A Preço de Sangue, artigo de Delze dos Santos Laureano
[EcoDebate] Parte do que foi a paixão e ressurreição de Jesus Cristo está no Evangelho de Mateus, capítulo 27. Conta o evangelista que, desde a manhã, todos os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo convocaram o Sinédrio contra Jesus a fim de o condenarem à morte. Depois de amarrarem Jesus entregaram-no ao governador Pilatos.
Detenho-me especialmente nos versículos de 3 a 7. Judas, chamado no texto de traidor, ao ver que Jesus fora condenado, sentiu remorso, e foi devolver as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e anciãos dizendo: “Pequei, entregando à morte sangue inocente.” Eles responderam: “E o que nós temos com isso? O problema é seu.” Judas jogou as moedas no Templo e saiu, indo enforcar-se. Recolhendo as moedas, os chefes dos sacerdotes disseram: “É contra a Lei colocá-las no tesouro do Templo, porque é preço de sangue.” Então discutiram em conselho e com o dinheiro compraram o Campo do Oleiro, para aí fazer o cemitério dos estrangeiros.
O texto é da década de 80 do primeiro século da era cristã. Lá se vão quase 2.000 anos. Fico aqui pensando com os meus botões. Sangue inocente ainda mancha as moedas recolhidas pelos chefes do poder. O uso do dinheiro sujo é amenizado, na Bíblia, para a compra da terra de cemitério para estrangeiros, hoje, para projetos socioculturais e de educação ambiental. Contudo, são os que detêm o poder os responsáveis pelo sangue nas moedas e os mesmos que decidem acerca do seu uso.
Michel Chossudovsky, pesquisador canadense, no livro “A Globalização da Pobreza”, demonstrou com clareza como a riqueza mundial é canalizada para os mesmos grupos econômicos internacionais – Clube de Londres e Clube de Paris -, protegidos pelas políticas do FMI – Fundo Monetário Internacional – e do BIRD – Banco Mundial. Os recursos originários dos países pobres, mesmo quando vêm da exploração sexual, do comércio ilegal de entorpecentes, da exploração criminosa dos recursos naturais nos territórios das comunidades tradicionais servem para honrar os contratos internacionais, mesmo causando tanto sofrimento e a morte do planeta.
Não é diferente com a nossa riqueza interna no Brasil. O capitalismo hegemônico tornou-se mais forte (dogmático) que uma religião. Tudo pode ser debatido politicamente, menos as velhas receitas da teoria econômica conservadora. O Estado prioriza ações para o crescimento econômico – PAC – e para a realização dos megaeventos como a Copa de 2014, transferindo para as entidades da sociedade civil – especialmente as ONGs – grande parte da responsabilidade dos serviços sociais que precisam amortecer os efeitos perversos do sistema econômico. E assim, por detrás dos recursos que financiam os projetos sociais estão as mesmas empresas multinacionais causadoras dos danos: mineradoras, grandes construtoras, bancos, empresas do agronegócio. Elas que estão presentes no mundo inteiro, elegem nos países os seus representantes e mantêm suas sedes nas economias centrais do planeta. Toda grande empresa tem um braço social: instituto, ONG, fundação. Afinal, empresa que não mantém uma fachada de responsabilidade social e de sustentabilidade ambiental fica feia no retrato, perde clientes e faturamento nos países desenvolvidos.
Mas as moedas de sangue não vêm somente da iniciativa privada, vêm também do Estado. Originam-se dos orçamentos públicos, moeda de troca nas reeleições. Quem pode incluir obras no orçamento, quem pode aprovar renúncias fiscais (em nome da geração de empregos e renda), ou dar destinação legal (como é exemplo a Lei Rouanet) às receitas públicas, acaba se beneficiando desse lugar privilegiado, impedindo a renovação da representação política democrática pela via eleitoral. Manipulando os recursos públicos, subtraídos da população pobre (espoliada com a maior carga tributária do mundo e servida com os piores meios de transporte, com educação pública de fazer vergonha, com moradia inapropriada) favorecem as mesmas elites que se regozijam com as benesses do poder, deliberando com exclusividade acerca das riquezas nacionais que deveriam ser bens de uso comum do povo, como terra, água, florestas, biodiversidade.
Nós, meras peças dessa engrenagem, individualmente tentamos superar limites. Às vezes acreditamos no sucesso pessoal. Fazemos um esforço hercúleo para entender as tramas do mercado que tanto exige de nós. Outras vezes caímos na armadilha do moralismo, do arrependimento, talvez resquício de uma tradição judaico/cristã. Imaginamos que as nossas ações pessoais (como fechar torneiras, tomar banhos frios e rápidos, ou transformar lixo em artesanato) são as saídas para se resolver as mazelas provocadas por esse sistema que ignora a vida, visando somente ao lucro.
Em meio ao cansaço ou ao arrependimento ouvimos a voz dos senhores do Sinédrio dizendo. “O que nós temos com isso? Não reclamem das tarifas altas, do alto custo dos pedágios, dos serviços públicos de água, de energia ou de comunicação. Não lamentem as mazelas sociais e a violência.” Como Pilatos, lavam as mãos dizendo: “Apenas aprovamos os projetos que vocês apresentam. O Estado não dispõe de recursos. Precisamos fazer parcerias com o setor empresarial para sermos eficientes.” Outros senhores, os juízes, quando reclamamos que somente os pobres ficam nas cadeias, repetem em coro: “O que nós temos com isso? O problema é de vocês. Não são os seus representantes que fazem as leis? Estamos apenas cumprindo o que a sociedade manda.” Assim, condenam impiedosamente à prisão os acusados dos pequenos delitos (contra o patrimônio), retirando das famílias pobres a melhor força de trabalho, perpetuando o círculo da marginalidade. Já os governadores dizem: “Nós não condenamos ninguém. São os juízes que condenam. Para cumprir as ordens judiciais e a lei precisamos construir mais penitenciárias, precisamos comprar mais viaturas de polícia. Precisamos por mais policiais nas ruas.”
Judas, segundo o relato bíblico, iludido pelos donos do poder, trai os companheiros e se sente culpado. Arrependido, devolve ao Templo as moedas sujas de sangue e, envergonhado, suicida-se. Já os donos do poder político, ontem e hoje, não se arrependem nunca. Arrogantes, determinam os fatos que mancham de sangue as moedas, para depois decidir “moralmente” o que fazer com elas.
Na nossa cultura ocidental, imprescindível interpretar de forma libertadora a Bíblia para compreender a lógica do sistema político. Somente assim nos damos conta de que vivemos e legitimamos o mesmo sistema de sempre. A história apenas se repete, como magistralmente ensinou Marx: “a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. Quem não tem as mãos sujas de sangue que atire a primeira pedra. Quem tem ouvidos, ouça!
Nova Lima (MG) Brasil, 19 de junho de 2011.
Delze dos Santos Laureano é advogada, professora universitária de Direito Agrário, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG, doutoranda em Direito Público Internacional pela PUC/Minas.
E-mail: delzesantos@hotmail.com. www.delzesantoslaureano.blogspot.com
EcoDebate, 22/06/2011
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