletricidade da costa norte, onde há muito vento, e do sul, onde a energia solar é mais abundante, para as principais áreas industriais, onde está a maior parte da demanda. De acordo com a Agência de Energia Alemã, entre 1.500 km e 3.600 km de novas linhas de alta voltagem terão que ser instalados até 2020, financiados pelos operadores da rede.
As estimativas de custo variam amplamente, dependendo da tecnologia usada, mas a agência estimou que linhas básicas de transmissão padrão custariam 950 milhões de euros por ano, durante sete anos. A transmissão de alta voltagem em corrente contínua custa mais que o dobro disso.
Algumas grandes empresas estão preocupadas. A produção industrial, que é geralmente intensiva em energia, é responsável por 28% da economia alemã, comparada com 22% nos EUA. A maior empresa de produtos químicos do mundo, Basf, usa tanto gás natural em suas fábricas quanto toda a cidade de Berlim.
A Alemanha já tem custos altos de energia em relação a outras partes do mundo, disse Michael Grabicki, porta-voz da Basf. “A indústria alemã tem que permanecer competitiva”, disse.
Por contraste, muitas das pequenas e médias empresas operadas por famílias, as chamadas Mittelstand, que formam o esqueleto da economia da Alemanha, estão animadas com a perspectiva de desenvolver novas tecnologias e talvez quebrar o monopólio das quatro grandes empresas de energia.
“Esta é uma grande chance para nós”, disse Christian Albrink, diretor regional da Soleg, que comercializa aquecimento solar para residências e a indústria. “O governo vai precisar de nervos fortes para promover suas políticas.”
As grandes empresas de energia não estão aceitando a mudança em silêncio. Em abril, a RWE entrou com uma ação contra a decisão de Merkel de fechar sete das usinas nucleares mais antigas imediatamente.
Grossmann, diretor da RWE, disse que a medida de Merkel provocaria a falta de mais de 100 terawatts-hora de eletricidade, cerca de 17% do consumo total. Ele disse que isso teria que ser compensado por importações de países como a França e a República Tcheca e pela construção de novas usinas a carvão ou gás que, diferentemente da energia nuclear, produzem gases de aquecimento global.
Claudia Kemfert, especialista em energia do Instituto Alemão para Pesquisa Econômica (Diw Berlim) e professora de energia e sustentabilidade da Hertie School of Governance em Berlim, disse que o carvão já era responsável por 42% das necessidades de eletricidade da Alemanha. “O governo ainda tem que explicar como vai pôr fim à energia nuclear e mesmo assim reduzir as emissões de CO2”, disse ela.
O governo admite que o gás natural e as usinas de carvão vão continuar a ter um grande papel na matriz energética do país. Afinal, elas são capazes de prover muita energia a qualquer tempo –diferentemente do sol e do vento, ao menos com as atuais tecnologias de armazenagem. O governo, estabeleceu um fundo especial de 5 bilhões de euros, por meio do banco estatal KfW, para financiar a construção de fazendas eólicas no mar. E também pretende construir instalações de armazenamento de energia renovável -outra despesa.
Ao mesmo tempo, as empresas e residências alemãs estão sendo instadas a aumentar seus esforços para poupar energia. Há planos para os próximos três anos de fornecer subsídios para ajudar a modernizar as moradias e tirar a indústria automobilística –um símbolo do poder da engenharia e da exportação alemã- do petróleo e para o desenvolvimento de carros elétricos.
Tradução: Deborah Weinberg
Reportagem do International Herald Tribune, no UOL Notícias.
EcoDebate, 15/08/2011
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