País poderá perder até 79 milhões de hectares, ou 31% da Reserva Legal atual, com as alterações no Código Florestal
Um triste cenário possível – Até mesmo o governo não ficou satisfeito com a versão do novo Código Florestal aprovada no plenário da Câmara dos Deputados. Por isso, deverá propor alterações em 11 pontos do texto. Antes de ser levado para votação final no Senado Federal, o documento passará pelas Comissões de Meio Ambiente, de Agricultura e de Constituição e Justiça. As discussões deverão levar cerca de quatro meses, preveem analistas. Porém, considerando o texto atual do PL 1876/99, um estudo do Ipea aponta o aumento de áreas degradadas e do passivo ambiental.
No dia 8 de junho, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou o Comunicado no. 96, intitulado “Código Florestal: implicações do PL 1876/99 nas áreas de Reserva Legal”. Trata-se de um levantamento das áreas de Reserva Legal (RL) que seriam dispensadas de recuperação dos seus passivos ambientais.
A RL consiste em um porcentual da área do imóvel onde a vegetação nativa deve ser conservada. Essa cota florestal é diferente daquela que compõe a APP, por permitir a utilização sustentável dos recursos naturais, conservação dos processos ecológicos, da biodiversidade, além de abrigo e proteção à fauna e flora nativas. O Código Florestal atual considera que o porcentual destinado à RL varia conforme o bioma em que o imóvel está localizado. Em seu artigo 16, estabelece os seguintes porcentuais de área: 80% para florestas da Amazônia Legal; 35% para cerrado, 20% para campos gerais; e 20% para qualquer tipo de vegetação nas demais regiões do País. Para floresta e cerrado na Amazônia Legal, esses porcentuais podem ser reduzidos a 50% e 20%, respectivamente, caso permita o zoneamento ecológico-econômico.
No PL 1876/99, os porcentuais reservados à RL são os mesmos, mas a isenção para recuperar passivos depende do tamanho do imóvel rural. Sobre a definição do PL para o tamanho da propriedade, o professor Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Escola Superior de Agricultura (Esalq) da USP, em Piracicaba, considera ter sido este “mais um erro conceitual”. Para o professor, o texto deveria propor exceções e tratamento diferenciado para “propriedades familiares”, o que, por definição, é diferente de módulo rural.
“O projeto de lei referencia pequena propriedade como aquelas com áreas de 20 hectares a no máximo 400 hectares, dependendo do Estado. Mas isso nada tem a ver com propriedade familiar. Estas, sim, deveriam ter tratamento diferenciado, o que, aliás, está previsto na Constituição”, diz.
Segundo o levantamento do Ipea, considerando a hipótese de anistia dos passivos ambientais de reservas legais referentes aos imóveis rurais de até quatro módulos fiscais, o passivo total estimado isento de ser recuperado é de 29,6 milhões de hectares, sendo que a maior parte desse passivo ocorreu na Amazônia (18 milhões de hectares). Considerada a isenção em quatro módulos para todas as propriedades, a área isenta de ser recuperada chega a quase 48 milhões de hectares, em se tratando de reserva legal.
Num segundo cenário, o Ipea considerou que a mudança na lei poderia influenciar desmatamentos futuros da vegetação natural em propriedades que seriam isentas, pelo PL 1876/99, de ter reserva legal. Assim, haveria uma perda total da vegetação dessas áreas, que deixariam de ser averbadas e ter assim uma proteção legal.
A perda total de área de reserva legal, em imóveis de até quatro módulos fiscais, seria de aproximadamente 47 milhões de hectares, nesse cenário. A maior parte dessa área pertence à Amazônia, com 24,6 milhões de hectares. Se também for considerada a isenção de passivo para as grandes e médias propriedades, a área total de RL perdida seria de 79 milhões de hectares, o que representa 31% da área de reserva legal atual.
Minifúndios – Segundo o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), o Brasil possui uma área total de imóveis rurais de 571,7 milhões de hectares. Pelo atual Código Florestal (Lei 4.771/65), toda essa área de imóveis compõe a base de cálculo para o estabelecimento da área de reserva legal (RL). O número de propriedades com até quatro módulos fiscais é de 4,6 milhões, correspondendo a 90% do total de propriedades rurais no Brasil, enquanto a sua área ocupa 135 milhões de hectares, ou 24% do total da área de propriedades rurais no País. É o mesmo que dizer que um pequeno número de grandes propriedades ocupa a maior parte do espaço da área rural do País.
No Brasil, os minifúndios somam 3,4 milhões de imóveis e detêm uma área de 48,3 milhões de hectares. Para garantir que esses imóveis tenham, no mínimo, um módulo fiscal, seriam necessários 76 milhões de hectares adicionais, segundo estudo do Ipea. A liberação das áreas de RL para esses imóveis adicionaria somente 17 milhões de hectares. Dos mais de 5.500 municípios brasileiros, apenas 232 conseguiriam superar a condição de minifúndios de seus imóveis com a liberação de obrigatoriedade de reserva legal. “Portanto, não seria a flexibilização do Código Florestal que resolveria a situação dos minifúndios no Brasil”, traz o documento do Ipea.
Mudanças polêmicas
As mudanças mais polêmicas do novo Código Florestal aprovado no Plenário da Câmara dos Deputados, em 24 de maio, permite a manutenção de atividades agrossilvopastoris, de ecoturismo e de turismo rural nas Áreas de Preservação Permanente (APPs), se estiverem em áreas consolidadas até 22 de julho de 2008. Pequenas propriedades, de até quatro módulos fiscais, ficam dispensadas da necessidade de recompor as áreas de Reserva Legal (RL) utilizadas, sendo que as propriedades maiores deverão calcular a reserva legal com base apenas na parte do terreno que exceder os quatro módulos fiscais. O novo texto admite a soma das APPs no cálculo da reserva legal, ou seja, o cálculo da RL poderá incluir as faixas de APPs, o que não é permitido pela legislação em vigor.
Entre outras alterações, a nova lei retira a proteção de topos de morros, restingas e altitudes inferiores a 1,8 mil metros. Admite culturas lenhosas perenes, atividades florestais e de pastoreio nas APPs de topo de morro, encostas e de altitudes elevadas (acima de 1,8 mil metros). Em manguezais com função ecológica já comprometida, o texto permite a urbanização e a regularização fundiária.
Para alguns analistas, a legalização de determinadas atividades em faixas que deveriam ser de APPs representa a extinção do conceito de APP. “A manutenção de plantios e pastagens em áreas de APPs é absurda, pois significa eternizar o dano ambiental provocado. A chamada ‘consolidação’ nada mais é que a manutenção do assoreamento dos rios, lagos, açudes e represas com o sedimento produzido pela erosão das áreas de agricultura e pecuária”, afirma o professor Sergius Gandolfi, do Departamento de Botânica da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.
Para cursos d’água de até 10 metros de largura, a nova lei permite a recomposição de 15 metros, ou metade do exigido na lei atual. “A redução da restauração das áreas de APPs de 30 metros para apenas 15 metros em rios de até 10 metros de largura (90% dos rios) significa colocar áreas agrícolas mais próximas dos rios e assim aumentar o seu assoreamento”, afirma Gandolfi. Porém, para a técnica do Instituto Florestal (IF) Giselda Durigan, o novo texto inova ao criar uma faixa mínima de preservação de 15 metros para os cursos d’água de até cinco metros de largura.
“Ninguém duvida da importância da preservação das margens dos rios. Porém, acredito que as discussões sobre as mudanças do Código Florestal deram demasiada importância às APPs, sem considerar o todo, sem considerar a bacia hidrográfica, sem considerar o ciclo hidrológico, sem considerar as atividades do homem e seus impactos”, afirma o professor Marcos Vinícius Folegatti, do Departamento de Biossistemas da Esalq.
Na opinião de Folegatti, tanto a lei proposta quanto a atual representam uma “ameaça ao ambiente”. Justifica que as regras em vigor, do Código Florestal de 1965, não conseguiram efetivamente preservar nem recuperar áreas degradadas, “com o estigma de que a preservação suprime áreas produtivas e de que, quando algo é preservado, não tem valor econômico e acaba visto como empecilho para a maioria dos produtores rurais”.
Folegatti afirma que nas próximas décadas o Brasil deverá ter 100 milhões de hectares de produção, com possibilidades de chegar a 10 milhões de hectares irrigados, os quais deverão crescer, em sua maioria, em áreas de pastagens degradadas. “Esse crescimento deverá ser planejado e organizado no contexto de bacias hidrográficas de acordo com a Lei 9.433, para que tenha sustentabilidade. Ou corremos o risco de continuarmos com o mesmo padrão de crescimento, com concentração em grandes cidades e enormes passivos ambientais e baixa qualidade de vida”, afirma. S. M.
Reportagem de Sylvia Miguel, no Jornal da USP, publicada pelo EcoDebate, 15/06/2011
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